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62. Reflexão para o 14º domingo do Tempo Comum (Mc 6,1-6)

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07.07.2018 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
62. Reflexão para o 14º domingo do Tempo Comum (Mc 6,1-6)

Após uma interrupção de dois domingos seguidos, devido às duas solenidades (Natividade de São João Batista e Apóstolos São Pedro e São Paulo), a liturgia dominical do tempo comum retoma hoje o seu percurso normal com a leitura do Evangelho segundo Marcos. Para este décimo quarto domingo, o texto evangélico proposto é Mc 6,1-6, relato da passagem de Jesus por Nazaré, sua terra natal, e a consequente rejeição e descrédito da sua missão junto aos seus conterrâneos. Para uma melhor compreensão, é essencial fazermos uma pequena contextualização, principalmente devido à interrupção da leitura por duas semanas, como acenamos acima.


O texto possui uma localização estratégica: importantes acontecimentos o antecedem e o sucedem, o que lhe garante também um grau de importância fundamental para todo o Evangelho. É precedido por dois sinais extraordinários praticamente simultâneos: a cura da mulher hemorroíssa, cujo padecimento já durava doze anos, e a reanimação de uma menina de doze anos, filha de Jairo, chefe da sinagoga (cf. Mc 5,21-43). Após esses dois sinais, entrelaçados pelo número doze, o evangelista apresenta Jesus em Nazaré, decepcionado com a incredulidade dos seus conterrâneos (Mc 6,1-6), o texto adotado para a liturgia de hoje. Logo na sequência desse, vem o envio e a missão dos Doze (cf. Mc 6,7-13); a eles, Jesus dá algumas instruções e lhes confere autoridade sobre os espíritos impuros.


Podemos concluir, a nível de contexto, com o seguinte dado: após curar uma mulher de uma enfermidade que durava doze anos, e reavivar uma menina de doze anos, Jesus percebe, na incredulidade dos seus conterrâneos na sinagoga de Nazaré, que o verdadeiro enfermo era Israel com suas tradições, seus costumes e suas concepções de mundo; isso se evidencia pela marca de doze anos nos dois casos. Em Nazaré, Jesus faz o diagnóstico dessa enfermidade crônica de Israel, e percebe que somente o Evangelho, ou seja, a sua proposta de vida, poderia sanar Israel dessa enfermidade, por isso, na sequência, ele enviou os Doze em missão.


Feita a contextualização, olhemos para o texto: “Naquele tempo, Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam” (v. 1). De início, já identificamos um equívoco na tradução litúrgica: o evangelista não emprega a palavra Nazaré, mas diz apenas que Jesus foi à sua terra ou pátria (em grego: patri,j – patrís), embora saibamos que era Nazaré a sua terra. No entanto, a ausência do nome Nazaré é proposital para o evangelista; com isso, ele amplia a dimensão do evento. O triste episódio de Nazaré é o retrato do que acontecia em todo o Israel: apego exagerado à tradição e fechamento aos sinais dos tempos. Da rejeição de uma aldeia, o evangelista prevê a rejeição futura de todo o país, o que levará Jesus à morte.


Jesus foi acompanhado de seus discípulos, a sua nova família, o que deve ter aumentado o choque nos nazarenos. A última cena em que o evangelista tinha feito referências a habitantes de Nazaré foi no conflito de Jesus com os seus familiares, incluindo a mãe, quando esses foram captura-lo em Cafarnaum, imaginando que ele estava louco (cf. Mc 3,20). Ali, diante dos familiares e da multidão, Jesus afirmou que a sua verdadeira família já não era mais determinada pela consanguinidade, mas somente pela prática da vontade de Deus e escuta da Palavra. Acompanhado dos discípulos, portanto, Jesus reafirma a necessidade de tornar-se seu discípulo para fazer parte da sua família.


Como de costume, também em Nazaré Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga” (v. 2a). Marcos não menciona o conteúdo do ensinamento de Jesus, mas certamente é o mesmo que Lucas detalha (cf. Lc 4,16-27), até pelas reações suscitadas: “Muitos que o escutavam ficavam admirados e diziam: “De onde recebeu ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos?” (v. 2bc). Ao invés de “ficavam admirados”, a forma mais correta seria “ficavam chocados ou perturbados” (verbo grego evkeplh,ssomai – ekplessomai). A tradução litúrgica empregou “ficavam admirados” para suavizar o texto. Ouvindo Jesus, seus conterrâneos questionam a origem da sua sabedoria, autoridade e conhecimento, bem como a sua capacidade de fazer coisas “diferentes”, os milagres. Não poderiam imaginar que alguém com suas características pudesse agir daquele modo. Para os habitantes da pequena Nazaré, era inaceitável que alguém proponha algo diferente do que sempre foi ensinado e feito.


