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89. Entre a vida e a morte

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30.03.2021 | 6 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
89. Entre a vida e a morte
Essa semana é a mais importante para nós, cristãs e cristãos do mundo inteiro. De maneira pedagógica, somos conduzidos, ano a ano, à celebração do mistério da morte e ressurreição, o mistério pascal de Jesus Cristo. Somo conduzidos, por meio de ritos e símbolos, a vivenciarmos e refletirmos esse que é o sentido da nossa vida. Desde sua entrada messiânica em Jerusalém até a doação do espírito na cruz, acompanhamos Jesus em sua via de dor e sofrimento, de encontro e reconhecimento. Por essas razões, esse é o período mais importante do ano, porque, embora já tenhamos sido mergulhados na morte com Cristo e glorificados por sua ressurreição, a inteligência da fé, que é precisamente uma inteligência do coração que deseja, acolhe e discerne, insiste e convida-nos a não deixarmos de iluminar nossas experiências cotidianas pela claridade que reverbera da cruz-ressurreição de Jesus Cristo.

É o segundo ano consecutivo em que nós os cristãos e cristãs nos vemos impedidos de acorrer às capelas e igrejas para vivenciar com a comunidade maior esse mistério que também é o de nossas vidas. Ainda hoje somos convidados a aprender o que significa constituir uma família que seja uma Igreja doméstica. Do ponto de vista de nossa permanente Iniciação à vida cristã, devemos nos questionar a respeito da necessidade de transmitir nossos ritos e celebrações por meio de redes sociais, rádios e televisões. Aos primeiros responsáveis por essa tarefa, cabe o dever evangélico de se perguntar por que o povo em casa e na família não reza e não canta a sua fé. Por que não se sentem capazes de o fazer? Muitos questionamentos devem ser levantados numa perspectiva eclesiológica que sinaliza um bloqueio da consciência individual do ser Igreja e o mal do clericalismo absorvido em práticas religiosas que dependem da figura do padre, do templo, do ritualismo para serem consideradas como experiências válidas.

No fundo, na raiz do sintoma de um esvaziamento religioso pelo impedimento do tripé: padre, templo e ritualismo está a precária iniciação na escola da lex oradi lex credendi lex vivendi lex agendi, grosso modo, a oração é a norma da fé e a fé é a norma da vida e da ação. Desse modo, podemos considerar que o que falta aos cristãos e às cristãs hoje é o mergulho na oração. Mas a oração deve ser compreendida como profícuo diálogo com Deus, no qual nos reconhecemos ouvidos e amados por seu amor que é mais forte que a maldade e a morte. Nesse sentido, por não sabermos entrar nessa dinâmica de conversa com Deus, cultivamos a nostalgia das vivências e piedades ao longo da semana santa. Além disso, como a oração é medida da fé, também sentimos a dificuldade de arriscar nossa fé na ressurreição de Jesus, de crer para além de toda esperança de que a cruz é a entrega da vida em proveito da vida e que, precisamente, é o encontro da morte com a vida em proveito da vida. Por essa razão, nossa fé anda titubeando nos caminhos do mundo sem encontrar sentido de viver essa semana maior em meio a tantas mortes, não mais de desconhecidos, mas cada vez mais e mais cotidianamente a de rostos conhecidos e amados por nós e por nossos amigos e conhecidos.

Nessa esteira, como não sabemos dialogar com Deus, não somente a fé titubeia, mas também, pouco a pouco, vamos nos tornando pessoas religiosas medíocres, que ostentam o nome cristão, mas que já não olham para o mundo com o olhar pascal. Precisamente, o olhar pascal é o olhar do coração que não se vende ou se endurece. Por isso mesmo, esse olhar não é mero espectador da realidade, ele atua, denuncia e anuncia o que vai fazendo da realidade uma via de sangue e sufocamento, uma via na qual às margens estão caídos os mortos de fome e desempregados. Há tempo, uma Campanha da Fraternidade nos interpelava com a afirmação: \"entre nós estás, e não o conhecemos [...] e nós o desprezamos\". Afirmações como essas só são possíveis a partir de uma fraterna autocrítica, quando não cedemos aos negacionismos de nosso tempo, e quando aquele mesmo olhar do coração é capaz mirar no olhar do mundo e se compadecer das lágrimas que rolam de muitos rostos. Negando a realidade, seguiremos condenados por nossos silêncios que nos desviam dos caminhos da misericórdia a da solidariedade.

Nesse sentido, podemos considerar que a semana santa fora do templo e da capela é mais dolorosa, porque lá, muitas vezes, não enxergamos o mistério que se desnuda, porque nos prende o cuidado demasiado com as vestes, os tecidos e as alfaias. Distantes da comunidade maior, além do sentimento de solidão, ao qual não nos acostumamos, somos obrigados a ver nossa própria nudez e a nudez do mundo que parece perdido em si mesmo, sem uma liderança que nos ajude a atravessar o lamaçal na qual faraós, presidente e outras autoridades públicas afundaram nossa esperança, teimosa esperança. Ademais, Jesus Cristo aparece mais fortemente despido, vilipendiado, torturado e sufocado no rosto das inumeráveis vítimas de uma pandemia capitalista e egolátrica, que parece não ter fim. Por essas razões, sentimo-nos humanamente abandonados e com pouca fé para confiar a Deus nossas vidas e caminhos, à diferença de Jesus Cristo na cruz, que ora e entrega nas mãos do Pai a doação da sua existência.

Apegados às nossas vaidades e desejos, recusamos carregar a cruz, fugimos de medo de sermos os próximos crucificados e olhamos frios e distantes o irromper da barbárie. Falta-nos a coragem das mulheres que ficam até o fim junto daquele que ama até o fim. Falta-nos os cuidados das mulheres que levam os aromas para reverenciar o corpo morto. Falta-nos a ousadia da mulher que anuncia que a vida venceu. Possa essa semana nos colocar diante do outro e reconhecer nele o companheiro cuja mão devemos segurar para sermos erguidos, com Cristo, do inferno destes dias, sem deixar os que vivem e a memória dos que já se foram para trás, sem deixar de viver esses dias como Páscoa do povo na Páscoa de Cristo, entre mortes e ressurreições.