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50. Para além do altar

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01.06.2020 | 5 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
50. Para além do altar

Crise de Covid-19 revelou a somatória de desigualdades que colocam milhões em radical vulnerabilidade (Acacio Pinheiro/Agência Brasília)



O socorro dos pobres faz parte do código ético

do povo da Bíblia e é missão cristã.



A pandemia de Covid-19 tem revelado o rosto perverso do ser humano e das nossas sociedades. Ele mostra a indiferença que podemos nutrir com relação às pessoas, nossos semelhantes, e aos povos vizinhos. Nesse momento, torna-se ainda mais evidente a gravidade da nossa empatia para com causas animais, por exemplo, enquanto nos revelamos frios e não solidários para com aqueles que compartilham conosco a condição humana. Obviamente, não se defende aqui o encerramento da luta pela dignidade e direito de todas as criaturas. Apenas defendemos o despertar do olhar para aqueles que nos são ainda mais familiares, aqueles com os quais nos identificamos por compartilhar uma série de características que nos localizam do mesmo lado da existência.


Com o avançar dos dias vamos percebendo que a doença não faz acepção de pessoas e nem de classes sociais. No entanto, a cobertura jornalística não deixa dúvidas sobre a tragédia que ela causa entre os mais pobres. Os rostos dos que tombaram pela doença e as lágrimas dos parentes inconsolados revelam a gente simples brasileira como a mais atingida pelas crises sanitária e econômica. São essas pessoas que se deparam com hospitais superlotados e precisam alimentar toda fé e esperança por um leito, quando têm a sorte de serem atendidas.


O fato é que a doença se alastra entre os pobres a dizimá-los com velocidade. Além de se confrontarem com um sistema de saúde pública sucateado, também vivem em comunidades desatendidas por saneamento básico há décadas, vivendo, portanto, em condições insalubres. Em muitos lugares, a água potável não chega às torneiras para as tais práticas de higiene pessoal. Essa mesma população é aquela dos mais de quarenta milhões de desempregados enfrentando dificuldades para colocar alimento na mesa. Há saúde sem alimentação de qualidade? Não podemos negar que alguns municípios e algumas organizações não governamentais estão organizados de modo a oferecer a essas famílias uma cesta básica para passarem o mês. Mas conseguem socorrer a todos? E no meio de tanta indiferença, esse é um dos sinais que fazem cócegas na esperança por mais compaixão e, por isso, por mais humanidade.


Jesus alertou seus discípulos para a presença dos pobres entre eles: "sempre os terei convosco" (Cf. Mt 26,11; Mc 14,7; Jo 12,8). Mas a fala de Jesus não se refere a uma constatação indiferente e passiva diante das forças que geram o empobrecimento de milhões até hoje. Antes, está em consonância com sua fé que é obrigada aos cuidados dos necessitados. O socorro dos pobres faz parte do código ético do povo da Bíblia. A aliança com Deus passa pela horizontalidade de dar, por exemplo, ao faminto a condição de garantir sua vida diante da grave ameaça da fome. Por isso, cabe a exortação: "Nunca deixará de haver pobres na terra; é por esse motivo que te ordeno: abre a mão em favor do teu irmão, tanto para o pobre como para o necessitado de tua terra" (Dt 15,11). Por isso mesmo, os bem aventurados do Reino são aqueles que vêm em socorro dos pequeninos do mundo e, neles, do próprio Jesus: "Porque tive fome, e deste-me de comer" (Mt 25,35).


Nesse gravíssimo momento que vivemos é preciso garantir o mínimo para a sobrevivência das pessoas. Mas esse mínimo se maximizou, pois os pobres não carecem apenas de pão. A crise de Covid-19 revelou a somatória de muitas desigualdades que colocam a vida de milhões numa condição radical de vulnerabilidade. É preciso agir, desde nossa parcela individual enquanto cristãos e cristãs comprometidos com o Evangelho até nossas estruturas comunitárias de vivência da fé. Na contramão de igrejas e grupos que agem absurdamente contra o Deus da Vida ao colocarem a vida dos seus fiéis em ameaça, ao promoverem encontros e cultos presenciais, é preciso que os setores sociais e de comunicação de nossas dioceses, paróquias e comunidades atuem coordenamente, com a inteligência do coração, a fim de oferecerem um serviço evangélico de preservação da vida.


Esse serviço passa pelo usufruto dos canais de rádio, televisão e mídias sociais para a conscientização dos fiéis para a gravidade do momento, da urgência do distanciamento social, numa ação planejada a curto, médio e longo prazo. O setor de comunicação deve ajudar a despertar a consciência para o cuidado e preservação da vida e para a solidariedade evangélica de socorro dos pobres. Também deve atuar no combate às fake news e na divulgação das informações verdadeiras, das sérias autoridades sanitárias. Por sua vez, o setor social deve atuar no mapeamento das vulnerabilidades das comunidades e planejar as ações coordenadamente, na perspectiva da pastoral de conjunto, para a resolução dessas demandas. Nunca antes na história eclesial presente, nossas Igrejas precisaram agir com inteligência e coração para serem, de fato, sinal do Cristo Ressuscitado na dura realidade dos nossos tempos em que os pobres são as frágeis vítimas de um inimigo invisível e dos conhecidos inimigos do povo excluído e necessitado. Oxalá não fujamos das nossas responsabilidades que são para além do forrar nossos altares para as liturgias de domingo.