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172. Entre o corte e a limpeza (Jo 15, 1-8)

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29.04.2024 | 7 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
172. Entre o corte e a limpeza (Jo 15, 1-8)
O evangelho desse quinto domingo da Páscoa nos apresenta parte do discurso que Jesus realiza durante a ceia, com seus discípulos. Esse discurso (caps. 13-17) começa com o lava-pés (13) e termina com a oração sacerdotal de Jesus (17). O capítulo 15, lido nesse domingo, procura responder uma questão fundamental para os cristãos do primeiro século, sobretudo, quando as comunidades sentiam a dificuldade de não viverem mais junto de pessoas que conviveram com Jesus diretamente: elas se perguntavam como podiam assimilar o jeito de viver do Senhor e onde estavam os sinais de sua presença no mundo. 
A resposta, rapidamente, é uma só: é dando o fruto do amor que se mantém ligado a Jesus e à sua presença vital (para falar dessa ligação, o texto usa a imagem da videira e seus ramos). Essa ligação visibiliza a presença do Ressuscitado no mundo, através dos próprios frutos. Ora, não é preciso insistir muito nessa imagem vital, mas é preciso dizer que os ramos de uma videira são videira também. Há uma continuidade, uma comunhão indissociável entre o Cristo e os que desejam amar e produzir frutos de amor. 
O verbo forte do evangelho de hoje é permanecer! Uma outra tradução possível para o termo “méno” (=permanecer) é morar. E a isso, está associada uma referência anterior, nesse mesmo discurso de Jesus, a saber: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” (14, 23). Finalmente: trata-se de permanecer, ou ainda; morar em Jesus. E ele há de permanecer, morar em nós. Para uma comunidade sem templo físico, reunindo-se nas casas, essa catequese de João amplia o que é adorar em Espírito e Verdade (Jo 4, 23-24); é glorificar a Deus com o fruto do amor, render-lhe a glória para a qual não interessam mais templos, mas a vida, ela, tão somente. Morar em Jesus, dando frutos, é o que glorifica o Pai. 
Todavia, gostaria de me concentrar no papel do agricultor. Seu papel é intrigante neste Evangelho e serve à interpretações ambíguas, que descaracterizam o rosto de Deus. Deus não precisa de nossa defesa, mas a nossa fé em seu amor, essa sim. Isso, porque, de outro modo, podemos terminar envenenados com falsas imagens de Deus, perdendo a imagem que brilha de uma vez por todas no rosto do Cristo. 
1. Os ramos que não dão fruto, ele corta. 
A imagem do Deus que corta os ramos infrutíferos pode deixar um mal estar, um incômodo que faz perguntar se o cuidado com a videira é utilitarista: importaria, então, o fruto, só resultado, não o galho, ele mesmo? Mas a imagem do corte tem dois sentidos; um eclesiológico (A) e o outro existencial (B). 
A.
Na Igreja é uma tentação corrente dizer quem produz ou não fruto, como se pudéssemos tudo conhecer, ou tudo saber, inclusive sobre o coração das pessoas. E tentação maior ainda é cortar, lançar fora, deixar secar, jogar no fogo (e do inferno, de preferência!), os que achamos serem ramos que não prestam. Ao colocar a função do corte nas mãos de Deus, o evangelista pretende restringir a ação da Igreja; não é sua missão cortar, ela pertence a Deus tão somente. 
Sim, é verdade que uma árvore se a conhece pelos frutos, mas nosso olhar é sempre restrito e sabe pouco, tanto sobre os frutos que damos, quanto sobre os frutos que os outros dão.  Nosso coração ajuizador, de nós mesmos ou do outro, é cruel, mas “Deus é maior que nosso próprio coração” (1 Jo 3,20). 
Além disso, recordemos a bonita imagem da figueira infrutífera do evangelho de Lucas. Contra o dono da figueira, o cuidador da plantação não quis arrancá-la, antes propôs: “Senhor, por favor, deixe-a por mais um ano. Eu vou cavar em volta dela e colocar bastante adubo. Se ela der figos no ano que vem, muito bem; se não der, o senhor poderá mandar cortá-la”. (Lc 13,8). Ou seja: Deus dá seus jeitos de cuidar de nós, com sua misericórdia, levando-nos ao fruto do amor. 
