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7. Ministério presbiteral: desafios e perspectivas

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11.02.2014 | 25 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Acadêmicos
7. Ministério presbiteral: desafios e perspectivas

Parece-me que salta aos olhos de qualquer católico minimamente observador a importância que a Igreja dá ao ministério presbiteral. Toda a vida da Igreja mostra essa relevância e, no ano sacerdotal, ganhou ainda mais visibilidade esse acento. Desde documentos da Igreja sobre o tema até investimentos financeiros que são aplicados na formação, tudo aponta para o status que o ministério ordenado foi adquirindo ao longo dos anos; isso além de simpósios, congressos, sínodos, organizações diversas em torno do ministério ordenado. Muito cedo eu entendi essa importância. Trabalhando com a formação de leigos – cursos de teologia pastoral – sempre me deixou intrigada o fato de a Igreja não investir na formação dos leigos a mesma energia e os mesmos recursos. A formação filosófica e teológica, por exemplo, dos futuros presbíteros é garantida pela Instituição, com Faculdades ou Institutos estabelecidos com essa finalidade, professores capacitados e remunerados para tal função, e ainda casa, comida, algumas vezes roupa lavada, passada, assistência médica, odontológica, psicológica, etc. Um mundo de forças despendidas com o objetivo de recrutar, formar e capacitar vocações para o serviço do povo de Deus, no exercício do ministério presbiteral. Algo que – parafraseando São Paulo – “os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1Cor 2,9) em relação à formação dos leigos para o exercício de seu ministério nas diversas pastorais, movimentos e para o seu testemunho em geral no meio do mundo e na vida da Igreja[1]. Desde o fim do Catecumenato Cristão da Igreja Primitiva, uma lacuna se instalou nesse campo, um vazio se constituiu, e os esforços atuais nem de longe respondem às necessidades do leigo. Não é difícil então entender o valor do ministério presbiteral, sua importância para a Instituição e a esperança que ela deposita em seus presbíteros. E não é só a instituição como tal. O povo de Deus em geral, ainda que não tenha tematizado essa questão, ainda que não a discuta ou verbalize, intui essa primazia do ministério ordenado e, por isso, põe muita esperança nos ministros que a Mãe-Igreja lhes destina. Cada padre que chega a uma paróquia não vem sozinho: traz consigo um universo de sonhos e desejos, de esperanças e expectativas que o povo de fé projeta nele. O sonho do povo de ser valorizado e acolhido. O desejo de ser bem formado e poder exercer sua vocação de povo sacerdotal. A esperança de encontrar no ministro ordenado um animador da comunidade com quem seja possível trabalhar em comunhão e formar uma verdadeira comunidade de fé. A expectativa de quem não se contenta com o que já tem e quer muito mais: quer fazer cada vez mais sua experiência de Deus, quer ser mergulhado no mistério, redescobrir a força transformadora de vida do evangelho de Jesus Cristo. Um verdadeiro advento acontece toda vez que a comunidade aguarda a chegada de seu novo ministro ordenado.


Diante de tantas expectativas, uma pergunta não quer calar: Quais as características principais que o povo espera encontrar no presbítero de hoje? Ou, em outro formato: Que modelo de presbítero o povo deseja para suas comunidades?


A partir dessa pergunta, já fica circunscrito o âmbito de nossa reflexão. Não vamos fazer teologia ou polemizar em torno de questões como ordenação de mulheres, de homens casados, de homossexuais, etc. Vamos apenas pensar um pouco sobre as expectativas do povo em torno do ministro ordenado que já se encontra legitimado no cenário da Igreja católica exercendo seu ministério ou, no máximo, refletir sobre aqueles que estão se preparando para assumir tal função. Eu adoraria poder conversar francamente sobre a ordenação de homens casados ou de mulheres; seria maravilhoso ponderar as argumentações bíblicas e teológicas, pesquisar a história, buscar as raízes do costume de se ordenar apenas homens. Gostaria ainda mais de falar sobre a pertinência e a necessidade – ou não – de ministros ordenados, e inclusive sobre o modelo hierárquico que prevaleceu nas comunidades católicas, legitimado pelo sacramento da ordem nos seus três graus.  Mas alço vôos pequenos. Atrevo-me, neste artigo, a fazer apenas singelas considerações sobre os presbíteros que estão nas comunidades paroquiais com a responsabilidade de animar o povo de Deus.


