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125. Pequenos gestos, grandes sentidos

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28.02.2017 | 6 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
125. Pequenos gestos, grandes sentidos

“E quem der ainda que seja apenas um copo de água fresca

a um desses pequeninos não ficará sem recompensa” (Mt 10,42).



“Se ajudar um passarinho,

Que caiu de volta ao ninho

Não foi em vão minha vida”

(Emily Dickinson)



Vivemos o tempo da valorização das grandes coisas. Tudo é mega, super, giga... Até a corrupção e os desfalques nos cofres públicos têm cifras assustadoras. Não se fala mais em milhões, mas em bilhões e trilhões de reais desviados da boca dos pobres para alimentar a ganância dos poderosos, aliás superpoderosos... Tudo tem proporções grandiosas: uma super-empresa, uma mega-loteria, uma capacidade giga de memória! Um grande templo é erguido em vez de pequenas igrejas; um gigantesco supermercado toma conta do bairro em vez de pequeninos comércios; um super popstar monopoliza o mercado musical em vez de diversos artistas dividirem o espaço.


É bem verdade que, com as redes sociais, estamos presenciando uma guinada nesse cenário, inclusive no musical: o rei da música romântica brasileira, que há anos faz o show de fim de ano na emissora mais poderosa do país, vem dividindo o brilho de sua apresentação com diversos artistas menores que caíram no gosto popular. Mas qualquer observador mínimo é capaz de conferir que os confetes dos cantores meteoros respingam sobre o astro-rei. O show é dele e todos os outros são súditos a seu serviço, como alguns fazem questão de dizer. Permanece inabalável sua fama por causa do grande sucesso da Jovem Guarda, dos milhões de discos vendidos, dos shows abarrotados de mulheres gritando em frenesi.


Também no campo religioso é assim: um padre superstar lota uma igreja; um guru espiritualista atinge fama internacional, um líder religioso consegue adeptos além das fronteiras de seu país. Têm importância apenas as grandes coisas. Esquecemo-nos dos ensinamentos do evangelho de Jesus: são as coisas mais pequeninas feitas com amor que dão sentido à vida, como dar um copo d’água a um coitado sedento. Os Evangelhos estão cheios desses exemplos: a viúva doou duas moedinhas e fez mais que os ricaços (cf. Lc 18,1-8); João Batista, o menor de todos, não encontrou profeta à sua altura (cf. Mt 11,11); uma mulher anônima será lembrada por seu gesto extravagante de ungir Jesus (cf. Mc 14,9). Inversão estranha que os Evangelhos fazem questão de afirmar.


Mas nem sempre o que os evangelistas ensinam é o que acontece entre nós.  Como escreveu Leminsk, enterramos no sepulcro do esquecimento os sentimentos mínimos, mas de ímpetos infinitos.



Das coisas 
que fiz a metro,


todos saberão
quantos quilômetros
são. 

Aqueles em centímetros,
sentimentos mínimos,
ímpetos infinitos, não?



Mas, por incrível que pareça, não são exatamente as coisas mais pequeninas as mais importantes e que insistem em sobreviver na nossa memória? Na hora que a saudade aperta, de quem nos lembramos? Dos grandes nomes ou dos amores anônimos? Não é a lembrança de grandes feitos que nos sustenta na hora da dor, mas a recordação de pequenos detalhes que fizeram toda a diferença: um olhar de amor que nos cativou, um gesto de bondade que quebrou nossa indiferença, uma mão estendida que nos devolveu a esperança e uma prece dita de forma singela que fez a fé renascer. São gestos ínfimos, não divulgados, não publicados de cima dos telhados por causa de sua cotidianidade e insignificância, que nos sustentam na dor e dão sentido a nossa existência.


Não raro chega a nossos ouvidos – pela arte, como o cinema e a literatura – o relato de grandes nomes que, no final de sua vida, só queriam que ela tivesse sido de fato plena de sentido. É bem compreensível, penso eu. À medida que os anos passam, vamos percebendo que a contagem é regressiva: não temos mais tempo a perder com bobagens. Cada minuto da vida deve ser sorvido com avidez. Ou, na linguagem de Rubem Alves, o balde de jabuticaba já está pela metade e não podemos desperdiçar nem mais uma. Não temos mais tempo para inutilidades, nem para grosserias, nem para indelicadezas... Cada minuto da vida, ainda que seja gasto com algo infinitamente pequeno, deve ser vivido com sentido. Cada gesto pequenino passa a carregar importância grandiosa.


Na semana passada, vivi uma cena desagradável. Eu tenho insistido em aprender uma língua: por amor ao exercício intelectual e como prevenção de males futuros como Alzheimer. E tenho sido companheira de uma senhora mais velha que eu e que, há dois anos, está comigo nesse labor. Estamos lá nós duas, guerreiras, em meio a jovens que aprendem com uma facilidade espantosa, enquanto nós damos o sangue por um sucesso mínimo. Estamos não! Estávamos! Pretendo desistir do curso – pelo menos dessa turma – por causa de uma grosseria do professor com minha colega. De fato, não tenho mais tempo para isso. Não vou jogar fora uma manhã de minha semana ouvindo grosserias e presenciando indelicadezas. Se por um lado, um gesto pequenino de bondade (como devolver um passarinho ao ninho) tem sentido pleno e pode salvar uma vida (não a do passarinho, mas a daquele que o devolveu ao ninho), pequenos gestos de grosseria se tornam gigantes, podendo matar nossa esperança e dissipar nossa fé na vida. Não é possível tolerar isso calada... Se não podemos modificar o quadro de corrupção e horror do país, nem impedir as grandes violências ou injustiças, podemos pelo menos protestar contra esses abusos tão perto de nós, ainda que não nos digam respeito diretamente. Não vou esperar grosserias maiores para manifestar meu repúdio. Não posso deixar passar ilesa a cena que vi. Sei que meu protesto não resolve nada, mas sigo confiante no valor gigante das pequeninas coisas. Se meu boicote não é capaz de mudar os modos do professor ou o rumo da escola de línguas, pelo menos é capaz de me garantir que fico firme em algumas convicções que me mantêm de pé: solidariedade e bondade ficam bem em qualquer lugar; pequenos gestos de amor são plenos de sentido. Ainda Emily Dickinson: “Se eu aparar antes que quebre, um coração, minha vida não foi em vão”.