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88. Inversão escatológica

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26.03.2021 | 12 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Diversos
88. Inversão escatológica
"Encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias" (Lc 1,53)

Não é de hoje que os ricos vivem esbanjando e os pobres mendigam por migalhas. Glamour, opulência, desperdiço e ostentação estão tatuadas na pele limpa e alva dos poderosos enquanto humilhação, desprezo, abandono e descaso são o pão cotidiano dos pobres. Sem ter o que comer, os miseráveis imploram aos ricos uma migalha de sua mesa, mas sua ganância não permite partilha, e a aflição dos necessitados não diz nada aos corações endurecidos. É o que retrata Lucas, o evangelista dos pobres, no seu Evangelho. Tendo entendido que o Reino pregado e instalado por Jesus tem lugar para todos na mesa, Lucas não se cansa de chamar seus leitores à conversão do coração e do bolso, pois sabe que a primeira sem a segunda é pura hipocrisia religiosa.

No capítulo 16, versículos de 19 a 31, Lucas nos conta a parábola do rico avarento e do pobre Lázaro. Duas figuras opostas que representam o enorme fosso entre ricos e pobres e que hoje se perpetua nessa sociedade capitalista e perversa na qual vivemos. Lázaro, que quer dizer amparado ou amado por Deus, experimenta todo tipo de privação dos bens necessários para a vida enquanto assiste ao ricaço anônimo desperdiçar dinheiro com festas e roupas opulentas.

É curioso que o rico não seja nomeado enquanto o pobre recebe um nome tão significativo. Já no começo do relato, Lucas nos leva a pensar que haverá uma inversão escatológica, como anunciado no canto de Maria (Lc 1,51-53). O pobre, de quem Deus nunca tira seu amparo, daí o nome Lázaro, experimentará a alegria da saciedade, enquanto o rico, cujo nome nem merece ser pronunciado ou lembrado, cairá no esquecimento e passará privações.

É o que acontece logo em seguida quando o evangelista lembra ao leitor que ambos ? "rico e pobre ?" passarão pela experiência da morte, aquela visita indesejada que chega de mansinho igualando a todos e não aceita negociações. Do pobre, diz-se que morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Dois detalhes chamam a atenção: ser levado pelos anjos e estar no seio de Abraão. Normalmente, ao relatar a morte de alguém, dizia-se adormeceu ou foi levado para junto de seus antepassados. Mas acerca da morte do pobre, Lucas diz que foi levado pelos anjos. Os anjos na bíblia são uma figura literária para dizer dos mediadores entre o céu e a terra. Como entendia-se que Deus morava acima das nuvens e que seu mundo era separado (daí o nome santo) do mundo dos mortais, os anjos se tornaram personagens importantes para dizer da presença de Deus na história. Deus não poderia ser visto, pois ele é mistério e não pode ser decifrado, logo dizia-se que eram vistos anjos, ou seja, mediadores entre os dois mundos.

Explicado isso, dá para notar a importância da expressão "foi levado pelos anjos". O sofredor, que nem a fome podia matar com as migalhas do banquete do rico, experimenta a comunhão com o Deus que sacia sem cobrar nada (Is 55,1). "Arrebatado" ao seio de Abraão, o injustiçado goza de consolo pois sua vida fora apenas dor e privação. Estar no seio de Abraão significa o reconhecimento de uma vida justa. O patriarca, pai de uma imensidão de povos, acolhe o sofredor e atesta que sua vida fora injustiçada por aqueles que poderiam ter-lhe feito o bem, mas preferiram ignorar sua indigência.

Sobre a morte do rico, afirma-se que foi enterrado e, na mansão dos mortos em meio a tormentos, via ao longe o pai Abraão e Lázaro ao seu lado. Lucas insiste que a morte iguala a todos e que os bens desse mundo não garantem imunidade contra esse perigo que a todos ronda. O opulento, ao contrário do indigente Lázaro, não foi arrebatado para junto de Abraão, mas foi enterrado e desceu à mansão dos mortos, uma clara alusão a seu fim desprezível. Para completar a cena, o rico reconhece Lázaro ?" o mendigo que vivia à sua porta ?" ao lado de Abraão, a quem o anônimo avarento insiste em chamar de pai. Nada mais estranho à fé judaica, alimentada pela Teologia da Retribuição, que ter um pobre no seio de Abraão e um rico privado de sua companhia. A riqueza, vista como bênção de Deus, legitimava a exploração dos opressores sobre os oprimidos com argumentos teológicos, enquanto a pobreza, entendida como castigo de Deus, era vista como um destino trágico dos infiéis. Trata-se de uma das perversões da religião, que em vez de proteger os pequenos justifica a exploração dos grandes sobre os pequeninos. É só lembrar dos tais "amigos de Jó", que vendo Jó em situação de vulnerabilidade, sem bens e sem saúde e sem nada, imputaram-lhe a sina de castigado de Deus colocando sua justiça em xeque.