Desde Trento, quando esse modelo de formação em Seminários se impôs – o que foi, sem dúvida, um grande passo e uma conquista de proporções incalculáveis para seu tempo – um modelo de ministro ordenado foi se delineando: um homem formado nas humanidades, conhecedor da verdade revelada e porta-voz dessa verdade. Quase sempre um homem muito culto, conhecedor de línguas – português, latim, grego, francês em alguns casos – um bom administrador, exímio orador, um homem de influência na comunidade, de voz ativa, um parceiro fabuloso dos prefeitos ou um adversário terrível destes, um defensor da moral e dos bons costumes, disposto a dar a vida para defender sua grei dos ataques do adversário, quase sempre um homem muito piedoso, não um grande teólogo, mas um homem de fé ao modo de seu tempo. Um pastor que defende seu rebanho e o guia. E que, ao final de seu discurso, diz “Assim seja!” e todos respondem “Amém!”. A voz unívoca da Igreja, por meio de seus legítimos representantes, não encontrava fortes opositores.


Mas com a inevitável chegada da modernidade, mesmo que tardiamente no Brasil, esse modelo pastor de almas[2] sofreu mudanças. O Vaticano II percebeu isso e tornou-se expoente máximo desta virada. Com a abertura do Concílio para as esperanças e alegrias do mundo (GS 1), o cristão se reconciliou com o seu tempo, assimilou a inevitável contribuição da razão e o presbítero ganhou nova feição. Um presbítero menos detentor da verdade e mais profeta surge no cenário da Igreja: um homem engajado nas lutas de seu povo, um líder não tão preocupado com a verdade e os dogmas, mas com a vida sofrida e oprimida de sua gente. Ou então um teólogo, um pensador da fé, um professor, um mestre, um doutor – os jesuítas que o digam! Um homem que procura dar razões da sua fé diante de um mundo em processo de secularização. Mundo cujo modelo de cristandade vai ficando cada vez mais distante, mas que, apesar da crescente secularização, ainda se encontrava povoado de cristãos, de pessoas advindas de famílias católicas, que respiravam esse ar sagrado, essa mística católica. Um modelo mais profeta-professor se impôs: um homem cuja piedade ressurge das cinzas de sua gente pisada e da utopia do Reino que Jesus anunciou. Um homem que entendeu que, ao final de seu discurso, não pode dizer mais “Assim seja!” e que o povo não deve dizer “Amém!” tão fácil. Ao final do discurso, é preciso dialogar, ver as realidades distintas de cada gente, julgar as motivações à luz do evangelho, conhecer as razões, pensar a plausibilidade do projeto em cada realidade para agir de forma transformadora.


Nem bem a Igreja se entendeu com a modernidade e já se vê obrigada a dialogar com um novo tempo, a tão propalada e polêmica pós-Modernidade. Como dizem sabiamente alguns estudiosos, “não um tempo de mudanças, mas uma mudança de tempo”: uma mudança epocal. Esta mudança epocal não se refere a novas formas de pensar, a novos métodos, a novas tecnologias, onde cada coisa é nova a cada dia, numa velocidade da luz, rápida demais para a estrutura lenta e pesada da Igreja que se formou ao longo desses dois mil anos. Uma mudança que formatou uma sociedade cujos valores precedentes não permanecem mais estáveis e, por isso, não orientam mais o discernimento diante das mudanças. Uma mudança muito significativa, perspicaz, radical, profunda: uma mudança de valores, de paradigmas... Poderíamos dizer “não uma mudança, mas sim uma mutação, algo no DNA das pessoas, no gene da sociedade”. Uma sociedade de tal forma secularizada que não se delineia mais sob o formato cristão, e cujos membros ficam cada vez mais distantes do homem católico forjado pelo modelo da cristandade. Uma sociedade extremamente secularizada e, ao mesmo tempo – ou talvez por isso! –, tão voltada para o sagrado, que até parece difícil conciliar as duas coisas. Uma sociedade composta de homens e mulheres que não conhecem mais Jesus Cristo, apesar de quase sempre serem batizados, pessoas que não encontram sentido no projeto do Reino de Deus, não se identificam com a proposta do evangelho; pessoas para quem o evangelho perdeu sua força, sua identidade, uma multidão de batizados que não entendem mais a Igreja como mãe. Uma mutação que afeta, sem dúvida, o novo modelo de presbítero e o público alvo de sua ação: o povo em geral e, em especial, os membros das comunidades católicas.


A pergunta “Quais as características principais que o povo espera encontrar num presbítero hoje?” ou, em outro formato, “Que modelo de presbítero o povo deseja para suas comunidades?” –  parece encontrar um ensaio de resposta na observação do público alvo que espera esses presbíteros. Quem é essa gente? Uma minoria – que dá a impressão de ser ainda muito grande, especialmente no Brasil, país de maioria absoluta católica. São sobreviventes da grande tribulação da secularização, que arrancou milhares de pessoas de nossas Igrejas – especialmente os mais cultos, mais ligados à questão da razão, os pensadores, os intelectuais, os que têm opinião própria, os que acreditaram na grande utopia da razão. Outros são sobreviventes da grande cruzada dos neopentecostais, que arrastou multidões, especialmente de pobres, migrantes, sofredores, desempregados para todo tipo de denominação na esperança de encontrar alento para seus penares. Alguns são sobreviventes da sutil e capciosa investida das seitas orientais ou do espiritismo kardecista: pessoas quase sempre bem estabelecidas financeiramente, que procuram um nirvana, um alento, um consolo no meio do vazio de suas posses.


Parece-me que a Igreja perdeu os ricos para o espiritismo e as religiões orientais; os intelectuais da classe média alta para a secularização e o ateísmo; os pobres para os movimentos pentecostais e as igrejas da teologia da prosperidade. Sobrou um resto, quase sempre da classe média baixa: pessoas que insistem em acreditar contra toda descrença; pessoas que lutam bravamente contra o ateísmo que ronda suas mentes e que prosseguem à procura de respostas teológicas que nunca vêm; homens e mulheres que anseiam pela experiência de Deus, que, quando oferecida, quase nunca é suficiente para ajudá-los a enfrentar a dureza da vida e o sofrimento que ela lhes impõe; uma grande maioria sem identidade católica, com uma fé plural, quase sempre feita da bricolagem de elementos diversos de religiões e filosofias de vida bem distintas; outro grupo feito de católicos tradicionais, que se mantêm fiéis à tradição recebida, ainda que não saibiam muito bem por que ainda são católicos. Uma multidão secularizada, mas com rasgos de religiosidade popular e fé, que ainda dá visibilidade a nossas Igrejas[3].


O que estes heróis da resistência esperam do ministro ordenado que a Igreja lhes destina?


Em primeiro lugar, num mundo tão secularizado e ao mesmo tempo com experiências religiosas tão múltiplas, partir do pressuposto de que o católico já fez sua experiência de Deus e já conhece Jesus Cristo é no mínimo arriscado, se não ingênuo. O ministro ordenado é atualmente desafiado a desenvolver um trabalho de revelação mais que um trabalho de explicação e de expressão de uma fé já vivida[4]. A tomada de consciência da virada epocal nos anima a propor a passagem de um modelo de presbítero, que mantém e garante a fé – por meio de uma pastoral de manutenção[5] –, a um presbítero que favoreça o encontro com Jesus Cristo e promova a descoberta da singularidade cristã, fazendo dessa experiência uma mediação fecunda para a busca da identidade do sujeito contemporâneo.


Assim, parafraseando Denis Villepelet[6], nós entendemos que o presbítero é convidado a ser alguém que confere ao seu ministério uma orientação resolutamente querigmática[7], iniciática, que favorece a experiência primeira da fé. O desafio do ministro ordenado não é tanto o de ajudar o povo a ligar a vida e a fé, como se a fé já fosse um pressuposto, um dado concreto inquestionável, presente na vida dos frequentadores de nossas comunidades. Seu desafio atual parece ser o de ajudar sua gente a se apropriar desse ato de fé e de assimilar suas verdadeiras repercussões para a vida. A experiência da fé não é algo tão evidente assim. Deus é um Deus totalmente outro, um mistério inacessível e incompreensível que ultrapassa infinitamente o homem e que se encontra irremediavelmente escondido. Se nos temos o privilégio de conhecê-lo é porque esse Deus misterioso, na grandeza do seu amor, se revelou em seu Filho. Para assumir sua tarefa, o presbítero contemporâneo precisa se lembrar de que o único caminho praticável do homem para Deus, como disse Barth, é aquele que vai de Deus para o homem e que se chama Jesus Cristo. Crer no Deus de Jesus Cristo é se confiar nas mãos do Pai, que em Jesus Cristo revela seu amor. O Deus totalmente outro se torna acessível em Cristo, é visibilizado nele. Ajudar o povo a fazer essa experiência do Deus totalmente Outro, mas totalmente próximo e presente em nossa história, desponta como missão primeira do presbítero hoje. A fé cristã não sobrevive mais nas atuais circunstâncias se não for assumida como uma convicção pessoal e livre. A fé herdada de nossos pais já não garante mais a nossa fé. Antes de ser transmissão, a fé é proposta que deve ser livremente assumida ou rejeitada[8]. E esse apossar-se da fé vem pelo caminho da experiência pessoal com Deus, realizada na comunidade eclesial. O povo quer Deus, quer fazer seu mergulho em Deus[9]. Anseia por Deus como a corça suspira pelas águas.  Essa experiência de Deus, fundamental na vida cristã, não se dá sem menos. Há todo um processo que a favorece ou a dificulta. O presbítero é convidado a ser um mistagogo: alguém que acompanha o iniciante na fé, ajudando-o a fazer esse mergulho no mistério, e não somente alguém que ensina ou mantém a fé já despertada. Alguém que ajuda sua gente a se render diante do mistério escondido do Pai, revelado em Jesus Cristo por seu Espírito.


O caminho para o mergulho na fé é diversificado e comporta várias modalidades. Cito apenas três delas, para mim fundamentais e bem próprias do ministério ordenado.


a) A liturgia


A liturgia católica nada mais é que a celebração do mistério da morte e ressurreição de Jesus, o Filho de Deus, por meio de quem o Pai se dá a conhecer, na ação do seu Espírito[10]. O presbítero é o homem da liturgia, em todos os sentidos, não só da celebração dos sacramentos. A liturgia é o lugar da experiência do mistério, do encontro com Deus, do cultivo da comunhão com ele, que se revela e se torna presente no meio de nós. Expressões como “celebrar bem”, “celebrar com beleza”, “celebrar de forma a penetrar no mistério” não deveriam existir. A princípio são pleonásticas. O mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus que acontece em cada celebração já contém o belo, é pleno, é profundo por natureza. Mas, às vezes, o pleonasmo é necessário para recordar que o fundamental arrisca-se a ficar esquecido. Nossa gente católica tem o bom costume de celebrar. A velha e surrada Missa nunca caiu de moda, mesmo com toda a virada que o catolicismo sofreu. Mesmo que seja de vez em quando, até o católico mais relaxado vai a alguma celebração. Pode ser uma missa de formatura do filho, a celebração das exéquias de algum parente querido, o casamento de algum conhecido, o batizado do filho de um bom amigo... O presbítero tem à sua disposição, bem à sua frente, uma multidão de gente reunida. Basta celebrar bem, basta deixar Deus se revelar no mistério celebrado e a comunidade terá iniciado um processo de volta para Deus, de redescoberta da fé adormecida pelo processo de secularização da sociedade, de reencantamento com a boa-nova de Jesus Cristo. A liturgia é fonte e cume da vida cristã, já disse o Concílio (SC, 10). Se é fonte e cume da vida cristã, toda expressão de fé vem dela e nela desemboca. Ou melhor, ela é a expressão do encontro de Deus com sua gente e de sua gente com seu Deus. Eu sou do grupo dos que pensam que missa bem celebrada é aquela que favorece o encontro com Deus; aquela na qual o povo cultiva sua relação com ele; aquele encontro de onde o povo sai fortalecido, alimentado, nutrido; aquela celebração onde o povo celebra – pois é um povo sacerdotal – podendo expressar sua vida na presença do Deus da vida. Os presbíteros são desafiados hoje a celebrar de forma que o povo sinta vontade de voltar para o próximo encontro, mesmo que ali ele tenha ido por acaso, e não tanto por escolha. Um presidente que celebre bem, que como dirigente ajude o povo a fazer seu mergulho no mistério, é algo a que a comunidade de fé tem direito. Ou nossos presbíteros rezam bem com sua gente, ou nossas igrejas vão ficar cada vez mais vazias[11]. Espera-se, pois, que o presbítero seja um mistagogo, mais que um mestre ou um professor. Alguém que celebre a vida e o mistério, não que apenas os explique. Com isso não se quer afirmar que não se deva ensinar, dar algumas explicações, pois faz parte do munus presbiteral também ensinar. Celebrar a vida e o mistério não exclui o munus de explicar, afinal o povo tem direito à teologia. O risco do qual devemos fugir é o de celebrar com a cabeça e não com o coração; realizar o culto sem, no entanto, se envolver e sem envolver o povo no mistério celebrado.


