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211. Reflexão para o 4º Domingo da Páscoa – Jo 10,11-18

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24.04.2021 | 11 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
211. Reflexão para o 4º Domingo da Páscoa – Jo 10,11-18
 evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Quarto Evangelho, no qual Jesus se auto define como o único, bom e autêntico pastor das ovelhas. Em cada ano, lê-se um trecho diferente, mas sempre do mesmo capítulo. Por isso, esse domingo foi intitulado de “Domingo do Bom Pastor” e, oportunamente, o Papa Paulo VI o instituiu também como o “dia mundial de oração pelas vocações”. Neste ano, o texto específico é Jo 10,11-18. O cenário da narrativa é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo,  durante uma das festas judaicas de peregrinação, embora não fique claro qual delas, se a das tendas ou a da dedicação do templo (cf. Jo 7,1-10; 10,22). É importante perceber que o evangelista João faz as principais manifestações de Jesus coincidirem com as festas de Israel para enfatizar sua condição de oposição e alternativa à estrutura religiosa do seu tempo.

Desde o início do cristianismo, a imagem de Jesus como bom pastor tornou-se muito apreciada. Logo nos primeiros séculos, começou-se a representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, uma imagem bonita, mas que não corresponde exatamente ao conteúdo do décimo capítulo do Evangelho de João. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada “parábola da ovelha perdida” (cf. Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Evangelho de João é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade, apesar de representar também o cuidado. O pastor autêntico, conforme a perspectiva de João, é aquele que aponta caminhos, abre porteiras e estradas, e é seguido porque conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas.

A figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel, sendo associada a Deus e também às lideranças do povo, como reis e sacerdotes. Contudo, essa imagem se desgastou ao longo do tempo, devido à infidelidade dessas lideranças, tornando-se alvos de denúncias pelos profetas. E uma das principais denúncias foi a do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11). Jesus atualiza essa perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo, os mestres da lei, e todas as pessoas que exercem pastoreio ilegitimamente. Por isso, suas palavras neste capítulo tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após esse discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (cf. Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (cf. Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi vista como ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protegê-lo.

Ainda a nível de contexto, convém recordar que o décimo capítulo de João é precedido pelo polêmico episódio da cura do cego de nascença, do qual surgiu um caloroso conflito de Jesus com os fariseus (cf. Jo 9,1-41). Para os fariseus e os dirigentes judeus, o gesto libertador de Jesus, ao curar o cego, era uma ameaça aos seus privilégios, por isso, o rechaçaram com veemência. Mas Jesus não se deu por vencido e, por isso, continuou sua investida para desmascará-los. É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e para que adquiram lucidez e conhecimento para seguirem somente ao único e autêntico pastor, entrando e saindo pela única porta que conduz à vida em plenitude. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir da imposição e do medo.

Feita a contextualização, olhemos para o texto, cuja profundidade é evidenciada já a partir do primeiro versículo: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (v. 11). Com a expressão “Eu sou” (em grego: Ἐγώ εἰμι – egô eimí) Jesus recorda a sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus, como tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João tem um grande zelo por essa expressão, e só permite que ela seja pronunciada por Jesus, em sua obra. Assim, ele afirma que Jesus possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo, ao revelar-se como pastor autêntico. Por sinal, a expressão “bom pastor” não expressa tudo o que o texto diz na língua original. O evangelista emprega um termo que significa mais do que bondade; significa belo, não em relação às aparências, mas no sentido de completude, autenticidade, perfeição, realidade única (em grego: καλός – kalós); é o mesmo adjetivo empregado para qualificar o vinho novo das bodas de Caná (cf. Jo 2,10), que representa a superioridade da nova aliança em relação à antiga. Tem portanto, uma função substitutiva. Isso quer dizer que só Jesus é pastor autêntico. Não existem outros pastores além dele; se existiram antes, perderam a validade depois dele. E o que explica a qualidade única do pastoreio de Jesus é a capacidade de dar a vida pelas ovelhas, que pressupõe um amor ilimitado.

Após apresentar-se como pastor, Jesus mostra o seu oposto: “O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa” (v. 12). O termo mercenário, que se tornou tão pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado; aqui, representa a hierarquia religiosa de Jerusalém. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, “pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as ovelhas” (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam. O lobo é imagem das forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Nesse contexto específico, representa o império romano. Ao invés de combatê-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante recordar que as denúncias de Jesus às estruturas da sua época são válidas para todos os tempos.

Na sequência, Jesus explica como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: ele conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (cf. Os 2,22; 4,1; 6,3.6; Na 1,8; Jr 31,34), por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante a de Jesus com o próprio Pai: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas” (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com as suas ovelhas é atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida. Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, mediante o amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir” (v. 16a). Aqui está a abertura de horizonte. Pelas circunstâncias, o pastoreio de Jesus começa por Israel – o redil ao qual o texto se refere – , libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a todo o universo, ao longo da história.

A abertura universalista recorda que nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também as pessoas que não fazem parte do redil pertencem a Deus e são amadas por ele. Como diz Jesus, também “elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v. 16b). Temos aqui o “sonho da unidade” sendo plantado por Jesus. A expressão “um só rebanho e um só pastor” não significa simplesmente a adesão de todo o mundo a um único sistema religioso, submetendo-se a uma única liderança. Significa, acima de tudo, um projeto de fraternidade universal, com inclusão, tolerância, justiça e solidariedade; é um mundo novo, construído a partir do amor. Par isso, é necessário que a voz inconfundível de Jesus ressoe em todo o universo, mas expressa pela linguagem do amor, jamais através de proselitismos. De fato, a voz de Jesus não é um som, não é um eco, mas é o seu estilo de vida, seu jeito de amar, enfim, é a sua própria pessoa. Espalha essa voz no mundo, portanto, quem vive e ama à sua maneira, e não quem faz proselitismos em templos, praças e esquinas, repetindo fórmulas e mensagens ameaçadoras.

Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: “É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente” (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la, torná-la eterna. E a vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo” (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência e consciência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor incondicional não mede consequências. A expressão “tenho o poder de entregá-la e de recebê-la novamente” (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: “essa é a ordem que recebi do meu Pai” (v. 18c). Como se vê, Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida. É isso o que ele pede aos seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja, de fato, a primeira instância do sonho de “um só rebanho e um só pastor”, como embrião de um mundo novo.

Que o Pastor Bom, autêntico e único, inspire vocações que façam ressoar a sua voz no mundo, suscitando colaboradores e colaboradoras para o seu pastoreio. Em tempos tão difíceis, é essencial que sua voz seja ouvida, sobretudo no combate aos mercenários e lobos que se tornam cada vez mais agressivos e numerosos. E para colaborar com o pastoreio de Jesus é necessário deixar-se conhecer por ele, deixar-se amar e segui-lo.