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9. A mulher na Igreja

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29.05.2014 | 32 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Acadêmicos
9. A mulher na Igreja

Dados estatísticos indicam que as mulheres investem mais em religião que os homens. De fato, quem participa de alguma religião, frequenta o culto, faz parte de uma pastoral ou movimento religioso nota uma presença numerosa de mulheres nesses ambientes de fé. Dessa observação, alguns concluem que as mulheres são mais religiosas que os homens. Seria isso verdade? Essa religiosidade, essa sede do sagrado, é uma marca feminina ou um traço cultural? O que as mulheres buscam tanto na religião? Por que elas se identificam com esses ambientes e neles gostam de permanecer? Mas, se as mulheres são maioria nos grupos religiosos, por que elas não estão nos órgãos de comando das mesmas? Por que os ambientes religiosos ainda são tão generificados, marcadamente masculinos? A presença da mulher na religião e seu papel no mundo religioso é tema controvertido e de amplo espectro. Tentemos pelo menos entender um pouco mais o universo católico, a força da mulher nesse ambiente, seu valor, as regras que lhe são impostas, os interditos que ela conhece, as possibilidades que lhe são dadas, os espaços que ela já conquistou, a visão da teologia acerca da mulher etc.


A mulher, um ser religioso


Para a fé católica, homens e mulheres são seres igualmente voltados para Deus. O desejo de Deus e a capacidade de relação com ele são constitutivos do ser humano. Para a fé cristã, Deus criou o ser humano capaz de receber sua autocomunicação, ou seja, capaz de perceber sua presença amorosa e retribuir esse amor. Mas além dessa natureza voltada para Deus, sabemos que a cultura muito influencia nos nossos hábitos, gostos e opções. Certamente, a nossa cultura favoreceu a presença da mulher na Igreja. Desde pequenos, presenciamos nossas mães rezando nas Igrejas ou em casa com um terço na mão, enquanto nossos pais estavam no trabalho, nos campos de futebol ou nos bares. Aprendemos já nos seios das famílias que religião combina com mulher, para quem as comunidades eclesiais reservam as práticas piedosas, ou com criança, para quem a Igreja reserva a catequese.


Outro fator relevante que deve ser levado em conta na hora de entender a maciça presença feminina nas Igrejas é o fato de as religiões incentivarem o amor, a doação, a ternura, a abnegação, o dom de si. O cristianismo, por exemplo, poderia ser dito como a religião do amor, do perdão, da entrega da vida pelo outro. E admitamos, as mulheres aprenderam e desenvolveram essas virtudes desde a mais tenra idade. Elas desenvolveram uma dedicação generosa e desinteressada por seus pais, seus filhos; fizeram desde criança o curso da vida para cuidar do outro, protegê-lo, ampará-lo; exercitaram a fineza, a delicadeza, a gentileza, o serviço gratuito, a obediência; tornaram-se doutoras em serviço e amor. Então o ambiente religioso lhes é familiar. As comunidades eclesiais mais parecem uma extensão de suas casas, onde prolongam na pastoral o cuidado com os outros; onde no serviço religioso continuam obedecendo,  partilhando a vida, doando-se com resignação.


Além da influência cultural que já favorece a presença da mulher no âmbito religioso e da escola de amor e doação na qual ela sempre esteve sempre matriculada, há outro fator que deve ser lembrado quando constatamos a presença numerosa de mulheres nas Igrejas. Sabemos que a religião lida com o sagrado, com o transcendente, com o mistério, que é invisível aos olhos e exige percepção refinada, delicadeza, sensibilidade. Certamente que essas características – que algumas vezes infelizmente escapam aos homens – quase sempre estão muito presentes nas mulheres. Isso não quer dizer que a religião seja incompatível com a razoabilidade, com a clareza, com a razão. Mas certamente não é a linguagem numérica, positiva, pontual que possibilita o diálogo com Deus. A linguagem própria da religião e da fé é a simbólica que, por mais que perca em exatidão, ganha em sentido e significado. Para falar com Deus, como escreveu Gilberto Gil, “tenho que calar a voz, tenho que ficar a sós... Tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios. Tenho que esquecer a data, tenho que perder a conta, tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus”, tenho que me predispor à sua irrupção e autocomunicação. Pouco adianta a força da lógica, pois no mistério não se entra por esforço intelectual e vontade própria, mas por pura graça. O encontro com Deus não se dá na soma das evidencias, nem na lógica da razão instrumental, mas na loucura da gratuidade divina, da doação que Deus faz de si mesmo.


