258. Teimosa esperança
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03.01.2022 | 3 minutos de leitura

Crônicas

“Nós nos gloriamos até das tribulações, pois sabemos que a tribulação produz a paciência; a paciência prova a fidelidade e a fidelidade comprovada produz a esperança. E a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5)
“Deixemos o pessimismo para dias melhores”
(Dito popular)
Quando eu menos esperava, ela chegou. Veio sorrateira com ramos no bico fazendo seu ninho no meu jardim. Era uma pomba macho trabalhando ligeira na arquitetura do novo lar. Haveria de ajeitar um aconchego para a fêmea botar seus ovos. Foi rápido o processo. Quando dei por mim, o ninho estava pronto para ser estreado, fixado numa palmeirinha plantada em vaso de barro que enfeita minha área livre. No começo achei bonito e, curiosa, fiquei vigilante ao processo. Cisco por cisco, folha por folha, pluma por pluma... O ninho tomava forma e parecia macio e bom para servir de caminha para a mãe e de berçário para os filhotes. Vi quando a fêmea aninhou-se e pôs ali os seus ovos. Depois, pacientemente notei como ela os protegia, pois sabia-se grávida de vida. Foi então que, numa bela manhã, observei cascas de ovos pelo chão e soube que o milagre da vida tinha se realizado. Dois filhotinhos indefesos podiam ser percebidos debaixo das asas protetoras da passarinha, por mais que a mãe pomba fizesse de tudo para escondê-los.
Na primeira vez, tudo foi festa e novidade. Mas, com o passar do tempo, juntamente com a graciosidade da vida animal, veio o combo completo. Minha área virara latrina de rolinhas que, sentindo-se donas do pedaço, espalhavam fezes por onde passavam. Resisti a me chatear, convencendo-me dos benefícios da convivência harmoniosa com aqueles bichinhos. Aconteceu, no entanto, que a sujeira pesou mais que a boniteza dos bichinhos e assim que vi os filhotes baterem asas, num piscar de olhos, arranquei o lar dos passarinhos para evitar novas ninhadas. E dei-me por sossegada depois de minha proeza. A paz voltou a reinar; não havia sujeira no meu caminho, nem avezinhas grunhindo nos meus ouvidos.
Passados algum tempo, o pai zeloso procurava o antigo ninho no intuito de retocá-lo para dar abrigo à fêmea prenhe de vida. Tentei espantá-lo com gritos e gestos, mas foi em vão. Persistente, ele me venceu e o ninho estava lá com filhotes de novo. Incapaz de ferir os pequeninos, esperei a hora do voo para me desfazer do ninho, pois “minha área não é latrina de passarinho”, dizia para mim mesma. Os novatos bateram asas e, como uma hecatombe, eu derrubei em fúria o abrigo. E pensei: “Agora, esse pássaro desiste desse ninho”. Mera ilusão! Passados alguns meses, lá estava ele, o macho protetor, com ramos no bico, fazendo de novo o ninho, exatamente no mesmo lugar de antes. Então, como Jeremias exclamei: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir. Numa luta desigual, venceste-me” (Jr 7,x). A natureza, pródiga e persistente, era bem mais sábia do que eu e vencera-me.
Na Sagrada Escritura, a pomba é sinal de vida e esperança. É assim no relato do dilúvio, quando, depois de dias e noites chovendo sem parar, o velho Noé soltou uma pombinha que retornou triunfante com um ramo no bico. As águas haviam baixado e a vida recomeçava, apesar de tudo. No batismo de Jesus, para significar a presença e a plenitude do Espírito no Filho amado de Deus, dizem os evangelistas que uma figura em forma de pomba pousou sobre ele. Depois da enchente de equívocos da história humana, Deus diz que em seu Filho a vida recomeça e a esperança da vida plena continua. Ele, o novo Noé, reúne a humanidade inteira na arca do seu reino, com promessa de vida para todos. Vence mais uma vez a esperança equilibrista, insistente e teimosa, capaz de fazer tudo de novo.
Terminado 2021, não posso deixar de pensar nas rolinhas renitentes do meu quintal. A esperança é persistente, não desiste, não desanima, não se deixa vencer... Apesar da batalha contra o monstro de dez chifres e sete cabeças que, com suas bestas-feras, tomou conta do Brasil, prosseguimos esperançando e fazendo novos ninhos. Não desanimamos da luta, não desistimos do Brasil, não arrefecemos no compromisso com nossa gente tão fragilizada e vulnerável. O máximo a que temos direito é uma pausa para refazer as forças. Gerar ovos, chocá-los e fazer a vida acontecer é trabalho hercúleo. Aprendi desses passarinhos, a arte da persistência. Uma hora a gente vence, nem que seja pelo cansaço, os amigos da morte, que destroem nossos ninhos, matam nossos filhotes e roubam nossas melhores energias.
Feliz 2022, na esperança de novos dias!
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