b) A catequese


Se, na prática, a catequese está nas mãos dos leigos, por direito ela pertence ao bispo e aos ministros ordenados. Reza o Direito Canônico que o bispo é o primeiro responsável pela catequese, devido a seu munus próprio de ensinar (cf. CDC 773, 774, 775, 756, 375 e 386), e os presbíteros, como seu colaboradores, por participação (cf. CDC 757, 528 e 529). A dimensão bíblico-catequética da ação evangelizadora da Igreja, por exemplo, encontrou até pouco tempo atrás sob os cuidados da Congregação para o Clero, o que também mostra que o ministério presbiteral engloba a urgente tarefa de evangelizar (cf. CIC, 762). A ação evangelizadora da Igreja não é uma coisa à parte, uma tarefa a mais; é continuidade da ação litúrgica, pois a mesa da palavra e a mesa da eucaristia não são duas coisas separadas, mas intimamente ligadas. E, porque elas estão intimamente unidas, toda ação catequética ou evangelizadora da Igreja penetra o mistério pascal e o favorece[12]. A centralidade da Palavra de Deus nessa ação desponta natural e claramente[13]. A comunidade de fé espera que o ministro ordenado ofereça a ela esse contato com a Palavra da vida. Ela quer beber dessa fonte, quer se nutrir dela, quer descobrir nela a força da vida que sustentou tantos mártires da fé na história da Igreja, quer se envolver na sua trama e fazer parte dela. Espera-se, pois, que o ministro ordenado seja um catequeta, mais que um teólogo: alguém que repense a evangelização de sua comunidade e ajude-a a ser evangelizada, fazendo sua experiência do Deus de Jesus Cristo. O ministro ordenado pode ser também um teólogo, embora deva ser, por seu munus, mais catequeta. O problema é quando o teólogo não sabe catequizar o povo.


c) O encontro com o outro


Se o Deus escondido se torna próximo e se dá a conhecer e experimentar na ação litúrgica e evangelizadora da Igreja, o lugar por excelência do encontro com Deus é o ser humano, uma vez que o “Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). No mistério escondido de cada pessoa, Deus se revela; ele age; o Deus totalmente outro se mostra no rosto daquele que pede para ser amado e oferece seu amor. Não se pode pensar em experiência de Deus se não no confronto com aquele que de nós se aproxima[14].


O presbítero tem sempre diante de seus olhos pelo menos dois públicos bem distintos.