Além disso, tanto mulheres quanto homens, normalmente, buscam na religião o sentido para a vida, uma forma sábia de viver, buscam desenvolver uma interioridade que não seja fútil, uma vida plena de significados ou ainda uma força pra viver. E as mulheres, cuja sensibilidade costuma ser mais refinada que a dos homens, provavelmente encontra esse significado com mais facilidade.


Generificação do ambiente católico


Notamos, porém, que apesar da constatação de que as Igrejas e instituições religiosas em geral estão povoadas de mulheres, quase sempre, o ambiente religioso se encontra governado pelos homens, como é o caso da Igreja Católica. As mulheres enchem as comunidades eclesiais, mas são os homens quem as governam. Há uma predominância masculina nos cargos e funções de maior destaque. Por que isso acontece? Há uma história por trás disso?


Para entender bem o ambiente católico, devemos recuar no tempo, buscando as origens do cristianismo. A religião cristã é herdeira do judaísmo, uma religião do homem, do varão. O judaísmo não foi pensado para a mulher, mas para o homem, tanto que a marca visível da pertença ao Deus único é a circuncisão, uma espécie de corte feito na película que envolve o órgão sexual masculino externo, realizada no começo da vida da criança, quando ela era recém-nascida. Esse sinal indicava que aquele homem pertencia ao povo do pai Abraão, que abandonou todos os ídolos para adorar o Deus único que se autocomunicou a ele. A religião judaica está impregnada de marcas de uma cultura patriarcal[1]. Mas nem por isso, ela se esqueceu da mulher e de seu papel na família, na sociedade etc. Muitas vezes até, para corrigir e instruir os judeus, a figura da mulher foi simbólica. Nós percebemos isso nos livros das Escrituras Judaicas que têm mulheres como protagonistas: ressaltamos a figura de Rute, Ester, Débora, Ana e outras.


A Igreja Católica nasceu no seio do judaísmo. As Escrituras Judaicas, que nós chamamos de Antigo Testamento, fazem parte do cânon católico. Nós aprendemos a rezar, a celebrar, a dar culto com os judeus. Mesmo depois da separação de cristianismo e judaísmo – por volta do ano 80 a 90 dC – o cristianismo conservou traços do judaísmo. Os primeiros seguidores de Jesus eram judeus e, certamente, a maioria de seus discípulos era composta de homens[2], já que a religião era pensada para eles. A Igreja Católica ainda traz marcas dessa cultura patriarcal. Ela entendeu que, se nos evangelhos sinóticos, aparecem apenas doze homens como os escolhidos para serem apóstolos de Jesus[3], ela deveria conservar essa tradição, pois entende que seus ministros ordenados são continuadores dos apóstolos. O que nós questionamos, é claro. Não só nós mulheres, mas um número significativo de teólogos. Essa leitura do relato da escolha dos doze apóstolos nos parece descontextualizada, sem fundamentação, porque se nós lemos o texto ao pé da letra, descolado de seu tempo, de sua cultura, então nós deveríamos também não ordenar nenhum homem que não fosse judeu, ou que não tenha passado pela circuncisão, porque certamente os doze apóstolos, além de homens, eram judeus e circuncidados.


Vai e volta a gente escuta um clamor contra essa generificação da religião católica. A liderança da Igreja está nas mãos dos homens, as decisões da Igreja estão nas mãos dos homens, o governo eclesial está nas mãos dos homens. A mulher participa bem pouco dessas instâncias decisivas, até porque está privada do sacramento da ordem que confere ao batizado esse serviço. Diversos teólogos e teólogas entendem – e eu me incluo nesta lista – que esse sacramento poderia e deveria ser conferido também às mulheres, que não há impedimento bíblico ou teológico para tal negativa da Igreja. Mas essa decisão depende do governo da Igreja. Nós questionamos, reivindicamos que a hierarquia nos escute, que se abra para o debate, mas a decisão está nas mãos dos homens que a governam, que certamente ainda seguram tal ministério em suas mãos[4].


Apesar de não concordar com a decisão de conferir o sacramento da ordem somente aos homens, confesso que eu não sou uma militante na causa da ordenação das mulheres. Se a Igreja colocasse essa questão em pauta hoje, eu certamente defenderia o direito de as mulheres serem ordenadas, mas não incentivaria as mulheres a se deixarem ordenar. A estrutura da Igreja no momento não favorece uma boa atuação da mulher nesse campo. O ministro ordenado assumiu pouco a pouco uma característica muito autônoma (há pouca comunhão entre os presbíteros); sua atuação se dá principalmente no campo dos sacramentos; a organização da Igreja lhe tira todo o tempo da pastoral, todo o tempo para se dedicar ao povo e à teologia. Eu não desejaria que as mulheres se ordenassem para repetir o sistema. Alguns defendem que, ao serem ordenadas, elas poderiam mudar tudo isso. Mas eu temo que elas simplesmente deem continuidade ao que vão encontrar, pois a estrutura é pesada demais. Incorremos no risco de apenas fazer uma troca: em vez de ter homens presidindo a celebração da liturgia, administrando as paróquias e liderando as comunidades, nós passamos a ter mulheres fazendo isso, mas da mesma forma. Não entendo que trocar homens por mulheres mudaria o modo de ser Igreja. Não é uma questão de gênero, mas de percepção, de sabedoria, de diálogo, de acolhida do novo, de abertura para os tempos novos que se instalaram; é uma questão de teologia, de compreensão eclesiológica.


