190. Na mão e no coração
Ler do Início
23.06.2025 | 13 minutos de leitura

Diversos

Há uma cena no evangelho de Marcos (10-5-10) em que os fariseus procurando Jesus para testá-lo, ou tentá-lo (v. 2), se preferirem, perguntam se é lícito ao homem repudiar a mulher por qualquer motivo (v. 2-4). Recorrendo o livro do Gênesis, Jesus diz: “Desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher [...], e os dois se tornarão uma só carne” (v. 7-8). E atesta: “o que Deus uniu o homem não separe!” (v. 9). Os fariseus insistem que Moisés ordenou dar carta de divórcio e repudiar a mulher (v. 4). Jesus responde: “foi por causa da dureza de vosso coração que Moisés escreveu este preceito” (v. 5).
Interessante notar como Jesus, lendo a lei de Moisés, não a toma pela letra, mas reconhece seu fundamento prático e corretivo: é por causa da dureza do vosso coração que assim é, ele diz. E o principal: Jesus remete sua argumentação a uma tradição anterior a Moisés, a fim de deslocar a interpretação de seus adversários. Essa genética que Jesus realiza, indo ao princípio, para mostrar que “nem sempre foi assim” e que os usos da lei, e sua interpretação, são também condicionados aos momentos da vida da comunidade, e a suas questões bem específicas e localizadas, faz pensar. E o uso desse texto, que por si só merece um comentário teológico específico, coisa que não faremos neste pequeno artigo, está aqui para favorecer o procedimento genético que queremos propor, a respeito de uma querela no coração das comunidades atuais: a comunhão eucarística recebida na mão ou na boca. Tomaremos deste texto de Marcos o princípio que Jesus adota: quanto mais antigo (livro do Gênesis), mais anterior, mais genuíno o costume.
Trata-se de uma querela, certamente, mas em voga no coração das comunidades, especialmente com a proliferação dos conteúdos católicos de Instagram e Tiktok. Um problema antigo, então, mas pasteurizado e reinserido nas redes. A qualidade desses conteúdos digitais é questionável, não só pelo tempo de tela que os conteúdos da fé (que têm percurso histórico, teológico, discursivo) ganham – afinal os recortes são sempre perigosos –, mas, também e principalmente, porque tais conteúdos são submetidos a ideologias e narrativas que estão sob a marca da disputa política e não teológica.
Explico: a mesma rachadura que incidiu no Brasil, e no mundo, entre narrativas progressistas (lidas como ações da esquerda) e posturas conservadoras (lidas como ações da direita), incidiu também na teologia. O esgarçamento dessa tensão produziu também o acirramento e a radicalização de certas posições e o surgimento de uma nova ultradireita marcada pela posição neofacista e incrementada pelas políticas neoliberais. Essa disputa narrativa se tornou uma guerra de discursos. Essa calda política se prolifera, sobretudo, nas redes sociais e, marcadamente sob o véu religioso, muitos grupos, leigos e religiosos mascaram narrativas ultraconservadoras e posições fundamentalistas. O uso da lei religiosa, e da norma católica, é usada nesse contexto não sob a casuística necessária, que inclusive o Catecismo da Igreja Católica pressupõe, nem sob a interpretação teológica, mas com a frieza da letra. E esse uso é disseminado como conservador, católico por excelência, mais rigoroso e, por isso, mais santo. As novas conversões ao catolicismo, nesse contexto, constituem o novo cenário das paróquias digitais. E onde os sujeitos se informam, buscam “catequese”, senão nas redes sociais ou nas informações disponíveis na internet, geralmente subsidiadas por posições formalistas, rigoristas, fundamentalistas? A eucaristia não fica de fora dessa discussão e toda a piedade e devoção à eucaristia fica presa em querelas que, a rigor, são divisões no corpo do Senhor, por razões que precisam ser corrigidas.
