224. Antes do dilúvio


“Constrói para ti uma arca de madeira resinosa...
E Noé executou tudo conforme Deus lhe tinha ordenado” (Gn6,14.22)
“Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim”.
(Khalil Gibran).
Quando a covid-19 começou a dar a cara no Brasil, minha afilhada e médica infectologista me disse: “Estamos como Noé, madrinha, recebendo o aviso do dilúvio. Temos alguns dias, talvez um mês, antes que o pior aconteça. Precisamos ler os sinais para evitar o caos total. O dilúvio virá, isso é certo. Resta saber se vamos conseguir nos organizar para construir uma arca protetora”. A metáfora é boa. Fiquei meditativa depois de ouvir essas palavras. Percebi que minha afilhada traduziu bem a realidade. As primeiras confirmações da doença foram feitas e a experiência da covid-19 em outros países poderia ter nos ensinado alguma coisa. Deveria ter nos advertido para os reais perigos da doença, de forma que pudéssemos evitar cenas de UTIs lotadas, de caixões enfileirados e de pessoas desesperadas por todo lado.
O relato do dilúvio, uma metáfora para falar da vida sempre necessitada de recomeços, é permeada de beleza e poesia. O texto integral pode ser encontrado em Gn 6,9–9,17. Trata-se de uma narrativa das origens, bem conforme ao gênero de Gênesis de 1 a 11. Noé, o novo Adão, renasce das águas purificadoras que recriam o mundo. Não é preciso nem explicar que o texto não é uma crônica de um fato acontecido, mas um relato mitológico das origens. Trata-se de um escrito sapiencial, cuja função é ensinar às novas gerações as lições mais importantes da vida, dentre elas o incansável amor de Deus, sempre disposto a recriar o mundo, a ensinar os caminhos profícuos da história e a nos advertir dos perigos da insensatez. Moral da história: Enquanto Noé é capaz de interpretar os sinais dos tempos e se preparar para o grande acontecimento, outros permanecem alheios às evidências da catástrofe seguindo a vida na maior normalidade. “Todos comiam e bebiam, homens e mulheres casavam-se, até o dia em que Noé entrou na arca. E nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (Mt 24,38-39).
Como o dilúvio, a pandemia foi discernida de forma variada. Uns ignoraram o perigo; outros, previdentes, se colocaram a executar um plano para evitar maiores males. Alguns acreditaram que uma enorme catástrofe se abateria sobre nós e logo deram jeito de se prevenir com a arma mais potente de todas: o isolamento social. Cada qual abrigado em sua pequena arca caseira se protegendo da disseminação do vírus e protegendo toda a sociedade. Infelizmente, as populações mais vulneráveis, sempre vítimas das injustiças sociais, ficaram impotentes, pois não têm sequer um casebre para se esconder, como o “Filho do Homem que não têm onde reclinara a cabeça” (Lc 9,58).
Não faltou, no entanto, quem classificasse a doença como uma “gripezinha” que só faz a criança ficar catarrenta. Viram os sinais no céu e na terra, mas preferiram seguir sua cabeça maluca e seu coração indiferente a escutar a voz da razão ou do coração. São negacionistas, para quem a Organização Mundial da Saúde, todos os líderes mundiais e a ciência não têm nada a nos dizer. São autossuficientes, bastam a si mesmos pois sua arrogância os alimenta. Então, criaram um falso dilema para enganar os incautos e justificar o plano de extermínio dos vulneráveis do país: colocaram a economia em confronto com a vida e, para salvar a primeira, menosprezaram o valor do confinamento, arriscando a vida de milhões de brasileiros.Não atenderam o chamado do amor, que ordena o cuidado do outro. Tiveram medo da espada que se esconde debaixo de sua plumagem. Não acreditaram na sua voz, pois arriscavam-se a ver estraçalhados seus sonhos financeiros e sua onipotência. Atenderam o chamado do lucro; deram ouvidos aos próprios interesses, sufocando a voz do amor.
Estabeleceu-se, então, o caos. Governadores e prefeitos puxam daqui para tampar ali; presidente e ministros puxam de lá para tampar – ou destampar, nunca se sabe – acolá. Muita promessa, pouca efetividade nos planos. Muita gente se movimentando, pouca coordenação das ações. Muitas fake news espalhadas nas redes, pouca verdade científica disponível para a população. O Brasil vive uma cena de guerra. Não foi por falta de tempo para gerir os recursos – ainda que parcos – e evitar catástrofes maiores. Mas a burocracia e a má vontade falam mais alto que as necessidades urgentes do povo.
Sobre isso, vale a pena conhecer a Fábula da Arca, originalmente contada por Marilda PRATES em seu livro Reflexão & Ação em língua portuguesa: 8ª série. São Paulo: Editora do Brasil, 1984. p. 139-140. Como a história é grande, segue abaixo breve resumo.
Conta a fábula que, certo dia, a divindade chamou o rei do céu para dar-lhe uma ordem. Ele deveria construir uma grande arca dentro de um mês. O rei imediatamente falou com um amigo, e eles foram atrás de um velho fabricante de arcas, que já havia trabalhado para o bisavô do soberano.
Um dos sábios que assessorava o rei ficou receoso de confiar tão nobre missão a um homem já tão velho e sugeriu formar um grupo para coordenar o programa de fabricação da arca: o Projarca. O rei se viu meio sem alternativas e concordou.
Dentro de quinz dias, o ancião já tinha providenciado madeira para seu trabalho, mas os técnicos da Projarca duvidaram da qualidade do lenho. Houve atritos, fizeram uma equipe de trabalho, a Peskarca, que operaria no mercado, inclusive tornando lucrativa a atividade de construção da arca. Entretanto a Peskarca não podia ficar subordinada a um grupo de trabalho; criou-se então a superintendência chamada Superarca. Dela foi criada a Imarca – para defender a imagem da Superarca. Fizeram fluxogramas. Dispensaram o velho fazedor de arcas. Criaram a Comarca – uma companhia de economia.
Passados os trinta dias combinados, o rei foi chamado à presença de Deus. Depois de longa negociação, o rei ganhou mais quinze dias de prazo para terminar a arca. Disse que tinha vinte e cinco mil funcionários trabalhando na obra, só a montagem ainda não tinha sido iniciada, mas já tinham arrecadado um valor considerável de dinheiro.
O rei apressou seus sábios, que logo criaram um grupo interministerial para orientar o trabalho, o Interarca. Trabalhou-se dia e noite e, passado o tempo previsto, tinham pregado a primeira tábua da arca propriamente dita, o que foi acompanhado por uma cerimônia, com cobertura da Gazeta da Coroa e tudo mais.
Na manhã seguinte, o rei ficou sabendo que deveria pedir mais tempo a Deus. Tentou nova audiência, mas só conseguiu ser atendido por um santo. Argumentou como pôde, mas nada. Deus estava irredutível. O santo não estava autorizado a dar mais tempo.
Descendo para o seu reino, o rei sentiu uma garoa fina começando a cair. Três dias depois continua chovendo. A inundação foi tomando conta de todo o país. A corte reuniu-se já com água na cintura. Um dos sábios mais espertos viu ao longe uma arca se aproximar. E disse: “Parem aquela arca! De quem é aquela arca?” O rei respondeu: “Não adianta. Ela não vai parar. É do velho Noé, que trabalhava para meu bisavô!” E Noé, que em sua arca só levava bichos, seguiu em frente.
Triste retrato da realidade brasileira! Nossa gente segue afundando no lodo da pandemia, enquanto os governantes se embaralham em burocracias e tramas políticas da pior espécie. Chora, Brasil, enquanto o dilúvio desaba!
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