Além disso, causa-me certo temor pensar que estaríamos clericalizando a mulher e, consequentemente, fortalecendo o processo de sacramentalização, já tão gritante na Igreja Católica. Se ordenarmos mulheres sem antes mexer no modo de ser Igreja, não estou certa de que elas terão possibilidades senão de presidir celebrações, atender confissões e ministrar sacramentos em geral. Daremos continuidade a uma Igreja pouco ministerial, pouco voltada para a evangelização e que pouco valoriza o leigo e seu ministério. O problema da Igreja não reside no pequeno número de pessoas ordenadas para o serviço do Senhor, mas no modo como esse serviço vem sendo compreendido, no alcance que ele tem atingido. Parece-me que o problema passa por outra vertente. Nossa reflexão quer girar não em torno do interdito que proíbe a mulher de receber o sacramento da ordem, mas acerca do lugar e do papel desse sacramento na Igreja; importa-nos refletir a vocação batismal do leigo, seu valor, seu reconhecimento como sacerdote etc.


Eu gostaria ainda de afirmar que, apesar de a Igreja Católica ser marcada pelo governo masculino, nós notamos muitos avanços nesse sentido. Há alguns anos atrás, jamais imaginaríamos as mulheres fazendo teologia, escrevendo teologia, ensinando teologia nos institutos que formam os futuros presbíteros (ou padres), debatendo religião num programa de TV, postando textos teológicos em blogs, sites. Pouco a pouco as mulheres vão saindo das sacristias, dos pequenos serviços a elas entregue[5], da obediência servil ao ministro ordenado[6], e vão ocupando novos espaços, vão assumindo novas posturas. Os homens católicos começam a perder o monopólio da produção do sagrado, tanto no campo do pensar teológico quanto da pastoral. Agora nós mulheres vamos conquistando o direito da palavra[7], dos pequenos governos, de publicar livros e artigos de teologia, de participar de eventos. Fica, porém, registrado que estes avanços ainda estão muito aquém do desejado pela maioria das mulheres.


 A mulher e as Escrituras Sagradas


Quando falamos de mulheres na religião, muitos logo recorrem a uma leitura equivocada das Sagradas Escrituras para justificar a superioridade do homem em relação à mulher. Eva, a primeira mulher, teria pecado e levado Adão a pecar, conforme relata o Livro do Gênesis, no Antigo Testamento. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo também depreciaria a figura feminina dizendo que o homem é a cabeça da mulher e que esta deve estar sujeita ao homem, pois ela é responsável pela entrada do pecado no mundo. Mas seria isso verdade? Como a teologia católica interpreta esses textos?


É verdade que o cristianismo manteve a mulher sob suspeita durante muito tempo: uma herança de uma exegese pouco oportuna, mas muitas vezes difundida amplamente no meio popular. Tomemos primeiramente o texto do Gênesis. Eva não é a vilã da história, mas quase uma vítima. Toda a culpa do pecado caiu sobre a mulher porque o texto do Gênesis foi lido ao pé da letra. Quando o autor bíblico escreveu o relato da criação e, logo em seguida, o relato da queda (cf. Gn 3), ele não estava falando de uma mulher concreta, real, mas de uma personagem. Adão e Eva são figuras, não são pessoas concretas. Aquele texto, como a maioria da bíblia, não é um relato biográfico, uma história factual, mas um relato teológico, uma história cujo fim é transmitir a experiência de Deus que o povo viveu e queria conservar para transmitir às próximas gerações. O povo de Israel – que é o povo protagonista dos relatos da Escritura - havia experimentado a força da astúcia e da persuasão da mulher. No tempo de Salomão, esse rei casou-se com muitas mulheres para firmar acordos políticos. Essas mulheres eram gentias, ou seja, não eram israelitas e por isso não foram educadas na fé monoteísta do povo de Abraão. Havia uma orientação para que os israelitas não desposassem tais mulheres. Salomão, para expandir as fronteiras de seu reino, fez diversos casamentos com mulheres estrangeiras. Em consequência, ele se deixou enredar pelos deuses que elas trouxeram consigo para seu reino e – na cabeça do autor sagrado – essa foi a sua perdição. Por isso, no Gênesis, foi a mulher quem comeu o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal – ou seja foi ela quem primeiro desobedeceu a Deus e quis não precisar dele; não seguiu a Deus mas a seus deuses. O autor bíblico não está falando de uma mulher real (Eva) e de um homem concreto (Adão)[8], mas de uma experiência de vida que lhes mostrou que a astúcia das mulheres cananeias levou Salomão, um israelita, a abandonar o culto ao Deus único e desprezar a ética que isso implica, para cultuar outros deuses e viver de forma pouco aprovada por aquela gente. Com isso, o autor sagrado adverte seus leitores a tomar cuidado com as mulheres de outras nações e povos, que não sendo monoteístas como eles, vão influenciar seus maridos a se afastarem do Senhor.


