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270. Sobre correrias e sonhos de calma

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16.08.2022 | 3 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
270. Sobre correrias e sonhos de calma
“Tenho visto tudo o que é feito debaixo do sol;
tudo é inútil, é correr atrás do vento!” (Ecl 1,14)

E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
(Cecília Meireles)

Aprendi desde pequenina que a noite é para dormir e que o corpo tem direito ao descanso. Na minha casa, de gente pobre e interiorana, meu pai e minha mãe nos faziam ir para a cama bem cedo, com as galinhas, como dizem por aí. A coisa ficou pior quando minha irmã mais velha começou a dar aulas na roça, a uns dez quilômetros da cidade, distância que ela percorria a pé todos os dias, ida e volta. Era preciso silenciar a casa para a mana dormir tranquila, porque as 5h ela já estava de pé pronta para seu ofício. Assim, aprendemos a dormir cedo e a ver o dia despertar com o cantar do galo, quando a gente pulava da cama para a escola ou para o trabalho doméstico. 
Como a casa de meus pais é bem perto da BR, vez ou outra, éramos surpreendidos de por algum acidente na estrada. A gente acordava alvoroçada, e minha maior surpresa não era propriamente o acidente, mas o movimento de carros que não cessava a noite toda. 
Na escola, lembro-me com clareza, do dia em que a professora nos falou sobre as grandes cidades, com usinas e fábricas que não paravam à noite. Saber das siderúrgicas, que nunca desligavam seus fornos, me deixava boquiaberta. Era inconcebível para uma menina matuta entender que a vida noturna fluía como o dia, tempo durante o qual meus sentidos ficavam em alerta. 
Assim, até hoje sou diurna. Detesto trabalhar ou estudar à noite e, quando o faço, não é sem prejuízo para minha saúde, especialmente para meu sono, mas simplesmente porque não tenho opção de escolha. Quando o sol se despede e chega o ocaso, meu corpo entende que é hora de descansar e se recusa a fazer qualquer tarefa que exija raciocínio apurado, especialmente escrever e preparar aulas. Faço de tudo para dar conta das tarefas enquanto brilha o sol sobre minha cabeça, para eu me dar o direito de dizer “basta” quando ele declina. Com isso, o dia passou a ser muito corrido. É preciso fazer tudo a tempo e a hora porque sei que a noite não vai colaborar com as atividades laborativas. 
Nesse corre-corre, não poucas vezes fui advertida por alguns observadores. Uma de minhas irmãs vive dizendo que devo desacelerar. O farmacêutico que me atende na drogaria onde costumo frequentar já me disse duas vezes que estou sempre com pressa e acelerada. Tenho tentado prestar atenção nisso para evitar tanta fadiga. Quando ouço essa crítica, canto baixinho a canção de Almir Sater e Renato Teixeira: “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais”. Respiro fundo e tento recomeçar as tarefas mais lentamente.
Hoje, em pleno domingo, como é o meu costume, saí cedo para caminhar e, no retorno, passei no supermercado. Estava tranquilamente na fila do caixa, quando um senhor, vendo meus cabelos brancos, me ofereceu para passar na frente dele. Eu disse que não precisava, que estava de boa, eu podia esperar. Ele me respondeu que eu ficasse à vontade, porque ele estava disposto a passar o dia na calma, sem nenhuma pressa, direito que ele se dá ao menos no domingo. Eu aceitei a oferta, agradeci e voltei pra casa pensativa. Lenine tem razão: “A vida pede um pouco mais de calma”. 
Fiquei pensando na sabedoria do povo hebreu, que desde muito lutou pelo direito ao descanso. Quando dominados por Nabucodonosor e deportados para a Babilônia para fazer prosperar a capital do Império, os israelitas fizeram valer o direito à interrupção do labor. Estabeleceram como regra a santidade do sábado e, para justificar sua legislação, contaram numa narrativa mitológica que até Deus descansou no sétimo dia. Assim, demarcaram sua identidade de pessoas livres não só frente às imposições do dominador, mas também frente às ganâncias e ambições próprias, que poderiam levá-los a se esquecer de quem eram: um povo libertado pela mão de Deus. 
O descanso e o ócio não são apenas um direito para preservar a saúde física e mental. São nossa garantia de liberdade. Nesse sistema capitalista tão cruel, temos sido treinados para produzir mais e mais. Esse vício da produção entrou também no mundo intelectual. Nas universidades, somos cobrados incessantemente a produzir artigos, livros, cursos, projetos, orientações... um rol sem fim de produtos e processos acadêmicos que nos levam à exaustão e nos escravizam. Já não somos donos de nós mesmos; pertencemos à instituição empregadora. Não se trata aqui de uma reclamação acerca das duas instituições nas quais trabalho, mas do sistema educacional que entrou na lógica da produção e do consumo. Tem sido difícil ser professora, especialmente depois da pandemia, pois, aos trabalhos costumeiros da docência, foram acrescidos mil outros afazeres por meio de múltiplas plataformas digitais. 
Sigo me perguntando quando vou poder viver o que minha sobrinha de 4 anos me ensinou a cantar: “Tô na brisa. Nada me abala que delícia!”. Sigo na esperança...