Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

207. Uma fé transformadora

Ler do Início
06.10.2025 | 6 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
207. Uma fé transformadora
Que os discípulos de Jesus peçam: “aumenta nossa fé” não é surpreendente, especialmente quando o Senhor lhes orienta a perdoar até sete vezes. É a esse pedido que Jesus responde com a imagem da fé capaz de transplantar uma amoreira no mar, fazendo-a obedecer ao poder de uma ordem confiante: “se vós tivésseis fé, mesmo pequena como o grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: arranca-te daqui e planta-te no mar’. 
Daí vem a imagem que muitos de nós podemos ter: a de uma fé mágica, capaz de grandes feitos, como se o ato de acreditar nos conferisse poderes extraordinários. Quantos não poderiam testemunhar a esse favor. Com a fé alcançaram milagres; foram curados, salvos, ou realizaram grandes feitos. Mas quantos não alcançaram os mesmos milagres, não foram curados, não se sentiram salvos, nem realizaram grandes feitos? Quantos gritaram “até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: violência! Sem me socorreres?”, como lembra o profeta Habacuc? As respostas fáceis para essa distinção são: “Deus sabe o que é melhor”. Ou “Essa é a vontade de Deus”, vontade ainda que arbitrária. Um Deus que ama a todos, mas ajuda apenas alguns. Ou talvez seria, como não raro escutamos, por falta de fé que o milagre não aconteça. Falta de uma verdadeira fé, forte e decidida, já que de Jesus mesmo escutamos muitas vezes “tua fé te salvou”. Ora, assim, o que falta a muitos, dizem os que conseguiram portentos, é fé suficiente para mover montanhas e amoreiras. Como não sentir o desconforto desse modo de entender a fé, levado às últimas consequências, pois ele parece separar os que têm uma fé do tamanho de um grão de mostarda dos que nem isso parecem possuir. Vamos dar o nome dessa última agressão feita aos que têm fé sim, mas muitas vezes se sentem devendo e aquém de uma fé verdadeira, ao escutar muitos pregadores ensinando que se algum objetivo, material ou espiritual, não foi alcançado, é falta de fé: o nome disso é abuso espiritual. 
Muito pelo contrário: parece que a esses acusados de ter pouca fé, o que não falta é fé, mesmo sem milagres: a fé que os permite atravessar a vida e sua aridez; que permite perseverar mesmo contra toda esperança, que permite fazer face às cruzes impostas pelos outros. Essa fé que permite ficar de pé. É preciso, afinal, muito mais fé, comunhão, filiação a Deus para perseverar naquelas noites escuras, do que para alcançar milagres.
Quem poderia dizer que o que falta a uma mãe que reza por seu filho pequeno, doente, em fase terminal, e acaba o perdendo, é fé? O que faltam às crianças em lugares destruídos pela guerra, quando choram de fome, quando rezam a seu Deus, e a guerra insiste: é fé? Quando um avião cai, ninguém ali teve a fé precisa, decidida, capaz de interromper a tragédia? Faltou fé a Jesus quando rezou: “Pai, afasta de mim este cálice”? Não.  Fé não faltou. Fé os moveu, os sustentou, fê-los continuar vivos e esperançosos no amor de Deus, que não se mostra em milagres, mas em presença que sustenta.
É claro que a fé pode levar a verdadeiras reconciliações com o próprio corpo, pode desenvenenar a alma de mágoas e ressentimentos, através do perdão – e isso pode curar uma vida. É evidente que a fé pode ser um passo autêntico em direção ao autocuidado, um caminho genuíno de superação de certos complexos interiores altamente destrutivos, mas tudo isso nos mostra que a fé é criativa, não mágica. Jesus, apresentado nos Evangelhos, não defende uma ideia mágica de fé, mas uma imagem de transformação da realidade, de criatividade. É pela fé que respondemos com nossa vida ao Deus criador, e fazemos parte de sua criação como criadores criativos. Isso quer dizer: podemos nos colocar como agentes transformadores da realidade, da vida ao nosso redor, do mundo. E são as pequenas coisas, os pequenos gestos, os grãos de mostarda, então, os capazes de causar grandes mudanças, até as inimagináveis, do mesmo modo como é inimaginável uma amoreira plantada no mar. Não importa o tamanho da fé, mas importa que saibamos que são os pequenos gestos de confiança, os pequenos atos e decisões, as pequenas coragens, isso é o que decide a vida. A fé tem grande parentesco com aquilo que podemos chamar de a coragem de ser. Sim, a coragem de atravessar fronteiras que parecem ser decisivas, definitivas. A coragem de lançar esperanças, de se pôr de pé na vida. 
A fé, como a palavra, pode ser altamente curativa e transformadora, mas isso não é mágica. Ela não interrompe as leis do tempo e do espaço; ela não faz cessar a finitude, pois todos nós haveremos de morrer, miraculados ou não; ela não contorce liberdades alheias, não faz dos outros fantoches de nossa vontade, não imuniza de doenças ou tragédias, não cria redomas ao redor de quem confia. Mas ela pode transformar uma vida, abri-la para a visita do infinito, ajudar a atravessar as dores mais pungentes; confere coragem de viver, ajuda na abertura ao amor – tarefa humana radical. E ensina que mesmo o sofrimento e a morte não são decisivos quando a vida se fez dom. A fé é o caminho de fazer da vida um dom. 
Não à toa, a parábola final de Jesus é essa: a fé não é um privilégio, um poder sobrenatural, um jeito de ser preferido ao olhar do Senhor. Mas como o caminho de fazer da vida um dom, a fé é o que nos põe de prontidão para amar e servir. Somos servos inúteis, não por autodesprezo, mas porque o servir não nos faz merecedores do direito de exigir qualquer coisa, não nos torna prediletos e privilegiados, já que o serviço deve nascer da gratuidade e não de uma negociação com Deus. Se for uma negociação, Deus vira um patrão, um senhor severo, e a nossa vida fica presa ao esquema da utilidade-inutilidade.   
O Senhor Deus não irá nos tratar como o senhor da parábola, porque para ele não existem os úteis ou os inúteis, os que têm muita fé e os que ficam sempre aquém: existem, apenas seus filhos. Existem os filhos que ele ama e aos quais confere autoridade: a fé, de fato, é ato e, como tal, não nos aliena de nós mesmos, mas nos impulsiona para Deus e para a vida, que pode ser vivida de outro modo, não como negociação, mas como uma graça, e na gratuidade do serviço.
PUBLICIDADE
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •