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3. O Evangelho de Mateus: teologia e estrutura

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20.08.2014 | 10 minutos de leitura
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Curso Bíblico
3. O Evangelho de Mateus: teologia e estrutura

Nunca é demais lembrar que os Evangelhos, longe de serem tratados doutrinais, de caráter expositivo e sistemático, oferecem ao leitor um relato catequético, de índole narrativa e existencial. Neles encontramos uma teologia narrativa, isto é, um relato interpretativo da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.


Partindo desse pressuposto, faremos uma primeira aproximação das duas perguntas que subjazem à narrativa mateana– “Quem é Jesus?” e “Quem somos nós?” – e apresentaremos sinteticamente a estrutura do relato.


Quem é Jesus?


Como vimos no Estudo 1, a pergunta não era nova. Já Marcos e, antes dele os contemporâneos de Jesus, tinham-se perguntado pela identidade do Mestre. Cada evangelista, no entanto, teve dedar, a partir das próprias circunstâncias, experiências e problemáticas, uma resposta particular. Nesta se exprime a cristologia de cada autor,seu modo de vivenciar e de relatar o encontro pessoal e comunitário com o Ressuscitado. Trata-se, no fundo, da mesma pergunta que todo autêntico discípulo deve enfrentar, inexoravelmente, em algum momento da sua caminhada.


No embate com o judaísmo formativo (como modernamente foi denominado o judaísmo que se configurou, em torno do projeto farisaico, a partir da destruição do Templo), Mateus responde: ele é aquele em quem se cumprem definitivamente as promessas de Deus a nossos pais; ele é aquele que os profetas anunciaram; ele é o fundamento e o conteúdo da nossa esperança; ele é o Reino dos Céus em pessoa. Ele é, em definitivo, o “messias esperado”.


Por isso, o Evangelho de Mateus não se limita a relatar a vida de Jesus de modo meramente factual, neutro ou descomprometido, mas a comenta de modo originalíssimo, mediante inúmeras citações do AT que, por sua vez, reinterpreta e resignifica. Com esse olhar são relatados a providencial inserção de Jesus na dinastia davídica, o nascimento em Belém, a ida ao Egito,a matança das crianças de Belém, o retorno para a terra de Israel e a vida oculta de Jesus em Nazaré. Tudo acontece “para que se cumpra o que o Senhor tinha dito pelo profeta” (Mt 1,22; 2,15.23); como “escreveu o profeta” (Mt 2,5); para que se cumprisse “o que foi dito pelo profeta Jeremias” (Mt 2,17). A mesma ideia Mateus expressa mediante fórmulas análogas, que perpassam a vida pública de Jesus e a narração da paixão: o anúncio inicial do Reino em Cafarnaum (cf. Mt 4,14; Is 8,23–9,1);os exorcismos, as curas e os milagres (cf. Mt 8,17; Is 53,4); a manifestação como Servo de Deus (Mt 12,18; Is 42,1-4); o efeito das parábolas (Mt 13,14.35; Is 6,9-10; Sl 78,2); a atitude diante dos fariseus (Mt 15,8-9; Is 29,13); a entrada messiânica em Jerusalém (cf. Mt 21,1-11; Is 62,11; Zc 9,9); a paixão (cf. Mt 26,31.54; Zc 13,7) e a traição de Judas (cf. Mt 27,9; Zc 11,12-13; Jr 18,2; Ex 9,12)... Em tudo se realizam as antigas profecias.


Mas, por trás da preocupação apologética, isto é, por trás da disputa do evangelista com o judaísmo do seu tempo, existe uma motivação mais profunda, pois os Evangelhos são, antes de mais nada, uma Boa Notícia para seus destinatários e não, primeiramente, escritos polêmicos. De fato, embora no Primeiro Evangelho o interesse apologético esteja presente, a caracterização de Jesus como messias esperado quer,antes de mais nada, mostrar a irrupção de Deus na história de Israel.