B. 
Podemos, entretanto, resistir ao fruto do amor, e fechar nossa vida a esse dinamismo profundo, cortar vínculos profundos com ele (apesar de muitas vezes estarmos ligados ao tronco por outras razões, pouco profundas: tradição, comodidade, costume). Ao não produzirmos o fruto, cortamos a nós mesmos do vínculo profundo com esse dinamismo do amor, com o tronco que é Jesus).
O evangelho está sendo consequente com a liberdade. A imagem dos galhos secos, lançados ao fogo, não são nenhuma ameaça de castigo (não há ameaça apocalíptica em João), mas uma metáfora do desespero, da falta de sentido para a existência quando nos fechamos para a palavra de Jesus, para os seus mandamentos (que são um só: amai-vos como eu vos amei). E sim, é óbvio que alguém possa escolher exatamente isso, estar fora desse fluxo, fechado a ele, mesmo estando dentro, aparentemente. A imagem do corte funciona assim como uma explicitação, às avessas, do que cada um pode escolher, bem como um jeito de advertir, à moda do gênero profético: como estar na videira e não se deixar alimentar por sua seiva, e frutificar?
2. O ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda. 
A imagem da limpeza dos ramos que frutificam mostram como Deus é ativo no cuidado; criador e cuidador. Não interessa quantos frutos os ramos dão, contanto que frutifiquem, para o bem deles mesmos, e da videira toda.
Aqui, a ideia da limpeza é central. Para a época de Jesus, lembremo-nos de que a religião é super preocupada com a limpeza: limpeza ritual, limpeza sacrificial, estar limpo para a ação litúrgica, estar limpo para glorificar a Deus. Essa preocupação é alvo de muitas denúncias de Jesus, sobretudo nos sinóticos. Jesus combate os farisaísmos e suas hipocrisias; os ritualismos e sua superficialidade; os formalismos e puritanismos e sua indecência. Não vamos nos esquecer que João é conhecedor da literatura profética e é aqui que está um de seus grandes giros: é Deus quem limpa, esse é um ofício seu. 
Na esteira do farisaísmo antigo pode estar, sem dúvidas, nossa religião, que não raras vezes se torna uma religião do perfeccionismo, do moralismo, do puritanismo; cada um dos cristãos e cristãs preocupados consigo apenas, em evitar o pecado, em não se sujar. A religião vira o lugar para se concentrar em si mesmo, para viver autorreferenciado, numa obsessão que consiste em evitar erros. Para Jesus, a radical preocupação de cada um que se liga a ele deve ser o amor. Se há algo que atrapalhe, bloqueie o fluxo do amor, o próprio Pai há de limpar. 
E a ressalva, conta aqueles que supõe que a “poda” (interessante que alguns intérpretes usem essa palavra, enquanto o texto usa propositalmente a expressão limpar!) é dolorosa. Ressaltam, por vezes, que Deus se vale do recurso do sofrimento para nos fazer crescer, que ele se vale da dor para nos levar à maturidade do fruto. Esses são absurdos que contrariam o texto. Primeiro, porque o que nos purifica é a Palavra de Jesus (“Vós já estais limpos por causa da palavra que eu vos falei” - v.3). É pela palavra de Jesus que o Pai nos limpa. Depois, é pela ação de Jesus, de que o lava-pés é testemunho, que prova que já estamos todos limpos. Exceto se preferimos, escolhermos as trevas, como o Judas do evangelho joanino.
A limpeza para a produção de frutos, é a própria palavra do amor. O que nos purifica para produzirmos amor? O próprio amor. Não a pedagogia do sofrimento que pode produzir muitas coisas, inclusive o desamor. No fim, o amor nos limpa, pois “o amor cobre uma multidão de pecados” (1 Pd 4,8). Por isso, Jesus poderá acrescentar, como veremos no próximo domingo: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor.” (Jo 15,9).