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118. Perdiduras

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27.12.2016 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
118. Perdiduras

“Arrancaram-lhe tudo, espancaram-no

e foram-se embora, deixando-o quase morto.” (Lc10,30)



“Eu sou a que no mundo anda perdida,

eu sou a que na vida não tem norte,

sou a irmã do sonho e,

desta sorte,
sou a crucificada,

a dolorida"

(Florbela Espanca)



Perdiduras são coisas mais que humanas. Quem nunca se sentiu perdido sem um norte? Quem nunca olhou para a frente e não viu esperanças? Quem nunca se sentiu crucificado, maltratado, dolorido, como o Cristo na cruz? Quem nunca se sentiu irmão do azar, afeito ao desatino, parceiro da morte? Não poucas vezes vivemos essas experiências dolorosas! E, em todas elas, sonhamos com uma mão estendida, um Cirineu qualquer que passe e nos ajude a carregar a cruz ou um samaritano desconhecido que se compadeça de nossa indigência e nos coloque em sua montaria! No gesto da solidariedade e da compaixão se faz o humano, se revela o que somos, se mostra nossa humanidade mais genuína!


Faz pensar, no entanto, o tanto de desumanidades que temos presenciado! Chegamos até a não mais estranhá-las, tão acostumados ficamos às maldades e crueldades da sociedade! Na calada da noite, nossos governantes de araque legislam em favor próprio: crucificam ainda mais o crucificado, aniquilam ainda mais o pobre caído! Legislam sobre o aborto sem discutir com a sociedade, adiam a aposentadoria penalizando o trabalhador já fadigado, aprovam projeto de emenda constitucional que só reduz gastos para os que nada têm. Em nome do ajuste de gastos, fazem um ajuste de contas com os pobres, porque estes os atormentam. Cortam o leite da criança e o remédio do vovô para garantir o uísque do papai. Os pobres se tornaram invisíveis para eles. Como escreveu Florbela Espanca: “Sou aquela que passa e ninguém vê...”. Eles não veem os milhões de brasileiros caídos na marginalidade: sem emprego, sem saúde, sem escola, sem alimentação, sem dignidade... Os pobres foram tornados transparentes. Querem que não os enxerguemos; querem que os ignoremos, como o sacerdote e o levita fizeram com o homem caído à beira do caminho, na parábola do bom samaritano contada por Lucas no seu Evangelho (cf. Lc 10,25-35). São “homens de bem”, dizem alguns. São respeitáveis: magistrados, senadores, deputados... São todos “sua eminência”, “sua excelência”... Digníssimos, excelentíssimos, reverendíssimos até, mas sem humanidade, sem capacidade de se compadecer. Desmaterializaram os pobres: tornaram-no uma estatística, um dado do IBGE, um número na lista da bolsa família (que querem destruir), “um bando de vagabundos que querem viver de mordomias”, afirmam os poderosos. Como se a vida deles não fosse mordomia sobre mordomia e vagabundagem sobre vagabundagem. Como se esses poderosos não tivessem sempre vivido preguiçosamente às custas da classe trabalhadora escorados no labor do pobre!


Aff! Estou farta de desumanidades! Estou enfarda dessas crueldades legisladas! Estou exausta de lutar – sem armas potentes! – contra os poderosos tão bem armados! Estou cansada de ter que defender os excluídos, diante da hipocrisia dos que só pensam em si mesmos! Estou enojada dessa gente que condena os pequenos rotulando-os de vagabundos. A gota d’água de minha canseira foi um episódio corriqueiro. Na fila do supermercado uma gentil senhora, de aparência bondosa e educação certeira, ajudou-me a colocar as compras na esteira do caixa. E, nesse ínterim, confessou-me que fora abordada por um morador de rua na entrada do estabelecimento. Perguntara-me se na outra saída também havia moradores de rua. Pensava em passar por outro caminho para não ser importunada. Parafraseando Jesus, respondi-lhe: “Moradores de rua, sempre os tereis, em toda parte, enquanto nossos governantes legislarem em favor próprio”. E ela ofendida, respondeu: “Não me venha com paternalismos! Essa gente é superprotegida pelos governos e, por isso, está aí a nos incomodar!”. A indignação foi tanta que só consegui dizer a ela: “Para quem nasceu numa família minimamente estrutura, sempre teve onde morar, recebeu afeto, boas condições financeiras, desenvolveu estrutura psicológica e psíquica suficiente para se defender das perdiduras da vida, é fácil falar dos que nada têm, sempre descartados como lixo, alfabetizados na linguagem da violência. Nascer na sua família e com suas condições não é coisa para todos, minha senhora. Saiba que a senhora não foi merecedora desse privilégio: foi mero acaso. Poderia ter nascido na sarjeta e não onde nasceu! Isso faz parte das contingências da vida: nem todos tiveram a mesma chance”. Ela olhou assustada. Recolhi minhas compras, agradeci a pobre moça do caixa e despedi-me educadamente desejando à Senhora Coxinha um bom dia, se é que é possível ter um dia bom quando se esquiva do necessitado.


“Sonho que sou Alguém cá neste mundo!”, escreveu Florbela! Sonham com ela todos os pobres deste mundo em meio às perdiduras aos quais os condenamos.