Quanto ao apóstolo Paulo, ele fez uma leitura do livro do Gênesis como lhe foi possível no seu tempo, na sua cultura, no seu universo judaico. Mas Paulo não deprecia a figura da mulher, apesar de dizer que ela está submissa ao homem. Era assim que se pensava naquele tempo, naquela cultura. Vejamos um exemplo: tomemos o decálogo (cf. Dt 5,1-21), que depois resultou nos dez mandamentos da lei de Deus que os católicos conhecem. Originalmente, no décimo mandamento, cuja proibição é cobiçar qualquer coisa que pertença a outro, o judeu recebe a ordem de não cobiçar a mulher do próximo, assim como sua casa, seu campo, seu escravo, seu boi, seu jumento. A mulher era entendida como propriedade do homem, assim como outro bem qualquer do qual, inclusive, o varão podia dispor. Paulo ainda está mergulhado nessa cultura. A Igreja Católica percebeu que isso não procedia. Então, juntou os dois primeiros mandamentos que tratavam do amor a Deus e do culto exclusivo a ele, e dividiu o outro em dois: não cobiçar a mulher do próximo e não cobiçar as coisas alheias. Quanto a Paulo, ele entendeu rápido que, diante de Deus, “não há nem judeu nem gentio, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher: todos são um só em Cristo” (Gl 3,28). Paulo muitas vezes escreve algumas recomendações que nos parecem machistas, mas que são mero cuidado com as mulheres. Cuidados, é claro, oportunos para aquele tempo, mas totalmente impróprios para hoje. Uma leitura equivocada do texto vitimou as mulheres – e a pobre da Eva! Mas isso já está superado na religião católica, pelo menos na reflexão teológica. Na prática, porém, a superação é bem mais difícil. O equívoco ainda perdura porque pouca gente tem acesso a uma reflexão teológica consistente, infelizmente. Mas que fique bem claro: a Igreja Católica vê a mulher como vê o homem: como alguém de dignidade inalienável, uma pessoa livre e autônoma, capaz de pensar e amar, a quem Deus – no seu infinito amor – derramou toda sua misericórdia e de quem ele espera uma relação amorosa como resposta. A dignidade da mulher não está na sua capacidade de procriação, nem no seu papel de esposa, submissa ao marido. Está na sua filiação divina, assim como acontece também com o homem.


Perfil da mulher católica


Como já dissemos, nós percebemos hoje que, na Igreja Católica, a grande maioria dos fiéis é composta pelo gênero feminino. Tenta-se então traçar um perfil da mulher católica, desta mulher frequentadora da Igreja, que assume os trabalhos pastorais, discutindo seu papel na Igreja, inclusive seus direitos e deveres.


É bem verdade que a maioria dos membros atuantes da Igreja Católica é composta de mulheres. A grande obra de evangelização da Igreja se sustenta no trabalho corajoso e silencioso de muitas mulheres dedicadas e cheias de fé: elas são catequistas, ministras da Eucaristia, cantoras, membros de conselhos paroquiais e pastorais, secretárias das paróquias e funcionárias das cúrias, coordenadoras de CEBs, de movimentos etc. Mas seria difícil falar de um perfil da mulher católica. São tantas e tão diferentes! Cada uma com sua história, com sua sede de Deus, com sua fé. Todas provavelmente cheias de boa vontade, de desejo de servir, de fazer o Reino de Deus crescer, de tornar o nome de Jesus conhecido, de fazer o evangelho chegar até os confins do mundo.


