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4. Reflexão para o Domingo de Pentecostes (Jo 20,19-23)

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03.06.2017 | 8 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
4. Reflexão para o Domingo de Pentecostes (Jo 20,19-23)

Para o domingo de pentecostes, o evangelho oferecido pela liturgia é João 20,19-23, o relato da primeira manifestação do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos, no primeiro dia da semana. Esse texto já foi usado pela liturgia, como parte do Evangelho do segundo domingo da páscoa: Jo 20,19-31.


Ao contrário do que Lucas propõe em Atos dos Apóstolos, a comunidade joanina fez de tudo para que os seus referenciais não coincidissem com os esquemas litúrgicos judaicos. De fato, o envio do Espírito Santo no dia da festa judaica de Pentecostes é um elemento exclusivamente lucano. Pentecostes era uma das três grandes festas judaicas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa das Tendas), que era celebrada no quinquagésimo dia após a festa dos ázimos, a páscoa.


Para a comunidade joanina, bem diferente de Lucas, o Senhor ressuscitado doa o Espírito, seu dom maior, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema lucano, a descida do Espírito 50 dias após a páscoa, a proposta da comunidade joanina é plena de sentido e responde às necessidades dos discípulos, como vemos no Evangelho de hoje.


Embora estejamos, no calendário litúrgico, há cinquenta dias da páscoa, o Evangelho de João nos convida a retornarmos para aquele primeiro dia, o da ressurreição. Somente Maria Madalena tivera, até então, o privilégio de ver o Ressuscitado. Entre os discípulos reina o medo e a dúvida, como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles disse: a paz esteja convosco” (v 19).


João relata um dia de muita tensão entre os discípulos. Isso se evidencia pelas informações do primeiro versículo: “reunidos de portas trancadas, por medo dos judeus”.  Embora a versão litúrgica do texto use a expressão “portas fechadas”, o evangelista usa mesmo é “de portas trancadas”. Isso denota insegurança e medo em demasia. Era uma comunidade em crise, desmoronando.


Embora em crise e amedrontada, parece que a comunidade estava decidida a não voltar mais aos esquemas de sempre: estava reunida “ao anoitecer do primeiro dia da semana”. Segundo o esquema litúrgico judaico, o anoitecer já não fazia mais parte do mesmo dia, seria então o início do segundo dia. Mas, na embrionária comunidade cristã, é necessário que o dia se prolongue, ou seja, as trevas não podem prevalecer sobre a luz.


A situação de medo em que os discípulos se encontravam deve ser vista em um sentido mais amplo. Embora o evangelista afirme que era por “medo dos judeus”, não podemos generalizar. Nem todos os judeus transmitiam medo aos discípulos. O evangelista se refere às autoridades judaicas e fariseus que sempre foram hostis a Jesus e continuavam sendo também aos discípulos (cf. 9,22; 12,42; 16,16).


Enquanto não fizer uma experiência de encontro com o Ressuscitado, toda comunidade tende a fechar-se por medo e falta de convicções. Naquele medo estava a angústia, a desilusão e o remorso de alguns. O medo é, portanto, o resultado da ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado, toda comunidade perece.


Diante dessa situação, eis que “Jesus entrou e pôs-se no meio deles”. Aqui aparece a primeira condição para a comunidade superar a crise: ter Jesus como centro. Com isso, o evangelista reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade livre, igualitária, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. Trata-se de um claro combate à tendência hierarquizante na comunidade do discípulo amado. É esse o significado do seu colocar-se no meio.


Somente tendo o Ressuscitado como centro, a comunidade pode acolher os seus dons. E o primeiro dom oferecido é a paz. A tradução litúrgica diz “a paz esteja convosco”, mas o correto é “paz a vós”, quer dizer que essa paz é atemporal, não pode faltar jamais na comunidade. A paz é sinal da vida em plenitude, o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões, sinal da autêntica felicidade. Obviamente, se o Ressuscitado não estiver no centro, a comunidade não poderá alcançar esse estado de vida.


Na continuidade da experiência, Jesus mostra as mãos e o lado (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, da cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso, ele diz que a cruz não foi o fim. Assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o motivo principal da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. A cruz não foi um acidente nem algo a ser esquecido pela comunidade; pelo contrário, foi consequência das opções de Jesus, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre habituados com a cruz.


Finalmente, o medo foi vencido: “os discípulos se alegraram por verem o Senhor”. Conforme Jesus mesmo tinha garantido, a tristeza dos discípulos foi transformada em alegria (cf. Jo 16,20). De uma situação de medo, a comunidade passa à alegria, como consequência da experiência com o Ressuscitado. A alegria é uma característica marcante da comunidade que vive e celebra a presença do Senhor.


A paz é novamente oferecida (v. 21a). Só é possível acolher plenamente os dons pascais com a paz oferecida por Jesus. É a mesma paz transmitida anteriormente como antídoto ao medo. Aqui, nessa segunda vez, a paz precede o envio, como encorajamento para a missão: não basta transformar o medo em alegria, é necessário anunciar e partilhar essa alegria... a alegria do Evangelho!


Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João, isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira destinatária da missão, porque é nessa que estão as situações de medo, desconfiança, falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado. Sendo portadores da sua paz, os discípulos são enviados com as mesmas credencias, pois ele os envia como o “Pai o enviou” e, portanto, devem fazer as mesmas opções e assumir as respectivas consequências.


O texto mostra, como sempre, a conexão entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente (Gn 2,7). O verbo soprar significa transmissão de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira.


Finalmente, a comunidade foi revivificada e habilitada para a missão. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro.


O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão, equivocadamente. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas e de todos os lugares. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado.


Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).


João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia à comunidade essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à medida que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade.


É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo-a perder o medo e a insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada!