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57. Fé em tempos de crise

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02.07.2020 | 4 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
57. Fé em tempos de crise
Podemos dizer que estamos à espera de uma passagem (Unsplash/ Andrew Neel)


Há algo em nós que nos convoca a crer

e a confiar na redenção desse tempo de calamidades



A cada semana que passa, nossas vidas vão se constituindo num misto de incertezas e angústias. Muitas famílias vizinhas ou mesmo nossas famílias e nossos círculos familiares começam a experimentar proximamente os efeitos danosos da pandemia de Covid-19, que deixa lastros de dor e luto por todos os lugares. Aumenta entre nós as incertezas relativas à existência. Os planos para o futuro começam a ficar mais tímidos. Inclusive, o futuro começa a ser encurtado e muitos já o pensam a partir do período das semanas. Alguns mais desconfiados arriscam projetá-lo no período dos dias. É fato que o futuro possível das nossas vidas é o segundo do respiro que podemos dar e que nos permite estar e continuar vivos. Mas nunca nossa geração esteve tão confrontada com a impossibilidade de pensar o para além do presente.


Mas ainda assim precisamos considerar que há algo em nós que nos convoca a crer e a confiar na redenção desse tempo de calamidades. Por isso mesmo, não raras vezes, alguém recorda que esse tempo irá passar. Nesse sentido, podemos dizer que estamos à espera de uma passagem. No fundo de nossas expectativas, esperamos que ela não demore acontecer, pois o momento presente é demasiadamente devastador para a vida de muitos. E o que sentimos é a saudade da páscoa, do instante em que não mais nos veremos envoltos em trevas de tristeza, de dor e de morte. Sentimos a saudade do instante em que o horizonte se descortinará para além das nebulosidades. Mas todo esse sentimento se desenvolve justamente quando sabemos ainda menos sobre o que será de nós e quando nos sentimos abandonados às mãos das nossas fragilidades e do que em nós não permanece.


Não me canso de recordar uma máxima entre os/as liturgistas brasileiros/as que considero propícia para pensarmos o presente: "a páscoa de Cristo na páscoa da gente". A pandemia nos suspendeu com Cristo em sua cruz. Vivemos um tempo pascal, não há dúvidas, mas ainda experimentamos a agonia da incerteza das horas e dos instantes e o abandono de Deus em nossas idas e vindas sob a constante ameaça de um inimigo invisível, que a qualquer momento poderá cruzar a soleira das nossas casas promovendo a devastação das nossas vidas. Bebemos a bebida amarga e o alheamento de todas as coisas nas quais depositamos, até agora, nossas esperanças e expectativas, entre essas estão os "cireneus" que poderiam nos estender as mãos nesse momento de dor e não o fizeram.


Mas essa máxima nos ajuda a pensar que podemos crer com resiliência, confiando que acontecerá conosco e com a humanidade a páscoa pela qual ansiamos. Para isso, é preciso reorientar nossas perspectivas e viver esse momento como o de uma entrega. Uma espiritualidade amadurecida sabe que a vida é dom a ser trabalhado e cuidado para que não pereça. No entanto, deve compreender também que se trata de um dom sobre o qual não detemos o senhorio e que passa. Por isso, mais que nos vendermos à ilusão da brevidade de um futuro livre do vírus que nos dilacera, podemos viver os dias buscando uma comunhão profunda entre nós e nossa frágil existência. Fazendo dos nossos dias uma oferta e uma oportunidade única para sermos quem somos em nossas relações, apesar de nossas contingências.


E isso é possível porque somos todos, religiosos ou não, capazes de nos movimentarmos a partir da fé. Não falo, a princípio, da fé teologal, projetada no horizonte cristão, mas da fé que é componente humano e que nos arranca da conformidade com as fatalidades e nos faz acreditar, por exemplo, nesse momento, no árduo trabalho de pesquisadores/as e cientistas, que acenderão uma luz no túnel de nossas incertezas existenciais e que iluminará o presente desolador que vivemos. Mas, aos que respondemos ao convite teologal, a fé convoca a fazermos dos nossos dias o tríduo pascal de nossas vidas, acreditando que não percorremos sozinhos o vale de lágrimas da pandemia e tampouco contamos com o alheamento de Deus. Pois é ele que continua a nos receber em suas mãos, quando, para além da carne, nossas almas se angustiam e fraquejam pelo medo e pavor de nossa fragilidade.