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66. Quando governa um malvado, o povo geme

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18.08.2020 | 7 minutos de leitura
Tânia da Silva Mayer
Diversos
66. Quando governa um malvado, o povo geme

A negligência do poder executivo do nosso país, no tocante à saúde da população diante da grave crise sanitária que vivenciamos, é exercício concreto da injustiça (Marcos Corrêa/PR)



Quando um povo é malvado, ele elege seus próprios algozes.


E não é capaz de se mobilizar para mudar o que deve ser mudado



Uma anomalia teológica é a utilização da Sagrada Escritura como aporte para fundamentalismos que confrontam fatos e acontecimentos do cotidiano. A realização de leituras anacrônicas provoca um obscurantismo tanto com relação ao próprio texto bíblico quanto sobre a realidade que desejou refletir ou iluminar.


Por isso mesmo, voltar à Bíblia é sempre uma tarefa necessária e perigosa. Ela é necessária, porque as narrativas antigas possuem a força para reverberar luz sobre os sinais dos nossos tempos. Mas também é perigosa, porque tendemos a nos apressar em nossas considerações, sem a prudência da sabedoria que ensina a discernir o vivido. Por essa razão, haveremos de cuidar para que também nossa indignação diante do momento pelo qual passamos não imponha a Palavra de Deus contra nós.


A sabedoria israelita procurou observar como o ser humano vive, quais desafios se apresentam nos caminhos das pessoas, quais as possibilidades de superação de dificuldades, e, sobretudo, o que implica as liberdades individuais no tocante às escolhas e decisões que podem incidir sobre o viver com qualidade ou o viver com precariedade. Por isso, essa mesma sabedoria reuniu, ao longo dos tempos, uma série de constatações, aprendizados e avaliações, frutos da observação e da reflexão sobre os acontecimentos da vida.


O livro dos Provérbios é um dos livros mais populares da bíblia cristã. Há alguns anos, um desses ditos foi bastante incorporado em discursos e bandeiras políticas do país. Trata-se do versículo 2 do capítulo 29 do referido livro. Nesse constata-se: "Com os justos no poder, alegra-se o povo; mas quando governa um malvado, o povo geme".


O povo da Bíblia tem uma percepção de governo muito diferente da que temos hoje. Em razão da Aliança, o povo sabe que quem o governa e orienta é Deus. Por isso, os reis, que exercem poder sobre o povo ao longo dos tempos, são considerados como vigários divinos, isto é, aqueles que agem para fazer cumprir o projeto de Deus para o povo. Tratando-se do Deus de Israel, sua vontade para o povo é que ele tenha vida e possa viver bem. Para alcançar esse objetivo, os reis devem ser exemplares no exercício da justiça.


A justiça entendida como ajustamento ao plano que Deus tem para o seu povo, desde o movimento de tirá-lo da terra da escravidão até ao de conduzi-lo à terra da mais vida. Mas, dentre o povo, os reis devem atentar-se, sobretudo, para os necessitados, aqueles grupos mais oprimidos, tais como os pobres, os órfãos e viúvas e os estrangeiros. Nesse sentido, um rei é considerado justo quando garante a vida do seu povo.


Nessa perspectiva, o salmo 72 expressa a expectativa de um reinado no qual o rei exerça seu poder em favor do oprimido e em vista da libertação dos pobres, de modo a garantir sua segurança e sua paz! Obviamente, nem sempre o povo da Bíblia teve a sorte de ser governado por reis justos. Fato acarretou muitos sofrimentos. Não porque Deus o quisesse, mas porque esses homens, em suas liberdades, não se ajustaram ao projeto de Deus para o povo.


É a partir dessas experiências que Pr 29,2 constata que o povo está propenso a sofrer quando os malvados assumem o poder de governar a vida das gentes. Por isso, a referência bíblica que assumimos para ler nossos dias apresenta essa antítese entre os honrados e os malvados, os justos e os ímpios na condução do poder temporal, uma vez que o poder e o povo pertencem a Deus.


A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não foi elaborada na mesma perspectiva de poder compreendida pelo povo da Bíblia. Por essa razão, ela é categórica ao afirmar no parágrafo único do artigo 1ª: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Com essa definição, já apresentamos a diferença substancial que nos garantirá uma leitura sapiencial dos nossos dias, sem a pressa dos fundamentalismos bíblicos.


Nesse sentido, podemos afirmar aquilo que já conhecemos da nossa democracia, a saber, que o poder é compreendido desde uma perspectiva coletiva e exercido diretamente pelos cidadãos ou por meio dos eleitos pelo conjunto dos votos válidos de um processo eleitoral.


Aqui, refutamos qualquer tentativa de alguns grupos religiosos que insistem em narrativas que consideram os eleitos para os cargos públicos como representantes de Deus no comando dos estados, municípios, ou, inclusive, do poder Executivo do país. Aqueles que estão no exercício do poder no país só estão nesse posto porque o povo os elegeu para tal tarefa.


Mas a sabedoria bíblica atravessa os tempos e continua atual na sua substância: a capacidade de, ainda hoje, despertar nossas consciências para as antíteses entre um governo e outro, entre um mandatário e outro, entre uma situação de vida plena e outra de menos vida. Por isso, apesar do crescimento na aprovação da atuação do atual presidente da república, é importante denunciar que o povo brasileiro está gemendo, gritando de dor, sufocado em UTIs, sob a indiferença do próprio presidente.


Mas aqui não estamos falando da indiferença interior, que sua personalidade revela, mas daquela traduzida na total ausência de decisões políticas que realmente contemplem o povo brasileiro em suas necessidades urgentes, sobretudo aquelas que advém dos empobrecidos e das minorias mais sensíveis aos problemas sociais.


Ademais, a negligência do poder executivo do nosso país, no tocante à saúde da população diante da grave crise sanitária que vivenciamos, é exercício concreto da injustiça, em razão do não ajustamento à Constituição que jurou cumprir em nome do povo que viria a governar.


Esse alheamento às promessas feitas ao povo é, sem dúvidas, o que segue fazendo com que, ao lavar as mãos, o presidente as lave com o sangue inocente dos que estão morrendo por sua postura irresponsável relativa à pandemia e ao que prescreve a ciência e por sua total incapacidade e desejo político para gerenciar essa gravíssima crise sem precedentes.


Por sua parte, têm culpa maior os que elegeram uma cartilha que de partida não apresentou nenhum projeto de soberania ou de melhoramento da vida do povo brasileiro. Por isso também, milhões e milhões de irresponsáveis fazem do nosso país um país sanguinário. Bandeira vermelha de sangue. Milhares de vidas sufocadas, cujos gritos abafados todos os escutamos de suas sepulturas e de casas vazias.


Quando um governo é malvado, o povo geme; quando um povo é malvado, ele elege seus próprios algozes. E não é capaz de se mobilizar para mudar o que deve ser mudado. Não há como escapar dessa devolutiva que a vida dá lenta e dolorosamente. É sob prantos que vamos aprendendo o que os antigos já haviam ensinado, mas não aprendemos. Insensatos.