O rico clama por socorro, implorando ao pai Abraão que mande Lázaro molhar a ponta do dedo para saciar sua sede. Nem mesmo diante dos terrores que a morte lhe reservou, o rico é capaz de uma atitude digna. Continua achando que o pobre Lázaro é um de seus empregados, um Zé Ninguém a seu serviço, pronto para saciar seus caprichos. Nenhum traço de arrependimento ou humildade é descrito no relato lucano em referência ao rico. Mesmo no fundo do poço, ostenta sua arrogância e não reconhece que a inversão escatológica lhe imputou uma situação de privação, antes experimentada somente por Lázaro.

O pai Abraão não se deixa comover por súplica tão autoritária, ao contrário recorda ao rico o que acontecera na sua vida terrestre e deixa claro que a Teologia da Retribuição é folha de árvore no outono, sem nenhuma sustentação. Mas como é difícil cair a ficha do rico e reconhecer que há situações em que seu dinheiro não tem poder de comando! Como caixão não tem gaveta e, diante da realidade da morte, não valem as ações da bolsa de valores, o rico está sem poder de troca. Mostra-se indigente e frágil, digno de uma piedade que não foi capaz de ter com Lázaro.

O rico é insistente, não sabe perder, não está acostumado a ouvir "não". Sua fortuna comprava satisfação e privilégio, coisa que depois da morte não tem dinheiro que pague.  No seio de Abraão, vigora a lei da gratuidade e não a meritocracia justificada teologicamente por argumentos aberrantes. Então o rico insiste de novo. Numa atitude de aparente bondade, mostra alguma preocupação com os outros, como se pela primeira vez abandonasse sua posição narcísica para pensar além de si mesmo. Mas arrogância e egoísmo não se desfazem como fumaça ao vento e, na prece que pede socorro para os seus familiares, o rico revela mais uma vez sua consciência de opressor, preocupado somente com seu círculo familiar sem alargar seus horizontes para assumir que faz parte da grande família humana. Repete uma vez e ainda outra os erros cometidos durante sua vida, quando Lázaro é repetidamente colocado no lugar de subalternidade.

A resposta do pai Abraão é contundente: "Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!". Lázaro não é empregado do rico, não está a seu serviço, e os ricos já dispõem de legislação suficiente?" representada pela expressão Moisés e os Profetas, ou seja, a TaNak?" para saber que a vida na opulência não coaduna com a fé em Deus. Desde as primeiras prescrições da Torá é sabido que Deus deve ser amado de todo coração, com toda a alma e com o bolso.

Rico que é rico mesmo, acostumado a ser servido, não se conforma com qualquer mudança no seu status quo. Daí a insistência do opressor que, pela terceira vez, quer ver Lázaro resolvendo as encrencas na qual ele próprio se meteu. O pai Abraão não se deixa dobrar por argumentos impertinentes. Mantém sua postura afirmando que aquele que não ouve a Lei e os Profetas também não ouvirá um ressuscitado dos mortos, uma clara alusão à ressurreição de Jesus. E fim. Fica em aberto o relato com aquele gostinho de "E daí?", afinal é preciso pensar as relações humanas e as escolhas que fazemos.

Lucas trabalha o tema da avareza num combate veemente contra essa prática. Insiste na partilha e não se esmorece no esforço de mostrar que esse é o único caminho possível para o reino. São abundantes os textos em que o escritor deixa seu registro a esse respeito. Diferentemente do que se escuta na pregação popular, a parábola do rico avarento e do pobre Lázaro não trata da escatologia cristã, ou seja, do destino dos humanos depois da morte, como se o evangelista descrevesse o céu, o inferno etc. O texto é uma parábola para dizer das relações sociais pautadas pela injustiça e para questionar a famosa e insustentável Teologia da Retribuição. A miséria de Lázaro não é definida nem como efeito do pecado, nem como vagabundagem ou falta de esforço por parte do pobre. Ela é colocada em paralelo com a riqueza do opulento, pois ninguém é pobre sem que haja outros que são ricos demais. A riqueza é consequência da acumulação dos bens e da insensibilidade para as necessidades dos outros. Como dizia Vitor Hugo: "O paraíso dos ricos é o inferno dos pobres". Se alguns têm bem mais do que precisam é porque alguns têm bem menos do que lhes é direito. Num mundo marcado pela opressão, no qual a injustiça é estrutural, os ricos já não percebem mais o absurdo de seus privilégios em detrimento da desgraça alheia.

E a história do rico e de Lázaro se repete como um disco arranhado. Em tempos de crise sanitária, países com mais recursos financeiros compram um número de vacina que excede o total necessário para a imunização de toda sua gente, enquanto países empobrecidos nem sequer vacinaram os profissionais de saúde da linha de frente de combate à Covid-19. Mas haverá de chegar a hora em que a ficha vai cair. Enquanto houver um único foco do vírus pelo globo terrestre, estaremos todos ameaçado por novas variantes, cepas mais transmissíveis e mais infecciosas, pois o inimigo invisível sabe se reinventar e burlar nossas defesas.

No Brasil, epicentro da pandemia no atual momento da história, os ricos opulentos continuam a tratar os pobres como lixo. São inúmeros os casos de pessoas jovens que furaram fila, deixando os mais vulneráveis sem a proteção necessária. A lista é grande. Vai desde prefeitos e secretários de saúde e outros funcionários públicos, até suas esposas, filhos e pessoas próximas. Como se tornou conhecida a impunidade no país, os egoístas donos do mundo fazem-no sem medo de punição. Sabem que seus processos não vão dar em nada, a não ser numa indenização medíocre que fica completamente sem sentido diante da vantagem da imunização. Diversos Lázaros mendigam por uma dose da vacina. Cobertos de feridos, assistem à festa dos poderosos, enquanto eles têm junto de si os cães que lambem suas feridas. São velhos e doentes, índios e quilombolas, população de rua e pessoas com graves comorbidades, que estão longe de saber quando serão vacinadas. Ouvem a música dos ricos que comemoram a festa do "tô nem aí" ou a orgia do "foda-se a pandemia", que os irresponsáveis insistem em realizar. Ainda que médicos e outros profissionais de saúde implorem, ainda que as autoridades sanitárias não se cansem de fazer previsões, os banquetes que alimentam a covid 19 não param de acontecer. Alguns argumentam que estão cansados da quarentena como se não estivéssemos todos no limite de nossos esforços; outros nem explicação dão, pois sabem não haver justificativa para tanto egoísmo.

Enquanto isso, na "batcaverna brasileira", o Hitler tropical nega a ciência, desmente os estudiosos, recusa-se a tomar as medidas sanitárias cabíveis para contenção da pandemia. O pseudogestor do exército, elevado a ministro da saúde, nega o colapso e busca alternativas com medicamentos milagrosos. E mentem e se desmentem, para mentir e enganar de novo, numa ciranda de inverdades que fazem sangrar qualquer coração comprometido com a verdade. E tanto mais sobe o gráfico da pobreza e da pandemia, mais podemos cantar com Moraes Moreira, aquele que do qual o presidente tupiniquim nunca ouviu falar: "lá vem o Brasil, descendo a ladeira!".

A queda é livre. Os trabalhadores estão desempregados e sem auxílio emergencial. A inflação sobe reduzindo o poder de compra. A fome atinge patamares assustadores. Os doentes morrem nas filas dos hospitais, sem respiradores e sem um socorro digno. E não são somente os pobres que morrem na fila dos hospitais públicos. Também na rede privada o caos se instalou. Os ricos começam a sentir a dor do abandono, pois não tem dinheiro que compre uma vaga na UTI quando está tudo superlotado. Chegou a hora de o rico opulento reconhecer que ou nos salvamos todos ou pereceremos todos juntos. O Titanic afunda e, apesar de haver primeira classe com privilégios gritantes, o mar da pandemia invade todos os recantos do navio. Precisamos tomar vergonha na cara e assumir juntos a tarefa de recolher os cacos do Brasil, ou não sobrará ninguém para contar a história. Nessa reconstrução, os pobres tem de ter prioridade. Lucas nos ensina com a figura do pai Abraão que os ricos já tiveram privilégios demais. É hora de provocar uma verdadeira inversão escatológica. Que a reconstrução comece com o respeito ao direito dos pobres e o reconhecimento de sua dignidade, pois sem os pobres não há salvação possível para a sociedade.