Para Mt, a história do AT constitui, toda ela, uma promessa de Deus para seu povo e, através deste, para a humanidade inteira.Cada acontecimento, cada instituição, cada passo no caminho de Israel constitui uma realidade aberta, provisória e imperfeita, que não se esgota em si mesma, mas que aponta para um futuro definitivo, perfeito e completo. E esse futuro tem nome próprio: Jesus.


Ora, o povo da Antiga Aliança era filho de uma experiência fundacional: o Êxodo. Deus “viu a opressão do seu povo no Egito, escutou seu clamor e desceu para libertá-lo” (cf. Ex 3,1ss). Acompanhou o povo na sua provação no deserto, alimentou-o com o maná, conduziu-o pela mão de Moisés e, no Sinai, lhe entregou o verdadeiro alimento, isto é, a Torah que, doravante, seria norma de vida e sinal de pertença.Mas a ruptura dos seguidores de Jesus com a Sinagoga, cujo centro era – e continua sendo – a Torah, pôs em xeque precisamente essa pertença. Por isso, Mt não poupa esforços em demonstrar que Jesus é o “novo Moisés”que, no seu ensinamento e nas suas opções, entrega ao povo a “nova Torah”. Aprofundaremos essa questão ao comentarmos o texto do Evangelho. Basta, por enquanto, saber que Mateus se esmera em mostrar por meio das Escrituras que Jesus é o “novo Moisés” que dá a “nova Torah” aos que o acolhem.


Porque Jesus é o “novo Moisés”, Mateus descreve-o sempre como um mestre ou rabi, que não cansa de ensinar o seu povo, como fez o mestre Moisés outrora. A diferença de outros mestres de Israel, ele ensina “com autoridade” (Mt 7,29). Também Mc – de quem Mt depende – refere, inúmeras vezes, que Jesus ensinava com autoridade, causando a admiração de todos(cf. Mc 1,22.27; 6,2; 11,18). Contudo, à diferença de Mc, que está muito mais preocupado com a prática de Jesus do que com seu discurso, Mt confere especial destaque ao conteúdo desse ensinamento, como demonstram os cinco grandes discursos do Evangelho (cf. Mt 5–7; 10; 13,1-52; 18; 24–25). Em Mt, aliás, o verbo ensinar adquire um sentido preciso:fazer desabrochar o sentido pleno da Torah à luz da justiça divina, isto é, da vontade do Pai, assumida cabalmente nas palavras, na vida, na morte e na ressurreição de Jesus.


Mateus contesta assim o projeto farisaico: aquele que as autoridades judaicas rejeitaram é agora a norma definitiva de conduta, o critério último de discernimento da vontade divina. Por isso, quem quiser viver conforme a “justiça” – noção tipicamente mateana – não pode contentar-se com a aplicação mecânica da Lei mosaica (Torah), mas deve olhar para Jesus, em cujo ensinamento e práxis se faz presente o rosto amoroso de Deus,a justiça genuína, o Reino dos Céus.


Quem somos nós?


Conforme advertimos acima, era natural que a comunidade mateana, enraizada no judaísmo e seguidora de um messias rejeitado, se questionasse: Será que ainda pertencemos ao Povo de Deus? Uma vez esclarecido que Jesus é o “novo Moisés”, infere-se que o grupo dos discípulos constitui, de fato, o “novo Israel”.


Para o Primeiro Evangelista, não há espaço para dúvidas nem meias-palavras. No AT, Israel era a concretização histórica da Aliança de Deus com a humanidade, a porção escolhida entre todos os povos (cf. Ex 19,5) para ser luz das nações (cf. Is 42,6) e manifestação tangível do amor de Deus. Mas o judaísmo oficial rejeitou Jesus, o messias esperado e, de igual modo, recusou a pregação da sua Igreja. Por isso – desde a perspectiva mateana – Israel perdeu seu lugar, sendo substituído pela nova comunidade messiânica, aberta a judeus e a pagãos.


