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102. Vida e morte severina

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11.08.2021 | 5 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
102. Vida e morte severina
A vida é um processo emigratório. Todos emigramos de um ventre. E emigramos para um túmulo. A vida segue seu curso, podemos fazer essa consideração. Mas podemos também nos indagar: qual o curso da vida? Certamente, a ciência diria que esse curso consiste em nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer. Essa observação encontra respaldo na experiência concreta de muitas pessoas que vivenciam essa ordem de vida. Inclusive, a vida de quem envelheceu foi sempre louvada, pois compreendida como sinal de bênção para uma pessoa. Por isso, diz-se que viver é uma graça, dom que é fruto da benevolência do Deus que nos chamou à existência.
Mas não é possível e nem é bom nos enganarmos diante do fato de muitas vidas sofrerem desgraças e não vislumbrarem o passar dos anos. Os sábios bíblicos, inclusive, não se furtaram à verdade ao considerarem que justos e injustos, ou quaisquer outras dicotomias possíveis para pessoas humanas, estão sujeitos a uma vida sem males ou a uma vida desgraçada. Precisamente, ao longo dos anos e com o próprio exemplo de Jesus de Nazaré, superou-se a compreensão de que uma vida é desgraçada porque apartada do olhar cuidadoso de Deus. O enigma da existência, os jogos de poder na história, as cadeias de injustiças servem, em conjunto, à promoção de situações de vida precarizadas, nas quais a plenitude e a abundância estão escondidas no mais abrangente movimento de uma esperança que espera contra tudo, contra todos, contra toda desesperança.
Num contexto de pandemia no qual muitas pessoas são acometidas por diversos males, como uma doença sem cura, a perda do emprego, o prato vazio na mesa à espreita do fantasma da fome, retoma-se novamente os questionamentos sobre o sentido de se estar vivo. Os diferentes contextos sociais, econômicos e culturais darão respostas diferenciadas – mesmo que em forma de silêncio – sobre esse drama que recai sobre todos. As minorias, sobretudo os pobres, são os que mais se veem em desgraça. É imprescindível ressaltar que eles são aqueles cujas vidas sofrem maior ameaça nesse momento, porque estão desamparados e largados à sorte pelas instituições, religiosas ou não, e, sobretudo, pelo Estado, que tem o dever de proteger a vida de seus cidadãos.
Mas em face de um governo genocida – e não há outro modo de compreender a mobilização do governo federal até aqui que não seja a de um extermínio em massa, a partir de um projeto arquitetado na dinâmica de um vírus com alta letalidade –, que atua diuturnamente promovendo o caos, espalhando o medo e sepultando vidas, compreendemos o quão distantes estamos de louvar a vida e sonhar com sua longevidade. Por isso mesmo, nem as mais positivas taxas nutrem a esperança de real crescimento da expectativa de vida ou da simples expectativa de estarmos vivos no dia seguinte.
A baixa expectativa pela existência nos coloca diante de uma travessia na qual os sinais de vida precarizada e de morte se tornam cada dia mais abundantes. E, embora não pareça, acabamos nos tornando solidários uns aos outros no compartilhamento de uma vida e de uma morte severina. João Cabral de Melo Neto, em seu auto de natal pernambucano Morte e vida severina, situa a condição severina dos pobres que são obrigados a emigrar de suas terras à procura de condições de mais vida. Essa condição ganha ecos de universalidade, \"iguais em tudo na vida\", mas não só, os severinos são, também, iguais em tudo na morte:

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Dessa maneira, embora saibamos que apesar de todas as dificuldades a vida severina tem a força raiz de se reerguer mesmo em meio às calamidades, vale considerar que se trata de uma vida de muita peleja que pode não conseguir contemplar o levantar de um novo dia, porque o direito à vida lhe é furtado pelo movimento das engrenagens sociais injustas de exclusão e morte. Essa imposição de uma condição severina não apenas fere o que poderia entendermos como o curso de uma vida biologicamente bem-sucedida, mas, também, de uma vida plena, abundante e digna, que é o projeto de Deus para o ser humano, seja ele quem for. Assim, é urgente a mobilização das forças individuais e coletivas, das instituições e, sobretudo, do Estado, a fim de que superemos o medo de não ver o limiar de outro dia, a fim de que a emigração para a morte, que hoje assola os lares do nosso país, ceda lugar à emigração para um momento no mundo no qual poderemos viver na contingência própria da existência e do seu mistério sem fim.