São mulheres de classes sociais distintas, de realidade cultural e de tradição de fé diferentes. A grande maioria é certamente da classe média baixa. Veja como esse quadro se firmou. As mulheres de classe alta nem sempre encontram um discurso voltado para elas na Igreja Católica. Elas se sentem abandonadas. Já foram pilares da Igreja, mas perderam seu espaço quando, na América Latina, diante de tanta e tão absurda pobreza, a Igreja fez opção pelos pobres. Elas então, apesar da origem católica, passaram a procurar Deus em outras religiões, nas filosofias orientais, no espiritismo, até mesmo em outras religiões cristãs que realçaram menos esse lado libertador da fé. As mulheres de classe média alta, normalmente muito politizadas, liberais, feministas, muito racionais, bastante intelectuais, desacreditaram da proposta da Igreja. Elas acham um absurdo a Igreja não se abrir mais para a ação feminina; elas se cansaram de ser “empregadas de padre”, de ser mão de obra barata para o serviço pastoral, de dar o maior duro e não poder decidir grandes coisas; cansaram-se do monopólio masculino na religião católica. Querem um catolicismo com menos testosterona e mais progesterona. Não conseguindo fazer uma revolução feminista na Igreja, parece que preferiram deserdar a fé católica, ou pelo menos a religião católica, pois muitas ainda conservam a fé, apesar de não frequentarem as igrejas. As mulheres de classe baixa foram privilegiadas durante um tempo. Na modernidade, quando se realçou o projeto libertador da religião na opção pelos pobres – dando ênfase às necessidades sociais e políticas -, elas se mostraram ótimas líderes comunitárias, rezadeiras, responsáveis pelas pastorais, formadoras de opinião etc. Mas os tempos mudaram e a pós-modernidade trouxe outras necessidades. Então, nessa linha da opção pelos pobres, a Igreja não percebeu que os próprios pobres tinham outras necessidades além de resolver o problema da moradia, do esgoto, da educação, da fome, da terra etc. As mulheres pobres não queriam só casa pra morar e escola para seus filhos. Queriam ser amadas, valorizadas, escutadas. Queriam criar relações afetivas, desenvolver sua sexualidade, realizar-se como mulher e mãe. Queriam também alegria, consolo, esperança, uma palavra amiga, uma luz no fundo do túnel de suas vidas sofridas. Então, muitas evadiram para outras Igrejas ou grupos que respondiam a esses seus anseios, ainda que de forma ilusória. Mas elas se sentiram melhor lá, mesmo que muitas vezes sejam enganadas com falsas promessas de cura, de libertação, de prosperidade, de solução para seus conflitos pessoais e familiares. Bom, então sobrou uma massa de mulheres da classe média baixa que parecem mais tolerantes a essas novas investidas do mundo pós-moderno. A religião cristã católica ainda lhes dá algo que elas buscam; a fé católica representa para elas uma parte de sua identidade, faz parte do jeito de organizar sua vida e direcionar suas escolhas.


Quanto ao papel da mulher católica, ele poderia ser dito como o papel do homem católico. Espera-se da mulher católica, o que se espera do homem católico: que sejam discípulas de Jesus, missionárias que levam sua palavra ao mundo, nos ambientes mais diversos que frequentam. Por isso devem assumir desde os pequenos trabalhos paroquiais e comunitários como também os grandes desafios da sociedade. Devem ser luz no mundo. E o mesmo seja dito dos direitos. Tirando o sacramento da ordem que é negado às mulheres, pelo menos teoricamente as mulheres têm todos os direitos que têm os homens católicos. O sacramento do batismo, que a todos confere a dignidade de cristãos[9], iguala homens e mulheres no exercício das funções e nos direitos. Na prática nem sempre é assim, mas pelo menos essa é a teologia.


A masculinização da religião


 O Deus cristão é chamado de Pai, e o Filho de Deus se fez homem, ou seja, se encarnou numa pessoa do gênero masculino. Isso leva uma corrente teológica a pensar que esses dados contribuem para a masculinização da religião cristã, para que ela seja uma religião dos homens. Alguns até aderiram ao costume de falar de Deus como pai e mãe; de iniciar a celebração ou dar a bênção final em nome do Deus pai e mãe, na tentativa de escapulir de qualquer premissa que pudesse contribuir com conclusões machistas. É bem verdade que nós chamamos a Deus de Pai e que Jesus se fez homem – do gênero masculino – e isso pode contribuir para uma compreensão equivocada de que Deus tem características masculinas e também servir de pretexto para delinearmos a religião cristã com traços masculinos; isso pode servir de desculpa para a predominância masculina no meio católico, por exemplo. Mas qualquer cristão de bom senso sabe que Deus é pai por analogia. Não podemos falar de Deus senão por comparação. Mas o que quer dizer que Deus é pai? Que ele dá a vida e a sustenta; que ele se coloca em relação ao Filho e aos filhos que ele ama, que ele acompanha e é presença. O mesmo seja dito de Jesus, o Filho de Deus. Ele se fez homem, se fez judeu, numa cultura do varão, do homem. Seria inconcebível naquele tempo e cultura que o Verbo de Deus se fizesse mulher; um Deus encarnado numa mulher era uma possibilidade praticamente nula para os judeus. Deus age no tempo e na história e não fora deles. Então, Jesus é um homem judeu. Mas não quer dizer que Deus tenha o sexo masculino


