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21. Amigos de Deus ou amigos da onça?

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24.03.2015 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
21. Amigos de Deus ou amigos da onça?

“Se fosse um amigo que me insultasse, eu aguentaria;

mas és tu, meu companheiro, meu amigo e confidente”  (Sl 55,13-14)


 


“Amigo é coisa pra se guardar

do lado esquerdo do peito

dentro do coração.” 

(Milton Nascimento e Fernando Brant)



Alegria incomparável é a boa companhia de um amigo, a certeza de ser amado, a experiência da cumplicidade entre aqueles que se querem bem... Uma noite entre queridos, com um bom vinho e conversas amanhecedoras, sem pressa da separação, representa, certamente, uma das maiores possibilidades de prazer que a vida oferece. O Eclesiástico tem razão: “Amigo fiel é poderosa proteção; quem encontrou um amigo encontrou um tesouro!” (Eclo 6,14). Amizade: dádiva sem fim; sinal do amor incondicional de Deus.


A experiência da amizade sempre dignifica a gente. Um amigo sincero, presente, com quem podemos jogar limpo e viver na transparência do que somos, sem subterfúgios ou máscaras, não é coisa que se encontra todo dia. Como dizia meu pai: “Levante as mãos para o céu” quem tem uma amizade assim.


A Bíblia exalta a amizade em vários textos. Belo hino à amizade encontra-se em Eclo 6,5-7. Mas toda a Escritura está perpassada pelo tema da amizade. Jesus chamou seus discípulos de amigos (cf. Jo 15,15); Davi e Jonathas viveram amizade provada nas tribulações da vida (cf. 1Sm 18,1-4); Pedro, Tiago e João eram da intimidade de Jesus e estavam sempre presentes nas ocasiões mais especiais de sua vida.


Se, por um lado, a Bíblia relata casos sinceros de amizade e exalta a relação entre amigos, não faltam também nas Escrituras Sagradas, textos que lamentam a traição de um amigo. Tal experiência é tão profundamente humana que virou tema de diversas orações do povo hebreu, nos salmos (cf. Sl 41 e Sl 55). Jesus mesmo viveu a dor de ser traído por um dos seus: Judas Iscariotes. E caso exemplar temos no livro de Jó, quando Jó, no fundo do poço, é visitado por três amigos – Elifaz, Baldad e Sofar – que mais são amigos da onça que seus amigos de verdade.


O que esperar de amigos que nos visitam quando estamos em crise, na maior angústia, com a vida por um fio, senão apoio e palavras de consolação? O que poderiam nos trazer os amigos que nos visitam senão paz e bem estar, frutos da bem-querência e da ternura que os unem? Bem diz o poema composto a muitas mãos por alguns amigos.



Repente entre amigos


Quando um amigo te visita,


A gratuidade tudo acolhe 

E a bondade se rejubila.


Se o amor encontra espaço, 

A esperança permanece 

E a presença se revela.


O rosto ilumina o porão mais esquecido


E o velho refaz novo,


Olhos d’alma a cintilar.


O inesperado nos conduz


por caminhos impensáveis.

Chegada? 

Permitindo ao coração 

Nova estrada a caminhar.



Mas não foi isso que aconteceu com Jó. Visitado por seus amigos, Jó é humilhado, ultrajado, caluniado... Sua fé é posta à prova; sua índole é questionada; sua conduta ilibada fica manchada por calúnias e palavras de desconfiança. Mas o que aconteceu com a amizade que os unia? Foi para o ralo, dissolveu-se como fumaça no ar, na tentativa de defender uma pretensa ortodoxia da fé. Uma imagem de Deus havia se cristalizado a tal ponto no coração dos tais amigos de Jó que o amor dos amigos foi relativizado em nome da defesa da ortodoxia.


Os amigos de Jó não são amigos de verdade; são apenas amigos de si mesmos. Para não refazer seus conceitos religiosos, para não terem de se virar do avesso para admitir que sua teologia estava caduca, preferiram acusar o amigo. E, ao negar a amizade, pensavam defender Deus. Mas o Deus da vida e do amor – verdadeiro amigo de Jó, apesar das contendas que eles enfrentam – não se faz de rogado. O Senhor não aceitou a defesa dos tais amigos; ele próprio não se conformou com a imagem dele que aquela teologia vigente perpetuava. Afinal, Deus não aceita trocar o amor por nada, nem pela mais pura ortodoxia da fé, porque o amor é inegociável, o afeto não tem preço, a amizade não é coisa que esteja à venda – nem mesmo para ganhar Deus em troca. Caso aceitasse limpar seu nome ao preço da humilhação de Jó e da traição da amizade, esse deus comprovaria não ser mesmo verdadeiro, apenas ídolo criado pela imaginação.


Foi o que aconteceu ao final da história: Deus ficou a favor de Jó, que o enfrentou, e voltou-se contra os amigos da onça, que o defenderam. Deus sabe que quem trai um amigo não é digno de confiança, e a palavra de quem trai um amigo – ainda que a favor de Deus – não tem credibilidade; ela pode também se transformar em traição em relação a Ele quando for conveniente ao traidor. Deus não aceita bajulação, não se encanta com palavras bem-ditas, nem se ilude com ortodoxias. Ele não permite que um amigo seja ultrajado. A amizade é valor tão grandioso que até Deus toma partido dela; Deus prefere ver o seu nome ultrajado que um amigo abandonado.