A resposta à pergunta “a comunhão deve ser dada na mão ou na boca?” poderia ser dada recorrendo à instrução Redemptionis Sacramentum (2004) do Vaticano, que afirma: “o fiel sempre tem o direito de escolher se deseja receber a comunhão na língua ou na mão (n.92), desde que esteja permitido em sua região”. Isso, porque o próprio Código de Direito Canônico não especifica a forma física da recepção (na mão ou na boca), e esta decisão fica, então, submetida à autoridade da Igreja local (as Conferências Episcopais), ou seja: não aos padres de internet, nem tampouco aos influencers católicos. Contudo, essa resposta normativa que resolve a questão em termos de “pode ou não pode” não resolve o problema que parece necessitar de uma genética teológica que abra a consciência e permita melhor decisão.
Se retornarmos, pois, aos textos bíblicos, especificamente aos textos que narram a última ceia (Mt 26, 26; Mc 14,22; Lc 22,19; 1Cor 11, 23-24), encontraremos algumas expressões (e também o contexto judaico da ceia) que permitem inferir, sem sombra de dúvidas, que o pão sobre o qual se reza a ação de graças, nas primeiras comunidades, era partido, tomado pelas mãos, passado de mão em mão e comido, mastigado. O uso do verbo grego lambánõ (λαμβάνω) tem essas características: significa tomar (ativamente), receber (passivamente) e segurar com a mão (objetivamente). O contexto judaico é claro sobre isso: a prática comum e natural é tomar o pão com as mãos e comer.
Também os padres da Igreja dos primeiros séculos abordam o modo de receber a eucaristia, dando especial destaque à reverência com que essa deveria ser recebida. A grande questão dos padres não era, de modo algum, sobre a forma externa de receber o pão eucaristizado, mas sobre a atitude interior do comungante. Contudo, muitas catequeses permitem entrever que a comunhão era administrada nas mãos e não diretamente na boca. Sobre isso, um bom exemplo é São Cirilo de Jerusalém (+386):
Aproximando-se, não estendas as palmas, nem mantenhas os dedos separados; mas faz de tua mão esquerda um trono para a direita, pois esta deve receber o Rei, e na cavidade da palma, acolhe o Corpo de Cristo, dizendo: Amém. Santifica com cuidado teus olhos pelo contato com o Corpo santo, e depois consome-o, tomando cuidado para que nada se perca (Catequese Mistagógica V).
Também São Basílio Magno (+379), em sua carta 93, diz:
Receber a comunhão na mão não é algo irregular ou proibido – especialmente em tempos de perseguição ou necessidade – mas deve ser feito com reverência e com as devidas disposições espirituais.
Portanto, a tradição mais antiga mostra que a comunhão era dada nas mãos, com orientação para evitar o desrespeito, cuidando da atitude interior; a fé e o espírito de unidade com a Igreja. Mas essa prática obviamente se modifica. E por quê?
Uma das razões é a crescente mudança na teologia da eucaristia, que vai culminar na equivalência entre presença real de Cristo e presença física. Essa culminância, desde já, é um equívoco: a presença real de Jesus é sua presença sacramental, verdadeira, de fato, substancial, mas que não equivale a uma presença física. Essa compreensão, essa virada teológica, começa a encontrar ecos no século VII. Mas o que vai começar a motivar mesmo a mudança para a comunhão na boca é o medo de abusos e perda de partículas, os casos de sacrilégios e a dificuldade do controle pastoral por causa do crescimento da cristandade. Contudo, o grave marco do século VII, para essa mudança é a separação entre o clero e o povo, os leigos. Essa separação leva à ideia de que só o clero pode tocar o corpo de Cristo, por causa de suas mãos ungidas. E, então, o Concílio de Rouen, no ano de 878, recomendará que a comunhão seja dada diretamente na boca.
No século XI, a polêmica sobre a presença real de Jesus na eucaristia ganhou grande relevo, especialmente porque Berengário de Tours (+1088), respeitado professor na escola catedral de Tours, na França, defendeu que a presença de Jesus na eucaristia era simbólica e não substancial. Essa defesa foi considerada herética pela Igreja e foi combatida. Essa suspeita sobre a presença real de Jesus marcou a Igreja, e suas condutas posteriores buscaram investir em tudo aquilo que ressaltasse a presença real de Jesus, desde a devoção ao sacramento da eucaristia, a liturgia, o modo de receber a eucaristia etc. Em face da dúvida, a Igreja precisou definir com maior precisão teológica o que sempre creu. O aumento da solenidade na missa, desde o uso do incenso aos paramentos ricos e a adoração no momento da elevação da hóstia (que começa no século XII e se consolida no século XIII), vem desse momento. É nessa época, a partir do ano 1264, que se começou a rezar a festa de Corpus Christi, para promover a adoração pública e solene da eucaristia. E a resposta teológica vem, sobretudo, de Tomás de Aquino, que sistematiza a doutrina do sacramento com sua lógica da transubstanciação, afirmando que a substância do pão e do vinho deixa de existir, restando apenas sua aparência (e acidentes). Mas em lugar do pão e do vinho, está o Corpo e o Sangue de Cristo.