Mas como organizar o “novo Israel”? Devemos considerar que, ao romper com a Sinagoga, a comunidade nascente perdeu suas antigas estruturas. Havia, pois, um vazio a preencher. O povo da Antiga Aliança, ao final das contas, não tinha peregrinado às tontas e sem tino pelos caminhos da história: Moisés guiou o povo pelo deserto; Josué introduziu-o na Terra Prometida; os juízes, os reis e a casta sacerdotal se encarregaram de organizá-lo; os profetas procuraram corrigir seus desvios e, no exílio, exortaram à esperança. E, mesmo desaparecido o Templo, a Sinagoga conservava suas próprias lideranças. E a comunidade mateana?


A comunidade mateana – parece dizer o Evangelista – não deve se preocupar com isso:os Doze instituídos por Jesus (cf. Mt 10,1-4), encabeçados por Pedro (cf. Mt 16,13-20), garantem a liderança.Pois, assim como as doze tribos de Israel receberam, no passado, a incumbência de guiar a humanidade pelos caminhos do Deus verdadeiro, assim também as Doze colunas da Igreja receberam do Mestre a missão de acompanhar e de orientar a nova comunidade de fé, em meio às lutas e fraquezas, pelos caminhos da “nova Torah”. E esta não é outra senão o próprio Jesus, cuja vida e ensinamentos constituem a única Lei da comunidade messiânica.


Estrutura


A organização do texto mateano não é meramente um assunto para especialistas e eruditos, pois a teologia e a personalidade do evangelista transluzem, com especial intensidade, na estrutura do relato. Daí a importância de conhecermos bem o plano redacional.


Com toda probabilidade, Mt começou pelo miolo do Evangelho (vida pública de Jesus), acrescentando finalmente a introdução (nascimento e vida oculta) e os capítulos conclusivos (paixão, morte e ressurreição). Apresentemos, mais detalhadamente, o esquema mateano:


I. Introdução – Nascimento e vida oculta (Mt 1–2)


Os dois primeiros capítulos constituem o assim chamado “Evangelho da infância”, que explicita as origens de Jesus e as circunstâncias do seu nascimento. Com singular maestria, Mt demonstra como, em Jesus, recebem cumprimento as profecias messiânicas. O relato também sugere, na perseguição de Herodes e na atitude adversa de Jerusalém (cf. Mt 2,3),qual será o destino do menino e a férrea oposição que futuramente encontrará.


II. Vida pública (Mt 3–25)


Conforme já foi pontuado, o Evangelho de Mt apresenta Jesus como o “novo Moisés” e, em última instância, como a “nova Torah”. Nada melhor, pois, que dividir a vida pública de Jesus em cinco livrinhos, o que nos lembra os cinco livros da Torah, também chamada de “Pentateuco” (Gn; Ex; Lv; Nm; Dt), que vem do grego penta,cinco, e teukos, rolos. Cada livrinho, por sua vez, está subdividido em duas partes, uma narrativa e outra discursiva. Vejamos quais são:


1) Parte narrativa: abertura da vida pública de Jesus(Mt 3–4).
Parte discursiva: Sermão da Montanha (Mt 5–7).


 2) Parte narrativa: milagres e curas (Mt 8–9).
Parte discursiva: Sermão da Missão (Mt 10).


 3) Parte narrativa: atividade na Galileia (Mt 11–12).
Parte discursiva: Sermão das Parábolas (Mt 13,1-52).


4) Parte narrativa: constituição da comunidade (Mt 13,53–17).
Parte discursiva: Sermão da Comunidade ou Eclesial (Mt18).


 5) Parte narrativa: controvérsias em Jerusalém (Mt 19–23).
Parte discursiva: Sermão Escatológico (Mt24–25).


III. Conclusão – Paixão, morte e ressurreição (Mt 26–28).


O relato alcança, na humilhação do Gólgota, seu ponto mais alto: Jesus é, de fato, o messias esperado, mas, diferentemente de toda espera, seu messianismo amadurece e desabrocha na Cruz. A vida tem, contudo, a última palavra e, a partir do encontro com o Ressuscitado, a comunidade mateana descobre seu fundamento e vocação.


Concluímos, assim, nossa introdução ao Primeiro Evangelho. Na próxima semana mergulharemos, sem mais delongas, no texto de Mt.







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