192. Sobre a arte de entender sem compreender


“Mal podemos conhecer o que há na Terra,
e a muito custo compreendemos
o que está ao alcance de nossas mãos” (Sb 9,16)
“O bom é ser inteligente e não entender.
É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais, mas pelo menos entender que não entendo”.
(Clarice Lispector)
A manhã raiou clara depois de muitos dias cinzentos e chuvosos. O sol convidava a um passeio. “Uma caminhada faria bem aos ânimos”, pensei. Os sentimentos sempre acham o lugar mais oportuno na cabeça e no coração quando a gente faz um pouco de exercício físico. Movimentar o corpo levando-o até a fadiga costuma trazer clarividência aos pensamentos e afetos.
Assim foi. Caminhar me fez bem, mas não sei se os sentimentos andam embaralhados demais ou se a marcha foi pequena para o tanto de coisa que exige ser ajeitada no recôndito do coração... Voltei ainda pensativa, apesar de mais aliviada.
O bem-estar de hoje, para minha surpresa, não veio com a dopamina e a serotonina que o exercício físico é capaz de produzir. Ele começou a chegar quando, no retorno para casa, encontrei um morador de rua perambulando com uma sacola nas costas e uma garrafinha de água na mão.
Negro, pobre, abandonado, sem referências, sem dinheiro, sem casa e, certamente, sem forças senão para andar pra lá e pra cá, meu salvador veio em minha direção. Eu esbocei um sorriso de cumprimento, que como mágica morreu no canto da boca. Altivo e garboso, bem diferente dos viandantes sem destino, o andarilho exerceu fascínio sobre mim. Como quem queria me dar uma lição, passou ao largo exibindo uma camiseta preta com os seguintes dizeres no peito: “Não dá para compreender, só vivendo”.
Fiquei paralisada! Eu estava a dias refletindo sobre a vida humana, tentando entender os caminhos que as pessoas tomam, a direção que dão para suas vidas, as escolhas que fazem. “Não dá para compreender, só vivendo”. Bem ali à minha frente estava a resposta para minhas angústias.
Lembrei-me da frase atribuída a Clarice Lispector: “Não se preocupe em entender; viver ultrapassa qualquer entendimento”. Não sei se a escritora escreveu mesmo isso. Mas – se não escreveu – escreveria, penso eu, nem que seja só para me chamar à vida tal como ela é; só pra me arrancar da pretensão de tudo saber ou de tudo explicar, eu que ando afadigada querendo compreender o coração humano.
Se a figura de um andarilho sempre me inquieta, hoje me acalmou. Quando ele se pôs à minha frente, foi como se eu saísse de mim e entrasse nele. Por um instante, eu fui um andarilho errante. Por um instante, me vi abandonada e só, sem casa, sem amigos, sem comida, sem dinheiro, sem rumo, sem nada… Por um instante, só por um instante, entendi – sem compreender nada – como é difícil ser si mesmo.
Por um instante, carreguei sua cruz, como o Cirineu a de Jesus. Por um instante, o entendimento me possuiu – sem necessidade alguma de silogismos. Entendi que amar é bem mais que explicar, que saber os porquês, que dar as razões… “Coração humano é terreno que ninguém pisa”, diz o dito popular. De fato, melhor amar que procurar explicações… Afinal, “a gente não é o que gostaria de ser, mas o que consegue ser”, dizia um querido amigo, a quem nunca consegui compreender, mas somente amar.
Ao olhar para aquele andarilho errante, entendi – por pura empatia – não por raciocínios, como é duro viver só, perambulando… Só por um instante, um mistério de compaixão me dominou, bem mais que as perguntas inquietantes que me perturbavam. E decidi seguir perambulando pela vida, sem compreender, sem exigir explicações, sem querer iluminação para todos os eventos que me envolvem. Decidi amar como puder, nos limites que a vida impõe. Decidi optar pelo amor e viver à revelia de muitas explicações. Seria, como dizia meu pai, fazer papel de bobo? Talvez! Mas há vantagens em ser bobo, disse Clarice. E isso ela disse mesmo, não estou inventando, nem tirei de algum site pouco confiável da internet: “Só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo”.
Há uma sabedoria que não vem por meio de dissertações e teses, nem é adquirida nas academias, mas na escola da vida. Recordando outra poetisa, Cora Coralina – esta não escolarizada como Clarice, mas tão sábia quanto, “o saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria, se aprende é com a vida e com os humildes”. Parafraseando o designer do andarilho: “Não dá pra compreender, só amando”.
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