Do século XII em diante, a comunhão na mão desaparece no Ocidente. O Concílio de Trento (1545-1563), ao combater o protestantismo e reafirmar a presença real de Jesus, legitimará a comunhão na boca. A comunhão seria, desde então, administrada na boca, pelo presbítero e o leigo a receberia ajoelhado. Mas a eucaristia estava mesmo protegida do sacrilégio com a comunhão diretamente na boca? Numa missa em latim, em que o povo rezava outras orações, enquanto apenas o padre sabia o que estava recitando, estaria o corpo e o sangue do Senhor protegidos de abuso? A comunhão na boca garante a verdadeira disposição, aquela que os padres dos primeiros séculos tanto incentivavam: a disposição interior, a consciência da reverência, o conhecimento da grandeza do mistério celebrado? Não necessariamente. Aliás, se a eucaristia era coisa do clero, não estava o povo alienado do sacramento de sua salvação? Não estava assim em risco, um dos axiomas fundamentais da fé: lex orandi, lex credendi; já que o crer estava truncado justamente pelo rezar alienado; ou o contrário: o rezar estava truncado, porque o crer não chegava ao coração e à disposição interior, mas era só formal e legal? Além disso, o corpo de Cristo não estava dividido, sem que seus membros pudessem, eles também, oferecer o sacrifício que virou “objeto do clero”?
A reforma do Concílio Vaticano II (1962-1965) prescreve “uma participação mais ativa, consciente e frutuosa” dos fiéis na liturgia (Sacrossanctum Concilium, n. 11,14). Recupera assim que a participação efetiva dos fiéis é participação como corpo de Cristo, e um corpo não é sem cabeça, tampouco sem membros. Estes também são ofertantes do sacrifício que forma a Igreja: a Igreja faz a eucaristia e a eucaristia faz a Igreja. E o ministro ordenado que preside a celebração eucarística não age apenas in persona Christi (pessoa do Cristo), mas também in persona Ecclesiae, em nome da comunidade, autorizado por ela, a serviço dela. O Vaticano II também recupera elementos da mais antiga tradição da Igreja, com seu movimento bíblico, patrístico e com a revisão de rubricas, simplificando ritos e autorizando o uso do vernáculo. Curiosamente, essa abertura jamais prescreveu renúncia à reverência ou à fé na presença real de Jesus na eucaristia, coisa de que o Concílio Vaticano II é falsamente acusado.
São esses mesmos movimentos que recuperam a reverência que há também na comunhão na mão, já que a compreensão é de que a disposição deve ser interior e a fé na presença de Jesus, a verdadeira adoração. A língua não é mais santa do que a mão; o gesto não é mais fundamental do que a fé com que se crê, naquilo que se reza; e a comunhão com a comunidade é mais importante do que o individualismo das opiniões. Há quem comungue na boca não por reverência a Cristo, mas por vaidade: para mostrar-se mais reverente ao mistério que recebe, que outras pessoas. Há quem se revista de piedade não para louvar a Deus, mas para louvar a si mesmo e ao próprio ego, autorreferenciando-se como melhor que os outros. Na era das redes sociais, quando o ser visto tem mais importância que nunca, os gestos performáticos parecem ocupar a centralidade também na liturgia da Igreja. A performance litúrgica não ressalta a sacralidade do celebrado, mas a sacralidade de quem celebra e esse é um dano nefasto. Ressalta a piedade do comungante (e às vezes a sua arrogância) não sua disposição interior em fazer comunhão.