Existe um povo sofrido, que é maltratado por forças opressoras e pelas mazelas da vida desigual, conseqüência de um sistema desumano. Esse povo quer ser acolhido, escutado e ajudado. Ao ministro ordenado, muitos vão buscando uma orientação, um conforto, um alívio, uma palavra amiga... A ele vão alguns buscar ajuda financeira, remédio, comida... Outros vão atrás de força para viver, de sabedoria para se safarem das enrascadas da vida...  Casas e escritórios paroquiais tornaram-se ponto de referência, de apoio, pronto-socorro para todo sufoco e apuro da vida, mesmo nas cidades e comunidades pequeninas. Conta-se com o presbítero para defender a vida, para acolher e cuidar da vida ameaçada e frágil. A acolhida tem sido apontada como uma das exigências mais gritantes de nossa gente. E para isso, não basta apenas capacitar boas secretárias, criar a pastoral da acolhida ou da visitação catalogando as famílias, ou abrir uma Casa do Peregrino. É preciso muito mais: uma atitude de culto e de reverência diante do outro que se aproxima. Reverenciar o outro, especialmente o mais fraco, aquele cuja vida está mais ameaçada, desponta como tarefa urgente do presbítero.


Existem ainda os leigos atuantes na Igreja, aqueles que resistem bravamente contra toda evasão e insistem em ser Igreja. Esses também precisam ser acolhidos e amados. São aqueles que desejam participar mais da vida da Igreja, inclusive das decisões, das quais os leigos, por direito, devem participar. O Código de Direito Canônico fala disso. Os leigos têm direito de participar. Compete ao ministro ordenado fomentar e criar condições para que essa participação seja efetiva, por exemplo, por meio dos conselhos pastorais. Os leigos participam até na administração, por meio dos conselhos econômicos. Nosso povo, tão desrespeitado em seus direitos, quer na Igreja uma acolhida diferente. (“Os chefes das nações as oprimem... entre vós não deve ser assim” – Mc 10,43).  Quer participar de forma ativa e decisiva.


Por isso, espera-se que o presbítero seja mais um pastoralista, que um simples gerente ou administrador. Alguém que acolha as pessoas com respeito e dignidade, que cuide da ovelha ferida; alguém que conforte os leigos e os promova para que possam participar melhor da vida da própria Igreja, sentindo-se não apenas servos do clero, afinal, como disse o evangelista, o próprio Jesus chama seus discípulos de amigos e não de servos (cf. Jo). Nossos leigos querem ser discípulos e missionários, como hoje é comum dizer; não apenas ajudantes ou colaboradores dos presbíteros. Por isso, espera-se que o presbítero seja alguém que saiba cuidar de pessoas, mais do que de coisas. E que, ao cuidar das coisas, ao gerenciar a vida da Paróquia ou da comunidade, sempre em comunhão com os leigos, faça-o para o bem das pessoas. Para isso, é preciso cultivar uma atitude reverencial e respeitosa para com o outro que se aproxima de nós, como sinal do Filho de Deus encarnado. Na pessoa do próximo, o Deus totalmente outro se manifesta e se deixa experimentar: uma verdadeira experiência do mistério escondido!


Em segundo lugar, é preciso pensar que em sociedades de mudanças tão rápidas, o futuro se torna incerto demais. Diante dessa incerteza, o indivíduo se encontra constrangido para se movimentar, sem perspectiva e sem projeto. Essa incerteza provocada pelo excesso de mobilidade e de velocidade torna-se irritante e confina as pessoas ao recuo sobre si mesmas, desenvolvendo uma desconfiança muito forte no que diz respeito a toda forma de esperança. Para se construir como sujeito, o indivíduo não pode mais se entregar a uma ordem das coisas que antes eram certas e evidentes. Nada é tão certo mais. Fernando pessoa dizia: “Deito e durmo, e sei que a primavera é certa!”. Já não vivemos essa certeza da primavera que virá. No mundo multirreferencial contemporâneo, torna-se urgente cada um elaborar suas próprias referências, se não quer morrer de overdose de informações. Esse é um trabalho solitário, sofrido, complexo e geralmente conflituoso. A liberdade do indivíduo tornou-se sua grande exposição. Sem certeza, ele se agita a construir uma identidade que não seja fútil, tola, vazia. O trabalho do ministro ordenado é, pois, mais o de ajudar cada um a construir sua própria identidade que o de lhe dar certezas. Na sinfonia de vozes que ressoam desarmoniosas na sociedade, a Igreja é interpelada a ser essa voz suave, aquela que anuncia o sussurro criativo da boa-nova e motiva o católico a simplesmente ser, num processo de contínua construção de sua interioridade.


