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120. Esse vilão, o tempo

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10.01.2017 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
120. Esse vilão, o tempo

“Vai embora, satanás” (Mt4,10)



“Vai-te para longe de mim, hora.

O bater de tuas asas me excrucia.

Mas de minha boca, que fazer agora?

E da minha noite?

E do meu dia?"

(Rainer Maria Rilke)



Na Escritura Cristã, não nos falta a figura do diabo, também chamado de satanás, espírito imundo ou demônio, mostrado como aquele que escraviza e maltrata as pessoas. São recursos de linguagem que os evangelistas utilizam para indicar a preciosidade da vida que nos escapa e precisa ser recuperada. Hipotecada por sua presença que atormenta, a vida pede para ser libertada e clama pela presença libertadora de Deus. Por isso, volta e meia, encontramos relatos em que Jesus liberta um pobre coitado de um desses espíritos opressores. A mulher encurvada estava há anos olhando para baixo, sem poder contemplar a beleza da vida (cf. Lc 13,10-17). O surdo-mudo não conseguia se comunicar, nem ouvir ou proclamar a palavra de Deus (cf. Mc7,31-37). Outro endiabrado vivia perdido pelos sepulcros, lugar próprio dos demônios pois eles desprezam a vida (cf. Mc 5,1-20). São tantos! Todos eles sedentos de libertação! E, vendo a situação de opressão, Jesus não hesita: “Vai-te daqui, satanás!” ou ainda: “Espírito imundo, sai deste homem!”. São ordens frequentes encontradas nos Evangelhos.


Como os endemoninhados dos Evangelhos, gostaríamos de viver libertos. Um novo ano se inicia e, com ele, nossos sonhos são realimentados. “Este ano vai ser diferente”, dizemos. “Não vou me aprisionar em bobices; não vou me desgastar com coisas tolas que não valem a pena”, prometemos a nós mesmos. Mas vai ano e vem ano, estamos sempre presos em alguma bobagem que não nos deixa ser aquilo que de fato desejamos, nem nos deixa viver aquilo que de fato sonhamos.


Precisamos ser exorcizados; não por um padre exorcista ou um pastor poderoso qualquer. Precisamos nós mesmos nos exorcizar. Exorcizar nossas culpas; exorcizar nossos medos; exorcizar nossas angústias... Exorcizar-nos da escravidão do dinheiro, da obrigação de muito possuir, de ter sucesso sempre, de ser sempre um vencedor. Como disse Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo!”. Essa obrigação de sempre nos dar bem nos maltrata. Confessar o próprio fracasso pode ser libertador. Precisamos nos livrar da opressão deste sistema político e econômico que nos obriga a viver um estilo de vida que não nos realiza, não nos traz nem alegria nem paz e, ainda, nos impede de viver a fraternidade. E, em nome do sucesso, do ter e do poder, nos tornamos escravos de tudo. Escravos do dinheiro, do sucesso e até do tempo. Presos em suas armadilhas, amarrados em suas artimanhas, temos os pés atados e não conseguimos prosseguir. Sim. Até o tempo, antes nosso aliado para bem-viver, tornou-se nosso opressor.


Como um diabo, o tempo nos aprisiona e nos mostra nossa fragilidade. Quanto mais ele passa, mais nossa debilidade fica exposta, mais nossa caduquice se mostra e mais se mostra nossa inabilidade para administrá-lo. Gastamos nossos dias com o que não convém. Passamos as noites em claro preocupados com futilidades. Horas e horas a fio são dedicadas ao que não nos realiza e, quando vemos, já estamos envelhecidos sem ter vivido o que mais desejamos um dia. Nossos cabelos ficaram brancos; nossas pernas perderam as forças, nossas mãos se mostram trêmulas... E continuamos escravos do tempo. Ele nos possuiu e nos governou como um diabo a um possesso.


Mas o que fazer? Ficar suspenso do tempo é coisa impossível, sabemos bem. Mas não é impossível torná-lo nosso aliado, colocando-o a nosso serviço e a serviço daqueles que amamos. “Há um tempo para tudo”, diz o Eclesiastes. Sábias e libertadoras palavras. Quem as acolheu e as compreendeu bem está a meio caminho da libertação desse demônio. Como canta Nana Caymmi, na música de Aldir Blanc e Cristovão Bastos, é preciso inverter o jogo. Quando zombados pelo tempo, podemos dizer a ele que não nos perdemos em futilidades. Ele é que deve nos invejar e não nós a ele. Ele deve estar a nosso serviço e não nós a ele. “E o tempo se rói com inveja de mim.Me vigia querendo aprender como eu morro de amor pra tentar reviver”. Se vivido no amor, nenhum tempo é escravidão, mas libertação. Se nossos dias forem gastos com a fraternidade, o tempo terá ganhado sentido. Terá valido a pena viver.Nesse novo ano, exorcizemos nossos demônios! Exorcizemos tudo aquilo que faz a vida ser mesquinha e retira dela sua dignidade mais plena! Coloquemos o tempo a serviço da vida – da nossa e da dos irmãos, especialmente dos mais fragilizados! Esse é o único modo de nos ver livres de sua escravidão!