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174. O Deus dos contrários

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06.03.2018 | 5 minutos de leitura
Diego Lelis Cmf
Crônicas
174. O Deus dos contrários

“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra,

porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos,

e as revelastes aos pequeninos.” (Mt 11,25-26)


 

“No meu interior tem Deus,

Tem Deus, tem Deus.

Eu sou um território sem fronteira,

Coração não tem porteira,

Mas quem manda aqui é Deus”

(Fábio de Melo)


 

Uma das coisas que mais me fascinam em Jesus é sua inversão de valores, sua maneira de nos revelar a ordem contrária que Deus utiliza para se manifestar ao mundo. E isso tem até nome na teologia; “inversão escatológica”. É só ler o Magnificat (Lc 1,47-55) para logo perceber isto: Deus sacia os que têm fome e deixa os ricos de mãos vazias; levanta o caído e abate o opressor etc. O Deus de Jesus não está nos padrões esperados. Jesus de Nazaré viveu na marginalidade religiosa e agiu na contramão da fé convencional. Sendo divino, desprezou sua condição e experimentou a kênosis: esvaziamento e humilhação total, assumindo a condição humana, e a condição do menor de todos – o servo (cf. Fl 2,1-11).  O Filho de Deus andou com marginalizados e se fez amigo deles. Na maioria das vezes, desobedeceu a Lei Judaica e ainda mostrou sua caducidade. Como se não bastasse, Jesus revelou Deus nas coisas mais pequeninas, como os lírios do campo e as aves do céu, e deixou clara sua opção pelos menores da sociedade, os pobres e os pecadores. Jesus rompeu com as convenções e frustrou as expectativas messiânicas, como mostra o Evangelho de Marcos. Ele viveu no “mundo do contrário”; é o avesso do Deus institucional.


E, falando em contrários, num dia desses, em uma dessas pequenas pausas para tentar recolocar a vida no prumo, deram-me um texto que, segundo consta, me ajudaria a mergulhar no mistério divino. Texto acadêmico: palavras difíceis, raciocínio elaborados, caminhos epistemológicos bem trabalhados. Mas o resultado foi pouco. Muita especulação da fé e pouca, ou quase nenhuma, experiência que realmente leve ao encontro do Deus verdadeiro.


Não sei por que, mas teorizamos a fé. Buscamos Deus no mais distante de nós e não no íntimo do coração, como diria Santo Agostinho. Desprezamos a sabedoria propalada pelo povo e cantada por Fábio de Melo: “coração não tem porteira, mas quem manda aqui é Deus”. Escrevemos manuais e tratados dogmáticos; redigimos infinitas enciclopédias teológicas e criamos roteiros no intuito de alcançarmos a plenitude da fé, quando na verdade ele se dá a conhecer no mais íntimo de nós, nas experiências humanas, no cotidiano da nossa existência, em tudo que é significativo para a vida humana.


Livros e reflexões teológicas são coisas necessárias, para ajudar a dar as razões da fé, mas uma fé que nasce dos manuais tem as pernas frouxas. A fé cristã não se sustenta sobre essas complexidades. Ela vem à luz como o Menino Deus, que nasceu no relento da vida, em meio a coisas singelas, e viveu entre pessoas simples. Ela cresce e se desenvolve na fragilidade e na beleza do mundo, fortalecendo-se com tudo que ele pode oferecer, até suas misérias.


Eu, por exemplo, encontro Deus nos lugares simples, com poucas regras e muitas partilhas. Eu o experimento nos sabores de minha terra natal, nas panelas enegrecidas pela fumaça sobre a trempe do fogão de lenha, no cuscuz comido com as mãos e dividido com os irmãos, no café coado na hora quando recebemos uma visita, no doce da comadre Ana, no requeijão da dona Alzira, na coalhada da Zélia, no molho de pimenta de tia Leonora... Para mim, experimentar Deus é como acordar feliz numa manhã de domingo; é algo natural, sem chorumelas ou salamaleques, diriam por aí, pois, em Deus, não cabem artificialidades. Estas nos roubam o fascínio pelo simples e pelo belo, endurecendo o nosso coração.


Estou convicto que as experiências mais genuinamente cristãs não vêm de elucubrações teológicas ou de definições dogmáticas, mas da vida partilhada, da solidariedade, da simplicidade e da fraternidade. É assim que Deus se me manifesta: em gestos de respeito, em abraços e carinhos, em sinais de gentileza e de doação. No amor e na partilha, a jantinha na casa da comadre é sacramento de comunhão, a mesma comunhão que havia entre o Mestre de Nazaré e seus amigos. E, como naquela noite de despedida, quando a gente se reúne, eterniza-se no coração da gente o que a vida tem de mais importante: o amor e a fidelidade. Enquanto o alimento recobra as forças físicas, a fraternidade dá ânimo ao coração e a alegria de viver se renova ao redor da mesma mesa.


O Deus de Jesus mora na simplicidade, no cotidiano da vida, no mais ordinário da existência humana, na singeleza do abraço, no sorriso generoso, nas memórias feitas eternidade, no partir do pão, no assar dos peixes... O que ele pede de nós é que abramos o nosso coração para perceber a sua manifestação, sem medos, sem regras descabidas, sem legalismos e sem teorizações.