Para fundamentar a crítica, os ouvintes de Jesus recordam sua profissão e sua origem: “Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco? E ficaram escandalizados por causa dele” (v. 3). O termo traduzido por carpinteiro (em grego: te,ktwn – tekton) designa o artesão de um modo geral, e não apenas a pessoa que trabalha com madeira; essa era uma profissão comum nos vilarejos. Como era difícil a sobrevivência com apenas uma atividade, geralmente se fazia um pouco de tudo: trabalho com madeira e pedra para construção, principalmente. Citando os parentes conhecidos que moravam no vilarejo, os ouvintes reforçam a incompatibilidade entre a origem de Jesus e a sua atividade messiânica. Ora, o messias, o enviado de Deus para libertar o seu povo, era esperado há séculos em Israel. Mas esperava-se que ele tivesse outras características, como a força e a capacidade para a guerra, jamais que fosse uma pessoa comum e parente de gente simples. Logo, não poderia ser aquele carpinteiro.


A identificação como “filho de Maria”, pejorativa para a época, é mais um indicativo do desprezo recebido por Jesus; as pessoas eram identificadas a partir do nome do pai, autoridade do clã, mesmo que esse já tivesse morrido. Chama-lo de “filho de Maria” equivalia a chama-lo de filho ilegítimo, o que seria um motivo a mais para não vê-lo como um enviado de Deus. Antes foram os parentes a considera-lo louco ou “fora de si” (cf. Mc 3,20), dessa vez é toda a comunidade a considera-lo assim. Ao invés de repetir o ensinamento da tradição, Jesus procurava apresentar um novo rosto de Deus; um Deus que já não se comunicava pela força, mas pela simplicidade, amor, acolhimento e justiça, por isso, “ficaram escandalizados”, ou seja, sentiam que Jesus estava mais atrapalhando do que ajudando-os a observarem a fé transmitida e ensinada pelos antepassados.


Até então, Jesus tinha recebido oposição severa das autoridades religiosas e da família, apenas. Do povo, em geral, tinha recebido boa aceitação por onde passava. Esse episódio de Nazaré apresenta a primeira oposição coletiva à sua mensagem. Para a mentalidade provinciana dos habitantes de Nazaré, o que deveria ter nas mãos de um carpinteiro seriam calos, e não capacidade de operar sinais extraordinários. Embora ali não tenha feito milagres (cf. v. 5), a sua fama já tinha chegado a Nazaré. Sendo Jesus uma pessoa simples, tendo crescido em um vilarejo simples, não era normal que ele tivesse tamanha sabedoria e, muito menos, que fosse o messias.


Jesus reage à oposição dos seus conterrâneos com um provérbio: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (v. 4). Para ele, não era surpresa um profeta ser rejeitado em sua terra, por parentes e conhecidos. Esse provérbio nasceu e amadureceu a partir da própria vivência dos profetas ao longo da história de Israel. Os principais exemplos dessa experiência de rejeição na própria terra foram Jeremias (cf. Jr 11,18-23; 12,6) e Ezequiel (cf. Ez 2,2-5). Ser rejeitado se torna a sina de quem permanece fiel a Deus e a missão por ele confiada.


A rejeição a Jesus bloqueia a ação salvífica de Deus. Por isso, “ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos” (v. 5). Os milagres de Jesus não eram meras demonstrações de poder e força, mas comunicação com a humanidade, e isso exigia interação e reciprocidade através da fé. Jesus se sentiu bloqueado, não imune de força, mas impedido de interagir, porque o Deus que ele veio revelar é alguém que se comunica, se relaciona com o ser humano de modo pessoal, e não através de sinais grandiosos. A fé é adesão à sua proposta de vida.


Se a reação dos habitantes de Nazaré foi de perplexidade, também Jesus “admirou-se com a falta de fé deles” (v. 6a). A falta de fé é a incapacidade de adesão à sua mensagem; aqui, significa o fechamento e a dureza de coração, a insensatez. Diante da rejeição recebida, a resposta de Jesus é a missão: Jesus percorria os povoados da redondeza, ensinando” (v. 6b). Como em Nazaré ele diagnosticou que Israel todo padecia, eis que reagiu a isso indo ao encontro de mais povoados, e enviando também os Doze com a mesma autoridade com que ele mesmo agia, como refletiremos no próximo domingo.


Os habitantes de Nazaré rejeitaram Jesus porque ele lhes apresentou um Deus acolhedor, misericordioso, justo e simples, fora dos esquemas apresentados pelas tradições de Israel. O Deus de Jesus não age pela força, nem pela imposição, mas se revela na simplicidade e na pequenez. O erro dos habitantes de Nazaré é repetido pelos cristãos quando imaginam e desejam uma Igreja triunfante, forte e poderosa. Que o Evangelho de hoje nos ajude a compreender e viver o que é essencial para a nossa fé, e a acolher a grandeza de Deus que se revela na pequenez.