 Realce seja dado, porém, na insistência bíblica no amor maternal de Deus. A ternura de Deus marca presença nas Escrituras. Em Is 49,14-15, Deus age como uma mãe que cuida e amamenta seu filhinho. Ele recolhe seus filhos como uma galinha ajunta seus pintinhos debaixo das asas. O evangelista Mateus atribui a Jesus palavras nesse sentido: ele deseja ajuntar seu povo como uma galinha ajunta seus pintinhos, ou seja, com cuidado de fêmea (cf. Mt 23,37).


O papel de Maria e das santas na Igreja


Apesar de Deus ser pai e Jesus ser homem, nota-se na Igreja Católica um lugar de destaque dado a Maria, a mãe de Jesus – também chamada de Nossa Senhora – e a muitas outras mulheres que a Igreja chama de santas. Qual é o papel da mãe de Jesus e das outras santas na fé católica? Como explicar essa popularidade de Maria e o número sem fim de seus devotos e admiradores?


A fé cristã carrega marcas devocionais profundas, principalmente em relação a Maria, mãe de Jesus, a quem chamamos de Nossa Senhora e a quem atribuímos diversos títulos. Essa é uma história antiga, com raízes nos primeiros séculos[10]. Maria sempre foi entendida como uma pessoa toda de Deus, por isso o título de virgem e de senhora. Essa devoção, já presente nos primeiros séculos, popularizou-se e cresceu muito na Idade Média, quando a pregação popular difundiu a teologia do medo. Deus foi desenhado com traços exageradamente masculinos, para além da analogia do pai ou do filho: um Deus bravo, cruel, vingativo, pouco sensível à causa dos filhos; um Deus justiceiro, irado, nervoso, intolerante ao mal por causa de sua divindade. Mesmo Jesus, o Filho, não parecia muito tolerante: pegava o chicote, expulsava vendilhões do templo, xingava os fariseus etc. Ora, nessa situação, nada melhor que alguém para mediar a relação[11]. Então, em plena teologia do medo, Maria foi entendida como mediadora, intercessora, advogada do povo, aquela que salva sua gente dos apuros aqui e na vida eterna[12].


 Originalmente, porém, a fé cristã não atribuiu a Maria o papel de medianeira e sim de modelo de entrega e dedicação a Deus. Seu sim incondicional presente no relato da anunciação do anjo (cf. Lc 1,26-38) mostra que ela é toda de Deus, que Deus pode contar com ela, que ela está disposta ao que for preciso para fazer o amor de Deus chegar ao coração de todos.  Também o evangelista João faz questão de dizer que a mãe de Jesus está ao pé da cruz (cf. Jo 19,25-27), ou seja, está com Jesus na hora da dor. Para João, ao pé da cruz estão a mãe de Jesus e o discípulo amado. Só quem se dispõe a dizer o sim da mãe de Jesus, só quem se sente um discípulo incondicionalmente amado por Deus, pode ser fiel na hora das crises, pode suportar com fidelidade a cruz de cada dia.


Quanto às santas, a vida da Igreja está marcada pela presença de mulheres fortes que sempre se dedicaram ao Reino de Deus e foram verdadeiras discípulas do Nazareno. Nos relatos dos evangelhos, percebemos a presença de Maria Madalena, de Salomé, de Joana, e de tantas outras que seguem o mestre Jesus (cf. Lc 8,1-3). Depois, na história da Igreja, temos grandes nomes como Perpétua, Felicidade, Inês, Helena, Mônica, Rita de Cássia, Tereza de Ávila, Terezinha do Menino Jesus, Tereza de Calcutá, Dulce da Bahia e outras tantas. São mulheres fortes, corajosas, para além de seu tempo. São nomes que a Igreja Católica quis conservar na memória popular para serem modelo de vida para mulheres e também para homens de todos os tempos. Por isso foram canonizadas (ou beatificadas), ou seja, foram admitidas publicamente como seguidoras fiéis de Jesus. Este é, pois, o papel de Maria e das santas: ser modelo de fé e de fidelidade a Deus, demonstrada na misericórdia para com os irmãos.