Então, torna-se urgente pensar como difundir o bom rumor do evangelho na situação ocidental e mundial contemporânea. Poderíamos nos perguntar: “Como anunciar a boa nova de forma que ela seja crível?” Nós não podemos nos dispensar de uma reinterrogação fundamental sobre a maneira de conceber o testemunho da fé nas sociedades[15]. O presbítero é convidado, pois, a pôr mãos à obra e buscar novo ar fresco para as problemáticas do anúncio da boa-nova hoje. Não basta manter os católicos na Igreja, nem manter as pastorais e os movimentos da Igreja em funcionamento. É preciso ir além da pastoral da manutenção, favorecendo aos católicos a verdadeira experiência da fé e a construção de sua identidade cristã[16].


Para isso, pensa-se num presbítero que seja mais um mistagogo que um professor; um catequeta mais que um teólogo, um pastoralista mais que um gerente ou administrador.











[1] Cf. Documento de Aparecida (DA), 283 e 212.




[2] Expressão ainda encontrada em diversos documentos do Vaticano II ( SC 14 e 19), como também no Código de Direito Canônico (CDC),  número 771, por exemplo.




[3] Cf. CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE 2008-2010). Brasília: CNBB, 2008. n. 88. Doc. 87.




[4] Cf. VILLEPELET, D. Les défis actuels de tâche catéchétique. Revue Catéchése, n. 173, 2003.




[5] Cf. DA, 366 e 370 que convida a Igreja uma verdadeira “conversão pastoral”.




[6] Cf. VILLEPELET, D. Catéchése et crise de la transmission. In: GAGEY, H. G; VILLEPELET, D. Sur la preposition de la foi. Paris: L’Atelier, 2000.




[7] Não se entenda com isso uma divisão entre catequese e evangelização, como se evangelização fosse algo primeiro e a catequese viesse logo em seguida. Entendemos que toda catequese é evangelizadora e toda evangelização é catequética. Alertamos, porém, para a importância da experiência querigmática, o primeiro anúncio. Não primeiro anúncio em ordem cronológica, mas primeiro no sentido de eminente, de primazia. O querigma é o anúncio primeiro, pois ele é fundante da fé. Sem conhecimento da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, sem essa experiência fundante do Deus que nos amou em seu Filho na ação de seu Espírito, a fé se esvazia de sentido. Torna-se uma doutrina, um conjunto de leis e regras a serem seguidas. Mas a fé cristã não é uma doutrina, é o seguimento de uma pessoa – Jesus Cristo – que nos amou e se entregou por nós e que nos convida à entrega total a ele. Cf. CNBB. Evangelização e missão profética da Igreja. Doc. 80. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 26 e 52; DGAE 2008-2010, 54 e 57 . E também Evangelii Nuntiandi,  22 e 27; Diretório Nacional da Catequese (DGC), 13d.




[8] LETTRE DES ÉVEQUES AUX CATHOLIQUES DE FRANCE. Proposer la foi dans la societé actuelle. Paris: CERF, 1996.




[9] Já profetizava Karl Rahner que “o cristão do futuro ou será um místico ou não será cristão”. Cf. também DA, 144-145, que insiste sobre esse encontro com Jesus Cristo.




[10] Cf. DGAE 2008-2010, 68.




[11] Cf. VILLEPELET, D. O futuro da catequese. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 65.




[12] O DGC, ao convidar a catequese a “anunciar os mistérios do cristianismo”, insere a catequese nessa dinâmica da Revelação, cuja iniciativa primeira é de Deus. Cf. DGC, 33.




[13] Cf. DNC, 106-107; Catechese Tradendae, 27.




[14] DGAE, 117: “Importa valorizar o encontro pessoal como caminho de evangelização”.




[15] ALBERICH, Emilio. Regard sur la catéchése européenne. Revue Catéchése, Paris, n. 100-101, p. 167.




[16] CF. DA, 159.