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268. Vocabulário

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04.04.2022 | 3 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
268. Vocabulário
“No princípio era a Palavra,
e a Palavra estava junto de Deus
e a Palavra era Deus” (Jo 1,1)

No princípio era a Palavra, 
e a Palavra estava junto de Deus
 e a Palavra era Deus. 
Por fim, Deus se fez poesia, 
exaltando o amor na compaixão
à vida humana.
Ele, o Eterno Poeta
(Warley Tomaz)

Uma das coisas mais encantadoras do mundo dos livros, além de nos levar para espaços, tempos e aventuras inimagináveis, é a riqueza de vocabulário. Desde pequena, esse mundo lexical me fascinou. Ainda com uns 7 ou 8 anos, eu já decorava poesias para declamá-las nos eventos do chamado grêmio estudantil. Infelizmente, a memória é traiçoeira e não me deixa saber quais eram a poesia e o autor estudados que me apresentaram a palavra “débil”. Tenho na memória apenas a certeza de que se tratava de folhas débeis à margem do rio. Depois de ler a poesia, vasculhar cada verso e cada estrofe, a professora nos fazia anotar no caderno o significado das novas palavras. Menina da roça e sem cultura acadêmica, logo apontei a palavra desconhecida débeis. A professora abriu um dicionário e leu: fracas, frouxas, exaustas... Fiquei tão assustada com a elegância do termo que jamais o esqueci. Ainda hoje, se alguém diz débil, vem à memória os sinônimos na exata ordem decorada na escola primária.
O tempo passou, mas o encantamento com as palavras continua. Nas férias de janeiro, levei como companhia para uma curta viagem o livro Um copo de cólera, de Raduan Nassar, o mesmo autor de Colheita Arcaica. Esse último não li, apenas vi o filme. Na ocasião, fiquei impactada com a beleza literária dos diálogos, muito mais que com o enredo ou qualquer outra coisa. O mesmo se deu com a leitura de Um copo de cólera. Até para os xingamentos, o autor elenca uma riqueza de termos que eu desconhecia. Seu modo de escrever, sua construção frasal e sua variedade de vocabulário me deixaram de queixo caído. Realmente, trata-se de uma obra esplêndida.  
Também quando descobri a bíblia, ainda na primeira juventude, além da mensagem de fé, a diversidade vocabular e a riqueza cultural dos livros muito me impactaram. Impiedade, ímpio, circuncisão, concupiscência, epifania, publicano, prosélito, filactérios, benignidade, longanimidade, abominação desoladora são algumas das palavras que me chamaram a atenção. Somado a isso, as traduções mais antigas usavam alguns verbos conhecidos com sentido oculto para mim, como é o caso de um texto de Jó que afirma que “O Senhor fere e pensa a ferida”. Além da intrigante afirmação de que Deus fere, o que me obrigava a mergulhar na Escritura para descobrir do antropomorfismo, o fato de o verbo pensar ser usado com o significado de curar me levava ao êxtase. E mais, várias palavras são usadas num mesmo livro bíblico com sentido diferente. É o caso da palavra mundo no Evangelho de João, que pode indicar a humanidade amada por Deus, mas também o cosmos, a história e, para meu espanto, os inimigos de Jesus. E o que dizer da palavra carne, que pode significar circuncisão, natureza mortal, fraqueza humana, corpo material etc.? Em alguns casos, o dicionário me auxiliou no itinerário de muitas descobertas. Em outros, só o aprofundamento bíblico advindo com o mestrado foi capaz de me alumiar. Certo é que quanto mais se abria o mundo das palavras e seu significado, mais eu queria ler e descobrir outras estranhezas deliciosas da Escritura Sagrada. 
Ainda na viagem mencionada, convivi com três jovens encantadores: minha sobrinha (bióloga), seu amigo (físico) e uma amiga dele (secretária). Cada qual, advindo de universo diferente, trazia consigo seu próprio vocabulário. O fato de eles estarem entre os 30 e 35 anos e eu já vesperar meus 58 também contribuiu para o choque linguístico. Aprendi que uma barraca de nativo que tinha se adaptado ao gosto dos turistas e mudado seu cardápio tinha se gourmetizado. Descobri expressões como gay padrão e hétero top. Numa tarde de relaxamento total, quando fomos interpelados por nosso anfitrião se queríamos fazer outra coisa além de olhar o mar e descansar numa cadeirinha numa praia quase deserta, minha sobrinha respondeu que ela se encontrava em homeostase plena. Claro que não deixei passar e logo interroguei o sentido do termo próprio da biologia. Foi um gozo arrancar do baú da memória essa palavra já aposentado desde o ensino médio.
A troca de experiências e de vocabulário foi mútua. Fui surpreendida com muitas perguntas inteligentes sobre a teologia cristã e também sobre meu vocabulário. Minha sobrinha queria saber o significado da palavra sucumbir quando, conversando sobre a perversidade de nosso tempo e a necessidade de resistência constante, eu disse: “A gente é tentado a sucumbir, mas não podemos nos dar a esse luxo”. 
Essa aprendizagem vocabular segue a vida toda. Aprendi há pouco com meu amigo poeta a palavra recozerias, que aliás achei linda demais. Com meu professor de Moral Cristã, aprendi obnubilado e labilidade; com o de Liturgia aprendi androcêntrico, pois só conhecia antropocêntrico; com o de Teologia Fundamental aprendi ablativo e genitivo, casos do latim. Com uma professora de Filosofia aprendi infinitos termos tais como ontológico, epistemologia etc. Essa mestra nos mandava fazer um caderno com um léxico próprio do universo filosófico. Com meu velho orientador de grupo de jovens, aprendi farpa, de farpado. Na minha terra a gente falava frespa ou ferpa. Com as cuidadoras de minha irmã também ampliei meu mundo lexical. Elas me ensinaram as palavras pipinada, para falar de uma unha mal cortada, irregular, antes de ser lixada. E também o verbo rebuçar para dizer de embrulhar com esmero uma pessoa. Aliás, esmero aprendi com Vinícius de Moraes na sua canção A Casa. Com outro amigo querido aprendi álgida, que quer dizer fria, gélida. E, no caminho de luta contra a opressão dos mais fracos, aprendi aporofobia, misoginia e muitas outras. E assim tem sido minha vida. Tenho tecido com zelo artesanal o meu próprio dicionário e me alegro com essa recozeria, pra honrar meu amigo poeta. 
Tal é a força do mundo comunicacional que, no primeiro relato de criação do Gênesis, encontramos a afirmação de que Deus criou o mundo com a palavra (no hebraico dabar). A palavra é criadora, tem poder performativo (palavra que aprendi na filosofia). Ela até se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Deus é artífice das palavras, o Eterno Poeta, expressão de Warley Tomaz. Assim, sigo lendo tudo que me chega aos olhos, especialmente a bíblia e poesia, muita poesia.