A sexualidade na Igreja


Quase sempre, as santas católicas são chamadas virgens, ou seja, são mulheres que não contraíram matrimônio, nem tiveram filhos. Muitos se perguntam: “Por que há tantas santas que são mulheres que fizeram sua consagração a Deus por meio do voto de castidade? Isso é acaso ou tem algo a ver com o modo como a Igreja vê o sexo, o prazer, a maternidade? Uma mulher comum, casada, com vida sexual ativa não poderia ser santa?”.


Muitas santas veneradas na Igreja são de fato pessoas com voto de castidade, pobreza e obediência a seus superiores. São mulheres que viveram em conventos ou clausuras, ou seja, eram religiosas, monjas ou freiras. Mas para ser santa não é condição fazer os votos religiosos. Tomemos o exemplo de Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho. Ela nunca foi freira e foi canonizada. Mas é preciso admitir que, durante muito tempo, a vida religiosa (ou seja, com os votos) foi entendida como superior à vida de uma mãe ou de um pai de família. De novo Paulo parece ter contribuído para esse pensar com o célebre texto da Primeira Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 7,1-35). Em um contexto em que se esperava a volta imediata de Jesus, Paulo aconselha homens e mulheres a não se casarem e se dedicarem exclusivamente às coisas da fé. Esta seria uma solução fácil já que a parusia era iminente. Mas o apóstolo dos gentios não deprecia a vida conjugal, nem mesmo a vida sexual. Essa foi uma hermenêutica tardia e bem equivocada, que ganhou espaço em alguns ambientes da fé cristã, mas especialmente em ambientes dissidentes[13]. Mas a Igreja oficialmente – na sua teologia – nunca entendeu que a relação sexual entre duas pessoas que se amam e que constituem família seja algo pecaminoso; ao contrário, a relação entre os esposos serviu de metáfora para a relação amorosa entre Deus e seu povo. Certamente que uma mulher casada pode e deve ser santa, pois todos os cristãos – homens e mulheres – são chamados à santidade. O que não significa que eles devam ser canonizados. Isso é um detalhe totalmente dispensável. Ser santo é uma vocação dada no batismo, ou melhor, todo batizado deve ser discípulo de Jesus e trilhar seus caminhos.


Retomando, pois, o tema “as mulheres na Igreja”, percebemos que muito chão já foi percorrido, muita conquista alcançada, mas não nos iludimos de que tudo esteja já maravilhoso. Tem muita coisa a ser feita nas várias áreas da Igreja, desde a pastoral até a do governo das comunidades. Sou do time dos que se alegram com as conquistas, mas não me dou por satisfeita com elas. Tomemos o campo teológico, como exemplo. As mulheres foram excluídas do processo teológico por longo tempo[14], quando a teologia era exclusividade de ministros ordenados. Foi preciso forçar as fechaduras para que entrassem nos átrios sagrados da teologia católica os leigos e, especialmente, as mulheres[15]. Como se a mulher fosse menos capaz de teologia por lhe faltar testosterona.  Mas é bom lembrar que o teor de estrogênio compensa isso facilmente, com vantagens múltiplas já comprovadas pela ciência. Mas engana-se aquele que pensa que proponho uma Igreja mais estrogênica e com menos testosterona. Não é isso! Até porque certamente a saída para uma maior participação da mulher na Igreja não se encontra na oposição dos gêneros, mas na acolhida da diferença e na complementaridade. Proponho apenas uma Igreja com feição mais amplamente humana e com perfil menos androcêntrico, uma comunidade eclesial mais fraterna onde a relação entre homem e mulher seja de colaboração e partilha, vencendo a generificação – certamente masculina – que hoje se observa no meio católico.











[1] Discordamos da postura de alguns estudiosos da Escritura que a acusam de machista. Uma cultura patriarcal e uma cultura machista não são coisas idênticas. O machismo pode ser dito quando a mulher é desvalorizada em relação ao homem, sendo que a cultura favorece a igualdade. É o que acontece hoje. As empresas, algumas muito machistas, valorizam menos o trabalho da mulher que o do homem, concedendo-lhe um salário inferior apesar de a mulher fazer o mesmo trabalho do homem, de assumir a mesma responsabilidade e missão. Outro exemplo: a Igreja Católica subtrai à mulher o direito da coordenação das comunidades, da presidência da Eucaristia, das decisões, enquanto que, na sociedade, ela já assume funções antes inimagináveis: nas organizações militares, na política, no esporte etc. Aí sim parece machismo, o que não é o caso da Escritura Sagrada.




[2] Mas é só abrir o evangelho e lá veremos as mulheres discípulas de Jesus. Cf Mc 15,40-41; Lc 8,1-3.




