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86. A exotização da fé cristã

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10.02.2021 | 9 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Diversos
86. A exotização da fé cristã
“Davam ouvido a ele, pois desde muito tempo
os fascinava com suas feitiçarias” (At 8,11)

Em vez da simplicidade da vida cristã, a pompa litúrgica. No lugar da pregação do evangelho, estão novenas, correntes e outras práticas piedosos. Em vez do seguimento de Jesus de Nazaré, Deus encarnado na história, nota-se a devoção a santos, anjos e à Nossa Senhora. Da mira do olhar somem as preocupações éticas e ganham visibilidade a luta contra inimigos espirituais. Em vez da ciência e das razões da fé, encontramos obscurantismo e superstições. A exotização da fé é uma árvore de frutos amargos, cujas raízes estão fincadas em tempos longínquos. Quando a ciência era precária e mais se aproximava de bruxarias e encantos que de evidências científicas, fenômenos extraordinários tais como curas, milagres e prodígios eram atribuídos a forças quase sempre divinas. Nos evangelhos sinóticos, o próprio Jesus aparece como um taumaturgo, uma espécie de curandeiro que age em nome do Deus que ele representa. Testemunhos múltiplos são relatados nesse sentido: curas de cegos, coxos, surdos; reanimação de cadáveres; expulsão de demônios e de espíritos imundos... Uma força divina (exousia) emanava de Jesus e sua ação libertadora era sentida por quem dele se aproximava.
Sabemos que os evangelhos não são relatos exatos dos acontecimentos ou uma espécie de crônica dos fatos, mas sim um testemunho de fé da comunidade dos primeiros cristãos. As curas, milagres e prodígios atribuídos a Jesus são sinais comunicativos do amor do Pai, que pela ação do Espírito, quer trazer vida a todos. Assim, como relatos de fé, esses textos precisam ser lidos com muito cuidado para que a fé cristã não se reduza a uma porção mágica ou a uma senha secreta que desencadeia fenômenos que a ciência não explica. A fé cristã seria diminuída a um efeito pragmático: trazer bem-estar, prosperidade e cura imediatos para o crente. Deus seria uma espécie de mercador que possui graças infinitas armazenadas no estoque de bênçãos, e ele as distribuiria a seu bel prazer, na maioria da vezes coagido por rezas fortes, devoções milenares, ritos religiosos e outras práticas piedosas. Isso explicaria o sucesso de alguns e o fracasso de outros crentes no empreendimento de alcançar o favor de Deus. Uns têm mais fé, mais temor, mais piedade, ou conhecem fórmulas mais aprimoradas para obter eficácia em suas preces. Com essa compreensão da fé cristã, o cristianismo não se diferencia da magia. Deus se transforma em um mágico voluntarioso, que faz o que quer para quem ele quer, dando a alguns um retorno positivo e ignorando a necessidade de outros.  
Essa compreensão da fé carrega também a marca da mercantilização. O cristianismo se configura como religião do mercado; basta negociar com Deus as necessidades urgentes em troca de algo que lhe apeteça, que pode ser desde uma oferta em dinheiro até uma abstenção alimentar ou um gesto de piedade. As chamadas “graças de Deus” são negociadas em forma de correntes de libertação, promessas, novenas, oferendas e atos de fé, quase sempre exigindo a renúncia de bens materiais em prol de benefícios muito maiores. Essa relação mercantil aproxima o Deus de Jesus dos deuses pagãos da antiguidade, quando se entendia que as oferendas aplacavam a ira dos mesmos e alcançavam assim favores imerecidos.
Em tempos de crise – carestia, inflação crescente, desemprego, violência, doença, falência de empresas e estado mínimo –, a religião se transforma na única via de consolo dos pobres. A mulher agredida pelo marido acredita que Deus vai lhe dar livramento do mal. O desempregado espera que a bênção da carteira de trabalho lhe restitua a colocação no mercado. Os doentes e moribundos rezam para que um milagre aconteça – até porque eles não têm acesso a tratamentos adequados para recuperar a saúde. Os negacionistas duvidam da ciência, rejeitam as vacinas em plena pandemia. Os jovens, sem perspectiva futura, buscam grupos conservadores que os arrancam da dureza da vida e lhes colocam numa bolha de fé. Em todo canto, o sofrimento impera e a fé se torna um placebo contra o tédio, a dor e o desespero.
