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183. Indiferença

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18.07.2018 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
183. Indiferença

“Até quando, Senhor?” (Ap 6,10)



Primeiro levaram os negros.

Mas não me importei com isso,

Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários.

Mas não me importei com isso,

Eu também não era operário”

(Bertold Brecht)



O dia amanheceu como todos os outros, exceto pelo fato de minha garganta estar inflamada exigindo-me um pouco de descanso e alguma medicação. Eu aproveitava que era sábado, semestre findo, para compartilhar com meus contatos um vídeo do governo do Pernambuco sobre o feminicídio, uma campanha bonita de conscientização acerca da violência contra a mulher. Ando empenhada em utilizar as mídias para divulgar essas campanhas bacanas. Já passou da hora de as comunidades eclesiais assumirem essa causa. Em nossas igrejas cristãs, o que não falta é aquela D. Maria que apanha do marido, a D. Elza que apanha do filho, a Marizélia que foi estuprada e ficou calada, a Maísa que tem de tolerar o patrão se engraçando para o seu lado, a Joana que sofre bullying no trabalho, mas tem medo de denunciar e perder o emprego. A sacristã, a ministra da eucaristia, a catequista, a beata que puxa o terço, a secretária paroquial e a líder da comunidade, quase sempre são mulheres subjugadas, violentadas, silenciadas e ainda agradecidas por estarem vivas. Mulheres guerreiras, mas cansadas de tanta luta inglória!
Mal eu tinha terminado de disparar as mensagens, tocou o interfone. Era Dona N., catadora de papel e outros recicláveis, que conheci outro dia revirando latas de lixo pela rua. Eu saía para a Faculdade, para garantir o salário do mês. Ela revirava o lixo por bem menos, com certeza. Sugeri a ela que, nos sábados pela manhã, me procurasse no meu apartamento, pois eu guardaria o reciclável para ela.
Passaram-se quinze dias e nada. Mas hoje ela resolveu vir, pra me fazer mais gente e tornar minhas causas mais legítimas. Veio inflamar minha ira e alimentar minha esperança. Veio buscar o que me sobra, mas me deu do que tem de mais precioso. Entrou na garagem com minha permissão, mas na minha vida entrou sem pedir licença. Foi um encontro único! Daqueles que faz a gente se reinventar depois de um único instante.
Dona N. me contou que passou a trabalhar com recicláveis porque ela e o marido estão desempregadas. Tem 49 anos, mas as marcas no rosto são de quem já viveu demais. Perguntei se não tinha aposentadoria e me respondeu que era velha só na aparência: já sofreu muito na vida. Viúva duas vezes, ajuntada com um pobre coitado que não tem onde cair morto, Dona N. paga aluguel de um barraquinho no bairro onde moro com o dinheirinho de seu trabalho. “Pra pagar o aluguel precisa fechar a boca. Ou a gente come ou tem onde morar”, disse ela, traçando uma cruz sobre a boca.
Como se não bastasse a dor da pobreza e do abandono, Dona N. confidenciou-me que não sai mais cedo de casa para revirar o lixo; espera o dia clarear. Tem medo. Foi estuprada a dois quarteirões de minha casa, quando madrugava a caminho da lida. Além da violência sexual, sofreu violência física. Chegou em casa humilhada e com sangue escorrendo pela boca. Animada por vizinhos, denunciou na delegacia da mulher. Mas, porque tudo pode piorar, Dona N. foi ameaçada pelo patrão do estuprador, que a buscou em casa e a levou de carro à delegacia para retirar a queixa. O perverso do patrão mostrou seu poder à pobre coitada e escondeu o estuprador em terras distantes. Quando voltou à delegacia, a delegada bem que perguntou se ela estava sendo pressionada a retirar a queixa, mas Dona N. negou. Teve medo. O patrão do estuprador lhe dissera: “Já tenho um BO na polícia; não penso duas vezes para me meter num outro. Não sou homem de ser contrariado”. Dona N. temeu por sua netinha que tem necessidades especiais. Calou-se. “Foi melhor assim”, me confidenciou, “podia ter tragédia maior”.
Dona N. voltou ao trabalho, porque “a vida não para, não para”, como cantava cazuza. O estuprador deve estar fazendo outras vítimas, pois, como diz o Livro do Eclesiástico, o malvado não se cansa e está sempre planejando outros males (cf. Eclo 11,31-33). E o mal elemento do patrão está manipulando outras consciências e coagindo outros pobres coitados! E a vida segue. E eu vou continuar levantando cedo para trabalhar na Faculdade; e Dona N. vai continuar revirando lixo e sofrendo outras violências além da pobreza. E os cristãos vão continuar rezando nos templos; vão fazer novenas, rezar o terço, recitar o breviário, cantar um bendito. Todos nós “deitados eternamente no berço esplêndido” de nossa indiferença e alienação, enquanto milhares de mulheres continuarão a vítimas de violência, bem debaixo de nossos olhos, no quarteirão ao lado, na esquina, na casa do vizinho, na sacristia...
Assim, seguimos na indiferença, como escreveu Bertold Brecht.



Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.



Fechamos os olhos, tapamos os ouvidos, calamos a boca. Estupraram a filha da vizinha, mas eu nem conheço sua filha. Assediaram a moça no trabalho, mas ela ficou dando moleza. Bateram na comadre da minha tia, mas eu nem sei onde ela mora... Até quando? Tomara que não sejamos vítimas também. Ou não haverá ninguém acordado para nos socorrer. “Até quando, Senhor” (Ap 6,10), nos manteremos indiferentes aos gritos dos sofredores, até quando?
Vendo que o reciclável era em quantidade maior do que a mirradinha da Dona N. poderia carregar, resolvi levá-la em casa, com alguma comida que lhe tirasse a maldição da cruz sobre a boca pelo menos por dois dias. Agora a vítima tem rosto, tem nome e endereço. E eu não consigo mais dormir!