[3] Mas lembre-se que a sociedade judaica não contava mulheres e crianças. Cf. Mc 14,21. A preocupação era com o varão.




[4] Ainda que não o façam por mal, penso eu, mas por zelo, por desejo de ser fiel a Deus, porque assim eles entendem que deve ser.  Mas já é tempo de repensar essa questão!




[5] Como lavar as alfaias do altar, honra que lhes era concedida, antes do Vaticano II, somente depois de o ministro ordenado fazer um primeira purificação das mesmas. Ou, mesmo depois do Vaticano II, o direito de proclamar a Palavra de Deus na liturgia ou de distribuir a Eucaristia tem sido muitas vezes entendido como prioritariamente para homens, sendo permitido às mulheres quando os homens não são suficientes para atender as demandas das comunidades. Vejam só de que ponto partimos, para entendermos o valor do ponto onde chegamos.




[6] Como mão-de-obra barata para o serviço pastoral, administrativo ou até doméstico etc. Nos seminários, nas residências episcopais, nas casas paroquiais, não era incomum encontrar freiras, congregações inteiras, que se dedicavam à limpeza, à cozinha, aos cuidados domésticos, enquanto os seminaristas estudavam teologia, e os padres e os bispos decidiam a vida do povo de Deus nas comunidades. Estas ocorrências não envergonham as mulheres que prestaram ou prestam tais serviços, ao contrário isso só mostra a grandeza e a disposição delas para servir. Mas tal fato devia envergonhar o clero que não reconhecia (e muitas vezes ainda não reconhece) o trabalho destas santas mulheres, despojadas, totalmente dedicadas à construção do reino. E sempre mantidas em situação de subserviência.




[7] Apesar desta conquista, ainda assustam-nos algumas posturas. Em dado encontro nacional, onde as mulheres eram maioria absoluta e o tema fazia pensar um novo jeito de ser Igreja, causou-me espanto a liturgia totalmente centralizada nos homens, sendo reservado à mulher o papel de levar as ofertas ao altar ou o de fazer a procissão dançando com a bíblia (ou o evangeliário) numa peneira. O encontro todo, apesar de tratar da catequese – área pastoral com predominância feminina – foi marcado pela presença masculina: ouvimos palestras de cardeais, bispos, padres, religiosos. Às mulheres foi dada a palavra raras vezes, mesmo assim elas ficaram com temas mais periféricos.




[8] Até os nomes são simbólicos: Eva significa vivente ou vida, e Adão quer dizer barro. Não é difícil perceber que o autor sagrado entende que o ser humano é mistério: ao mesmo forte (vida que vem de Deus) e fraqueza (própria da criatura).




[9] É só conferir a Lumen Gentium e o Código de Direito Canônico.




[10] Desde os primeiros séculos, temos testemunhos da devoção à Virgem por meio de pinturas marianas encontradas nas catacumbas (Priscila, do século II; San Pedro e San Marcelino século III ou IV).
Outro exemplo da devoção à Maria nos primórdios do Cristianismo (século II) é a oração "Sub Tuum Praesidium" (Sob Vossa Proteção) do século III, que pede a intercessão de Maria junto a Jesus Cristo: "Sub tuum praesidium confugimus, sancta Dei Genetrix; nostras deprecationes ne despicias in necessitatibus nostris, sed a periculis cunctis libera nos semper, Virgo gloriosa et benedicta. Amen". Traduzindo: "À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Amém”.




[11] Como muitas mães ainda, algumas vezes, mediam a relação dos pais com seus filhos, infelizmente. Muitos filhos ainda não se atrevem a falar algumas coisas com o pai, e a mãe torna-se canal de comunicação para fazer chegar ao pai as reivindicações filiais.




[12] Retrato lindíssimo dessa piedade popular que perdura até nossos dias aparece na obra de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida. Quando está em apuros no julgamento final diante de Jesus, o juiz, João Grilo pede o socorro da Virgem Compadecida. E ela vem advogar sua causa.




[13] É o caso do livro de alguns apócrifos que depreciam a vida matrimonial e louvam a vida celibatária. Não foi por acaso que estes textos não foram aceito pelas comunidades cristãs como inspirados. Os cristãos de outrora já percebiam que essa depreciação não se harmonizada com a fé apostólica.




[14] E não só as mulheres, mas os pobres, os não-celibatários, os leigos etc. A teologia era privilégio de varões, celibatários, católicos, abastados, com sua manutenção garantida pela Igreja.



[15] O mesmo seja dito das pessoas casadas, dos não-católicos, dos trabalhadores que pagam suas contas...