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1. O sapo e o poeta

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25.01.2017 | 3 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Contos
1. O sapo e o poeta

Grande como um sapo, convidou-me a entrar. Sentei à sua frente, quando com um olhar tão gordo quanto seu corpo, ele disparou:


-Defina-se, candidato.


Foi, então, que comecei.


Pois não.


Meus olhos são como escavadeiras e, às vezes, mais do que devem. Eles olham o que muitos escondem, veem o que deixam ser visto e o que resiste. Mas vejo tão bem quando os fecho, tanto quanto quando olho. Às vezes vejo minhas asas assim: cobertas de muitos olhos, voltados para tantos cantos, tantos sentidos, que não sei bem sintetizar a vida. Alguns se fecham, outros se abrem e sei que eles se encantam, se inebriam. Alguns são míopes, outros sãos, mas contemplam o horizonte que me chama com silêncios de sereia.


Sou tão infinito que não me caibo. Queria abraçar o mundo, porque sinto que em algum instante, seu peito desnudo me amamentou. E deitado sobre seu dorso nu, lambi suas carnes, beijei seus ossos que me apareciam em sua magreza.


 E sou também todo saudade, do que ainda não tem nome. É que o inefável me empurra para a Palavra. Tenho tantas palavras que elas saem pelos poros. Elas vão escorrendo pelo corpo e são minha sensualidade. Sei usá-las para cortar e para juntar, e de algum modo que não aprendi, de algum modo que não sei analisar. De repente sou grito, sou lamento, sou suspiro, sou gozo inebriante, e gargalho como se quisesse quebrar os cristais com que a tristeza enfeitou a sobriedade.


Sou um pintor nu, todo sujo de tintas, me esfregando, contra as paredes de papel da vida, pintando em borrões o desejo afrontoso de ser vivo, à despeito da morte que nos ronda... Olho sua face cadavérica tantas vezes e os desenhos que ela vai traçando com ironia e sarcasmo no rosto dos viandantes. Sei lá. Não sou seu amigo, nem seu irmão, mas já fiz cócegas nela... Um dia, quando ela vier sorrateira, eu a vou matar de tanto rir. Seremos amigos, então. E nos daremos as mãos, enfim. Amigo é só aquele que suportar nossa alegria.


Sou tão filho da terra e sei que sou vaso de barro. Mas meu gozo, minha erótica, é conter o incontido e deixá-lo escorrer pelos cantos, esvaziando pelos caminhos. O Incontido me contém e Nele, eu sou todo avesso, todo verso. E meu estribilho ainda não ressoou. Quero cantá-lo tão alto e tão forte, que todo mundo irá manejar seus instrumentos. Juntar-se-ão outras tantas vozes e, num uníssono, faremos a sinfonia da humanidade. Seria bonito de ver...


Minhas mãos são montanhas tão altas.Com elas, eu vejo o amanhã. E minhas pernas longas como pontes. Estou descalço agora. É que pisei um solo quente, macio, sadio, prenhe... Estou diante de uma sarça que está muda, mas meu peito arde, meu coração arde, minha vida arde e, de dentro, sinto falar uma Voz que é trovão-que-não-dá-medo. Faz tum-tum-tum como se fosse o batimento do coração mansinho...Não sei dizer como uma coisa cabe na outra, mas é que há tanta força na mansidão, que não resisto...


É isso.


O homem-sapo tinha um olhar tão estranho cravado em mim. Parecia segurar um riso, mas se conteve. Olhou-me com certo desdém e disse:


-Sinto muito. Você não serve para o cargo.


Enquanto eu saía, a plaquinha na porta era retirada. Nela se lia:


-Procuram-se poetas.