Não há nada de errado em buscar na fé um sentido para a vida. É próprio das religiões descortinar um horizonte de sentido e possibilitar esperanças antes não vislumbradas. Triste, porém, é ver como a fé cristã tem sido manipulada por grupos de interesse para impedir a luta contra o mal real, criando inimigos espirituais e do além, numa batalha que canaliza toda a energia do crente. Um mundo encantado com anjos e demônios têm mobilizado os esforços dos cristãos e não sobra vigor para enfrentar os perigos concretos que ameaçam a vida real. É bem mais fácil lutar contra satanás e sua trupe de espíritos impuros que enfrentar o descaso do governo com a sociedade no campo da saúde, por exemplo. É mais confortador imaginar que Deus vai arranjar um emprego para o filho do que incentivá-lo a enfrentar a imensa fila dos desempregados. É menos constrangedor fazer uma oferta generosa na igreja para que Deus liberte o marido violento do vício do álcool do que passar a tarde na delegacia das mulheres deixando expostos os dilemas de seu relacionamento amoroso. Participar do cerco de Jericó que prometem quebrar os grilhões da depressão é mais prazeroso do que enfrentar um triste e doloroso processo de cura da psique humana.
O problema é que, nesse mundo encantado no qual a fé cristã foi aprisionada, o Deus de Jesus Cristo não tem lugar. O Deus a quem invocam e a quem recorrem tem o nome de Jesus, mas as práticas mágicas que são praticadas negam as origens cristãs, cujo alicerce é o mistério de um Deus encarnado na história. Quando Simão, o mago, viu Pedro curando foi logo querendo o poder do Espírito para continuar manipulando as consciências, relata os Atos dos Apóstolos (8,4-25). O autor dos Atos – Lucas – mostra o descontentamento do pescador de Nazaré com a possibilidade de transformar a fé em ritos mágicos poderosos. Também com Paulo, um episódio semelhante se deu quando uma pitonisa andava atrás dele gritando e falando no nome de Jesus (16,16-19). Apesar de os relatos escriturísticos atribuírem curas e milagres aos primeiros seguidores de Jesus, em nenhum momento esses fenômenos podem ser entendidos como magia ou uma força particular. Tais fenômenos indicam que Deus está com seus seguidores e que estes agem graças à sua força. Uma metáfora para mostrar como, pela dynamis da fé, a vida em sua plenitude é restabelecida.  
Em tempos de crise sanitária, quando todas nossas as seguranças parecem se dissolver como bolha de sabão, é mais fácil negar a realidade e buscar esconderijo nas fendas de uma religião alienante. Usar máscara, fazer distanciamento social, higienizar constantemente as mãos e evitar aglomerações têm o alto preço da disciplina e do cuidado com o outro. Já a alienação religiosa é reconfortante e consoladora. Ela transfere para Deus a tarefa que é humana. Deus, no alto de sua onipotência, fica obrigado a resolver nossos problemas e a gente descansa tranquila no colo da religião. Nesse contexto, não há espaço para a profecia, para o compromisso ético e para a organização popular, pois o Deus todo-poderoso das alturas vai intervir e botar fim ao sofrimento.
Apesar de os fatos mostrarem que Deus não vai resolver nossos problemas, pois ele não os resolveu até hoje, as pessoas seguem se esquivando da realidade. Têm até presbíteros que se prestam ao papel de gravar vídeo dizendo que não é à toa que a primeira vacina contra a covid foi aplicada no dia 8 de dezembro, quando se celebra a festa da imaculada Conceição de Maria. Atribuem a ela e não à ciência, o sucesso do imunizante. O que é preciso perguntar é por que motivo a mãe de Jesus deixou milhões de pessoas morrerem primeiro para só depois agir milagrosamente em favor da humanidade. Essa imagem de Maria, assim como a imagem do Deus intervencionista, destoa totalmente do que ensina a fé cristã que Deus é amor e, como disse Mateus, faz o sol nascer sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos (5,45). Seria ele capaz de sacrificar milhões de vidas, para só depois de muita prece ter sua ira aplacada e olhar com benevolência para a humanidade? Essa é uma caricatura de mal gosto do Deus de Jesus. Nós cristãos não somos herdeiros de uma fé mágica, mas de uma tradição profética, que implica em compromisso ético com a vida do outro, de quem somos irmãos graças à filiação divina. Não há reza brava nem fórmula mágica que obrigue Deus a agir quando a tarefa da ação é nossa. Diante da comunidade faminta, os discípulos sugeriram mandar para casa toda aquela gente desamparada. Lucas colocou na boca de Jesus uma frase muito importante: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Lc 9,13). Em vez de cada um rezar para Deus lhe dar a comida, cabia-lhes a tarefa de cuidar do outro em suas necessidades mais urgentes. Ou encaramos que o mal real exige de nós atitudes de coragem e solidariedade ou não somos seguidores de Jesus. Esse mundo encantado de anjos e demônios já alienou demais. É hora de rasgar o véu que encobre esse fetiche religioso e lhe dá ares de fé cristã. A exotização da fé tem um preço alto a pagar: forma um bando de privilegiados que arrogam para si méritos diante de Deus e comete o assassinato da gratuidade divina. É a morte do Deus de Jesus Cristo.