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165. Mudanças

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02.01.2018 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
165. Mudanças

A letra mata;

o Espírito é que dá a vida.” (2Cor 3,6)



Roda gigante, roda moinho,

Roda gigante, roda pião,

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração"

(Chico Buarque)



A minha vó materna sempre dizia: “coisa mais certa é, depois de ficar véio, morrer; véio não dá conta de tanta novidade desse mundo não”. Lembro-me perfeitamente do seu escândalo quando viu pela primeira vez um homem e uma mulher se beijando na telenovela, o que fez a pobre senhora repetir seu jargão sobre a morte mais que conveniente numa certa altura da vida, evitando que os velhos permaneçam se escandalizando com o movimento da história.


De fato, a vida muda. Minha vó tinha razão. Muda rápido... Como disse Chico Buarque, “o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”. Num piscar de olhar, a paisagem se transforma como se estivéssemos num veículo super-rápido, que deixa para trás o que nossos olhos queriam reter.


Melhor estar preparado para as mudanças. Melhor estar sempre aberto ao novo, ao inusitado, às novidades do tempo e do Espírito. Bem-aventurado o que não tem certezas muito profundas, pois está sempre aberto ao novo que o Espírito inspira. Muitos dirão o contrário: “Onde fica a tradição? E os valores imutáveis? Por isso esse mundo está essa bagunça. Bem-aventurados os que têm certezas absolutas, pois não traem os ensinamentos de Deus!”.


Entre trair ensinamentos cristalizados e trair o Espírito, digo eu, melhor trair os primeiros, pois “a letra mata e o Espírito vivifica”, disse Paulo. O Espírito é capaz de suscitar fidelidade aos ensinamentos, mas os ensinamentos por si só não são capazes de nos manter sintonizados com o Espírito de Cristo. Eles podem se tornar perigosos, pois – se instrumentalizados – servem mais a nós mesmos e a nossos interesses que ao Deus da vida.


A vida é movimento; é atualização, devir, vir-a-ser. Não nos foi dada pronta, mas nos foi confiada como tarefa. E, se isso é verdade, a mudança a compõe. Ainda bem que temos o Espírito de Jesus conosco, sempre a nos ensinar o novo e a nos ajudar a refazer nossos padrões. O Espírito sopra onde quer e como quer; ninguém o retém, nem o aprisiona ou controla. Ele suscita no coração daqueles que o acolhem a capacidade de aceitar o novo, o que se mostra totalmente fora dos padrões estabelecidos. É só ler os Evangelhos para perceber como Jesus acolhia aqueles que não se enquadravam nos padrões sociais da época.


Hoje cedo, quando saí de casa, precisei rever meus conceitos e reinterpretar a vida humana. Tenho vivido num quadrado bem delimitado; tudo bem definido. Sair dele custa-me esforço e, principalmente, amor e humildade. Esforço para me desinstalar; amor para acolher o diferente; humildade para admitir que da vida nada sei, sou aprendiz.


Andando pelas ruas da minha cidade natal, logo cedo, nos primeiros mil metros no volante, o pneu se mostrou furado. Veio um vizinho – antigo torturador de infância com medos medonhos tais como “a Mão da Biluca” – que me estendeu sua mão. Desta vez, não a Mão da Biluca, monstro infantil que me perseguia por causa de ameaças deste vizinho e seus irmãos pestinhas, mas a mão do coração e da gentileza, que me auxiliou na troca do pneu. Que bom! Pneu trocado; monstro vencido. A generosidade é mais forte que as fantasias do passado.


Depois, tomei rumo para consertar o pneu. Como já não conheço quase nada ou ninguém na cidade natal, fui informada sobre uma borracharia. Cheguei toda formatada perguntando sobre o borracheiro. Borracharia aberta e ninguém no local. Ao me ver gritando na porta, veio uma pessoa ao meu encontro. Eu disse: “Moço, pode me ajudar com esse pneu?”. Gentilmente o moço veio ao meu encontro, diagnosticou o problema, pediu para deixar o pneu e voltar a tarde para pegá-lo. Nada de novo ainda... Não me dei conta que era uma borracheira! Foi só à tarde, quando achei a borracharia fechada e pedi informações num bar ao lado, que alguém me disse: “Fulana estava aí agorinha mesmo!”. Na minha ingenuidade ainda pensei que era a mulher do borracheiro que conheci pela manhã. Só depois compreendi que o borracheiro que eu conheci era uma borracheira. Seu nome feminino estava estampado na placa.


Simpática, bondosa, puxou conversa, contou-me que adota cachorros de rua. Um deles estava na oficina vigiando sua dona e beijando-a no rosto. Foi preciso tempo para eu reconhecer nela uma antiga conhecida de infância. Não era uma amiga íntima, mas fazia parte do meu universo adolescente. Lembro-me de sua família e dos seus... Atendeu-me com bondade, colou e trocou o pneu com competência. Totalmente assumida, não vacilou, não se constrangeu com o título de moço que lhe dei, nem implicou comigo de forma que eu tivesse de me desculpar pelo vocativo equivocado.


Voltei para casa pensando: a vida surpreende a gente. Seria tão bom se não vivêssemos num espaço tão delimitado, com padrões tão bem definidos! Ainda não estou pronta, admito. Mas sei que a vida humana não cabe nos limites estreitos de minha ignorância. Ela é plural, multirreferencial, plena de diversidade. Pena a gente catalogar o universo e colocar etiquetas em tudo e em todos. É hora de repensar os padrões nos quais fomos criados ou devemos dizer como minha vó: “Ficamos velhos e devemos morrer mesmo”. Para quem crê em Jesus e o segue, melhor aceitar a dinamicidade da vida e suas novas configurações. Mudam-se os padrões; permanece a tarefa de cuidar da vida, sempre bela e rara, exigindo ser reconhecida na sua dignidade.