A abertura do Concílio Vaticano II, duramente criticado por ultraconservadores, está na continuidade com a fé da Igreja. As conferências episcopais, ao reintroduzirem a comunhão na mão, não buscam dessacralizar a fé na eucaristia, mas abandonar a má-fé que é empreender que nossa língua é mais santa que as nossas mãos (aliás, há um capítulo inteiro da carta de Tiago sobre os pecados da língua; nenhum, porém, sobre os pecados da mão - Tg 3). E embora a Igreja jamais tenha proibido a comunhão na boca (Memoriale Domini -1969), também não fez disso um dogma ou uma essencialidade teológica. Ou seja: a rigor, não respeita ou reverencia mais a eucaristia quem a recebe na boca, não é mais santo nem mais digno. Também não tem, necessariamente, mais consciência do que recebe e da importância do que recebe quem comunga na língua, diretamente. Tampouco significa que é menos sacrílego, pois pode abusar da fé, correndo o risco de ser irreverente ao mistério. Como por exemplo, em época de COVID-19, quando as instruções das conferências eram claras sobre receber a eucaristia na mão, ao invés de diretamente na língua, muitos fiéis, a despeito do risco para a própria vida e dos irmãos – vida que é dom de Deus, exigiam a eucaristia na boca, por pura devoção. Essa devoção não era de modo algum uma maneira de louvar a Deus, mas era, literalmente, comungar a própria condenação e expor-se a si e aos outros ao risco. Receber a eucaristia na mão, com a devida reverência, de modo algum desonra a presença real de Jesus, nem dessacraliza a importância do que se recebe, ao contrário, remete o comungante ao costume e princípio mais original da ceia eucarística.
Logo, vemos que, nessa genética do gesto de receber a comunhão, a tradição mais antiga é a de a receber a hóstia na mão e no coração, com reverência. Como Jesus, poderíamos dizer: é por causa da dureza do vosso coração, por causa da falta de fé, que a disciplina mudou e passamos à comunhão diretamente na língua. O salto que se tenta praticar diante de tal disciplina, porém, é a de elevá-la a status de norma religiosa, enquanto é uma orientação e opção (que pode ser interrogada quanto aos seus fundamentos, inclusive, já que a fé não é um dado individualista). A tentação da catequese midiática é fazer dessa orientação uma obrigação, um dogma, uma essencialidade à compreensão da eucaristia. Nada disso. Se for o caso: antes na mão e no coração, do que na língua e na cabeça, sem jamais chegar ao coração da fé.
-
456. Quero um poema09.07.2025 | 1 minutos de leitura
-
455. Catedrais02.07.2025 | 1 minutos de leitura
-
453. nascimento02.06.2025 | 1 minutos de leitura
-
452. Cristal22.05.2025 | 1 minutos de leitura
-
448. fome e sede18.04.2025 | 1 minutos de leitura
-
445. Peneira27.03.2025 | 1 minutos de leitura
-
441. Cagaita16.01.2025 | 1 minutos de leitura
-
437. onda05.12.2024 | 1 minutos de leitura
-
433. clarice20.11.2024 | 1 minutos de leitura
-
432. renovadas esperanças14.11.2024 | 1 minutos de leitura
- 189. Uma pergunta: Quem é Jesus?19.06.2025 | 11 minutos de leitura
- 188. “Uma paz desarmada e desarmante”: A preocupação pastoral maior do Papa Leão XIV26.05.2025 | 4 minutos de leitura
- 187. Com Francisco, Deus passou por esse mundo29.04.2025 | 5 minutos de leitura
- 186. Devemos usar correntes para simbolizar que somos escravos de Maria?15.04.2025 | 4 minutos de leitura
- 185. Cobrir as imagens na quaresma07.04.2025 | 2 minutos de leitura
- 21. Serviços de Proteção (II)31.03.2025 | 8 minutos de leitura
- 184. Fraternidade e Ecologia Integral21.02.2025 | 5 minutos de leitura
- 183. Um só povo, um só coração28.11.2024 | 6 minutos de leitura
- 182. Conversão, caminho de quem crê19.11.2024 | 3 minutos de leitura
- 181. A missão nossa de cada dia…31.10.2024 | 4 minutos de leitura