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200. Em terra de faraós

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12.06.2019 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
200. Em terra de faraós

Ouvi o grito de aflição de meu povo diante dos opressores

e desci para libertá-los” (Ex 3,7)



“Não é vida a vida que se vive como escravo sem ter voz ou vez,
sem lar, abrigo nem centavo.

Pois viver a vida é como a busca da aventura:

Só é vida a vida enquanto a liberdade dura."

(Jaci C. Maraschin)



Não é de hoje que o regime escravocrata perdura na história. Os grandes sempre subjugaram, oprimiram, maltrataram e exploraram os mais vulneráveis. Bem ao contrário do previsto pela Escritura, cujo lema é o cuidado com os mais frágeis – simbolizados nos órfãos, nas viúvas e nos estrangeiros –, a população bem-nascida insiste em manter seus privilégios, mesmo à custa do sangue dos pequeninos.


Quando o povo de Israel, frágil e sem perspectivas de vida plena, soube do crescimento econômico do Egito, correu em marcha para o país da falsa promessa, onde lhe esperavam opressões e trabalhos forçados em vez de prosperidade e realizações como previsto. É o que conta o final do livro do Gênesis, a partir da história do patriarca José, caçula do grande pai Jacó, vendido por seus irmãos para o Egito. Assim, explicavam como foram parar na terra da escravidão: seguiram levados pelo irmão José para fugir da fome que assolava a Palestina, pois os celeiros do Egito estavam cheios mesmo em tempos de penúrias. Nasce aí a explicação para o êxodo da Palestina para o Egito e depois do Egito de volta para a terra natal pelos caminhos tortuosos do deserto.


O fenômeno do êxodo – tão antigo quanto o planeta Terra – não é incomum na atualidade. Todos os dias recebemos notícias de populações inteiras que migram à procura de paz, de estabilidade financeira, de possibilidades de sucesso profissional, ou se deslocam de seus lares simplesmente em busca de proteção para a vida ameaçada por seus tiranos. É típica, por exemplo, a migração para os Estados Unidos, a terra do capital e do consumo. Não só brasileiros, mas também mexicanos, venezuelanos e tantos outros partem para a América do Norte na ilusão de que lá poderão finalmente encontrar condições favoráveis para seu desenvolvimento. No mundo inteiro, sírios, haitianos, africanos em geral perambulam procurando um lar, um lugar para chamar de seu, para repousar a cabeça sem medo de ataques bélicos ou da tortura da fome, da pobreza, das pestes, da exclusão social. O desejo de uma vida melhor se mostra sempre mais forte que as intempéries da jornada, que os percalços do caminho, que a instabilidade de ser estrangeiros num outro país. Assim enfrentam desertos, travessias marítimas perigosas, fome e perseguição, sempre alimentando o sonho de que o amanhã vai ser diferente.


Tendo entrado na terra das promessas, começa, porém, um calvário de dores: opressões, trabalho escravo, perseguições, vida clandestina, marginalização, preconceitos, exclusão. Nada disso é estranho à Escritura que, no livro do Êxodo, detalha as auguras do povo hebreu na terra dos faraós. Matança de crianças, exploração sexual das mulheres, perseguição aos varões que representassem qualquer ameaça, trabalho escravo, vida indigna sem reconhecimento de seu valor produtivo, sem oportunidade de lazer e sem o devido salário. A periferia da vida foi o local que o Egito reservou aos sonhadores hebreus e a dor da escravidão foi o preço imposto a quem ousou se arriscar.


Esses relatos, escritos por ocasião do século VI aC, mas que remetem a uma história bem pregressa (século XII aC), poderiam certamente ser lidos como se escritos no tempo presente em Terra de Santa Cruz. Trabalhadores explorados, leis trabalhistas flexibilizadas, privilégios de patrões, serviço escravo e infantil, ameaça à retirada do direito de greve, não repartição dos bens da produção, jornada pesada e longa de trabalho, apologia ao feminicídio, ao estupro, à discriminação dos diferentes... Essas são algumas das peças do quebra-cabeça montado hoje a partir do interesse de uma pseudo-elite à custa da vida de milhões de brasileiros.


Se já é inadmissível a exploração do estrangeiro, o que dizer da exploração do compatriota, daquele que nasceu na mesma terra, que se encontra mergulhado na mesma cultura, que é filho da mesma “Mãe gentil”? Como entender o fenômeno da opressão e da exploração de uns irmãos sobre os outros? Para a cultura bíblica, nada justifica tal ato. Quando um tirano abomina e espolia os imigrantes, os escritores advertem, fazem invectivas e lutam para que essa realidade não se perpetue. Quando um irmão oprime o outro, os autores – além de advertências ainda mais severas – buscam uma explicação para o fenômeno. Foi o que aconteceu com Jeremias. Conhecedor da história de injustiças dos governos que assumiram o poder em Judá, o profeta tenta explicar esse enigma. A conclusão é dura: “O coração humano é o que há de mais enganador” (Jr 17,9).


Olhando para nosso país hoje, dá para entender perfeitamente a conclusão fatídica de Jeremias. Quem planeja tirar um trilhão da Previdência reduzindo a aposentadoria dos pobres, anuncia corte de infinitas bolsas de pós-graduação, reduz 90% das normas de segurança do trabalho, aprova o uso de uma centena de agrotóxicos altamente nocivos nas nossas lavouras, apoia um pacote anticrime que autoriza matar os pobres, arma os ricos e latifundiários para exterminarem os vulneráveis da terra e faz tantas outras atrocidades, essa pessoa revela toda a maldade de que o coração humano é capaz. O atual presidente da república do Brasil é a máxima expressão da crueldade e da ardilosidade, da capacidade de ludibriar e enganar os incautos. Até o profeta Jeremias, mais que acostumado com as engenhosidades do coração humano, ficaria corado de vergonha e estarrecido diante de tanto mal. Afinal, custa a qualquer pessoa minimamente sensata compreender como alguns sentem prazer em pisar, maltratar e destruir os outros. Vai ser preciso resistir com muita bondade e criatividade em defesa da vida. Nesse governo necrófilo, movido por uma pulsão de morte, só o amor e o cuidado com o outro podem nos dar alguma esperança. Sigamos juntos lembrando do lema da resistência: “ninguém solta a mão de ninguém”. A gente vai vencer o faraó e seu exército pela força do Deus da vida. A libertação virá. E a liberdade de amanhã vale o preço das angústias de hoje.