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184. Trabalho escravo

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25.07.2018 | 4 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
184. Trabalho escravo

“O operário é digno de seu salário” (1Tm 5,18)



 “E sem o seu trabalho,

Um homem não tem honra.

E sem a sua honra,

Se morre, se mata.

Não dá pra ser feliz”

(Gonzaguinha)



Quando parece que o trabalho escravo começa a ser erradicado no Brasil, quando a gente pensa que as leis vão se tornar mais severas e a fiscalização vai ser mais rigorosa punindo os patrões que exploram seus empregados, lá vem a carestia obrigando os pobres a se sujeitar a qualquer condição trabalhista para não morrer de fome. O trabalho escravo – nunca extinguido no país – mostra sua cara de novo. “Um dia de trabalho por um prato de comida! Um mês de peleja pelo direito de morar numa espelunca qualquer!”. Assistimos ao retorno da escravidão, que não poupa mais os brancos – apesar de punir sempre mais os negros – nem é praticada somente pelos senhores do engenho.


No dia de Corpus Christi, saí para caminhar lá pelas nove da manhã. Mal botei o pé fora de casa e vi uma senhora tocando os interfones dos apartamentos do prédio ao lado, oferecendo-se para uma faxina em troca de uma lata de leite em pó especial para recém-nascido. Uma humilhação sem tamanho! Depois de ouvir a negativa de sua oferta, ela insistia suplicante: “lavo, passo, cozinho, faxino, faço o que tiver de trabalho na casa por uma lata de leite no fim do dia! Posso limpar os vidros, lavar as cortinas...”. Elencava uma lista sem fim de trabalhos domésticos implorando o direito de trabalhar. Não pedia comida, nem esmolava dinheiro. Pedia trabalho em troca de “pão”.


A senhora não me dirigiu a palavra, mas era impossível não escutar o seu lamento, não me sensibilizar com a situação, não me solidarizar com a sua causa. Fingi não escutar, como o levita e o sacerdote da parábola do Bom Samaritano, presente em Lc 10,25-37. Atravessei a rua e me fiz de cega e surda. Até que o meu coração se partiu, minhas entranhas se reviraram, minha consciência pesou e eu voltei para conversar com ela. Depois de escutar a ladainha de seus ais, de saber que ela era avó de um recém-nascido, filho de uma adolescente de 17 anos etc. etc. etc., resolvemos o problema da lata de leite, mas certamente não o problema do seu desemprego. Daqui a poucos dias, ela vai ter de se oferecer para outro trabalho nas mesmas condições, se não quer ver seu neto morrer de inanição.


Verdades e mentiras à parte – como saber se a senhora é uma Fernanda Montenegro das ruas? –, nada me faz esquecer aquela cena. Nossa gente perdeu o resto de dignidade que havia conquistado a duras penas. Nossas leis retroagiram, o arrocho econômico se faz notar, o preço dos alimentos cresce exponencialmente – apesar de a inflação estar sob controle, dizem os economistas...


E quem dera essa pobre senhora fosse a única nessa situação. Mas não! No Brasil, são milhões de pessoas em situação similar. Não faz muitos dias, soube que um conhecido trabalhava em troca de casa e comida. Criado nas ruas, sem uma alma boa para zelar por ele, sobreviveu à selva da cidade. Depois foi parar numa comunidade religiosa onde alimentou a esperança dias melhores, até que se viu de novo ameaçado pelo fantasma das ruas, quando foi mandado embora, pois “não tinha vocação”. Sem saída, tornou-se motorista de um ricaço católico em troca de casa e comida. Se isso não é escravidão, então precisamos mudar os dicionários. Como diz uma amiga: “Não é escravidão não! É o Egito!”.


Certamente não sabemos como resolver essa situação tão recorrente, mas ficar conivente com essas explorações, sem denunciar os absurdos desse sistema econômico, não condiz com nossa opção cristã. É preciso mais do que não fazer o mal; é preciso fazer o bem, estender a mão ao fragilizado, denunciar os desmandos dos poderosos e não achar normal o empobrecimento de tanta gente no país.