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265. A última tentação

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21.02.2022 | 3 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
265. A última tentação
“Então o diabo se afastou dele, até ocasião oportuna” (Lc 4,14)

“Desesperar jamais;
já vivemos muitos desenganos”
(Ivan Lins)

Como professora de Bíblia, tenho paixão especial pelos Evangelhos. São de uma beleza criativa e de uma riqueza simbólica de dar gosto. Adoro a metáfora do deserto para falar das provações de Jesus ao longo de sua vida, como qualquer um de nós pobres humanos nessa peregrinação terrena. O primeiro a citar a cena é Marcos, o inaugurador do gênero evangelho. Marcos diz apenas que Jesus foi levado ao deserto pelo Espírito e lá foi tentado por satanás (Mc 1,12-13). Mágica contradição! Por que diabos o Espírito levaria alguém – especialmente o Filho amado de Deus – para o deserto onde satanás o aguardava cheio de artimanhas? A narrativa de Marcos já começa intrigando a gente.
Os Evangelhos que se seguiram – Mateus e Lucas – parecem ter conhecido Marcos. Mas como a criatividade continuava solta, Lucas e Mateus relatam três tentações, coisa à qual Marcos não se referiu. Nós estudiosos da Escritura dizemos que veio da Fonte Q (de Quelle – em alemão Fonte), assim como falamos dia D ou hora H. Apesar de serem praticamente as mesmas tentações, os dois evangelistas apresentam-nas numa ordem diferente (Mt 4,1-11; Lc 4,1-13). Ambos, porém, estão de acordo com Marcos: Jesus foi provado pelo diabo e aprovado por Deus, bem diferente do povo de Israel, o filho querido de Deus no Antigo Testamento, quando saíra do Egito e vagara a esmo pelo deserto. Israel que foi provado e reprovado, pois caiu no desespero cada qual tentando se safar das vicissitudes daquela caminhada. Esqueceram-se que foram libertados pelo Deus libertador como um povo, uma nação por ele socorrida e não cada um por seu próprio mérito ou individualmente. Assim, os evangelistas nos dizem que Jesus é o Novo Israel, o Filho amado que não decepcionou seu Pai, que pôs nele sua confiança.
Certamente não vamos acreditar que Jesus passou 40 dias no deserto sem comer nem beber e ainda por lá encontrou-se com o diabo e se pôs a bater boca com ele. Todo biblista e todo cristão de juízo sabem que o deserto é metáfora para falar da vida e que o número 40 representa um tempo para atingir a maturidade. Quarenta dias para curar o resguardo, tempo em que a mulher se guardava de serviços pesados e até da relação sexual para se reestabelecer e voltar inteira para a peleja da vida. Quarenta anos no deserto rumo à Terra Prometida, tempo suficiente para se despedir de uma geração e para que outra geração recomeçasse a luta da fidelidade. 
A vida é mesmo uma quarentena! A gente sai de uma peleja e entra em outra. Quase sempre saímos estropiados e nos curamos dos primeiros arranhões na próxima batalha que empreendemos. A vida vai curando umas cicatrizes e fazendo outras. Somos provados a toda hora, não pelo diabo ou satanás, mas pela nossa própria natureza frágil e débil, pouco resistente aos maus-tratos dessa sociedade insana. A Carta de Tiago já nos disse mais ou menos isso: Ninguém diga quando for tentado: "É Deus quem me tenta". Cada um é tentado por sua própria fraqueza que o seduz e alicia. Quanta sabedoria desse judeu do final do século I d.C.! Ser gente é uma tarefa muito difícil, dificílima!  O importante não é, pois, o número das tentações da vida, nem quem é o tentador. O importante é saber-se fraco e confiar no amor do Pai para ficar firme na provação. Em outras palavras, o que vale não é se somos tentados, mas se, ao final de tudo, somos aprovados.
Tenho procurado viver esses tempos difíceis de pandemia como os 40 dias de Jesus no deserto: guiada pelo Espírito, sem revoltas e sem desejos de salvar somente a minha pele. Sei que uma pandemia – ainda mais associada a esse governo genocida – não tem fim a não ser num pacto coletivo. Não posso fazer pedras virarem pães para saciar a minha fome, se ao meu lado tem uma infinidade de filhos amados de Deus sofrendo tentações ainda piores. Jesus não caiu nesse engodo. Como parte do gênero humano não podia resolver só o seu problema e deixar que a humanidade se explodisse nas garras do tentador. Apesar da falácia do tentador, “se és filho de Deu transforma essas pedras em pães”, Jesus não se deixou seduzir. Fez seu pacto coletivo com a humanidade da qual faz parte, e todo privilégio deveria ser recusado mesmo que fosse sob a alegação da filiação divina. 
Aprendendo de Jesus nos Evangelhos, estou cada vez mais convicta de que não podemos viver num verdadeiro “salve-se quem puder” ou num tal de “Deus nos acuda”. Ou nos salvamos cuidando uns dos outros ou não há salvação para nós mesmos porque já teremos nossa humanidade morta. As eleições que se aproximam nesse ano de 2022 vão nos falar bastante sobre o pacto coletivo dos brasileiros ou sobre a ilusão do individualismo. Quando saírem o resultado das urnas, sendo um país majoritariamente cristão, saberemos se fomos provados e aprovados como Jesus ou se caímos nas artimanhas do tentador. Torço para que os cristãos abram os olhos e não se deixem iludir pelas bestas-feras. Quem não defende a coletividade não pode se dizer cristão, mesmo que seja validamente batizado. 
Mateus diz que depois das tentações, o diabo afastou-se de Jesus e os anjos o serviam (Mt 4,11). Lucas é mais desconfiado e guarda uma última tentação de Cristo para o momento final de sua vida (Lc 4,13). Como sou lucana, sei que, ainda que vençamos a tentação dessa direita fascista, o diabo não cede fácil. Procurará sempre nova ocasião para uma última tentação. Vai ser preciso resistir sempre.