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2. O Evangelho de Mateus: conflito

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13.08.2014 | 6 minutos de leitura
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Curso Bíblico
2. O Evangelho de Mateus: conflito

No Estudo anterior, vimos rapidamente o contexto do relato mateano: guerra, destruição e um povo em crise. Mas, qual era a fisionomia desse povo no tempo de Jesus? Ou, dito de outro modo: Qual era a “cara do povo” nesse período?


Certamente, o judaísmo que Jesus conheceu não possuía um “rosto” único, mas, ao contrário, estava constituído por uma multiplicidade de facções, “seitas” ou partidos, cada um dos quais oferecia um “rosto” distinto e alegava encarnar o autêntico “ser judeu”. A diversidade – por vezes contraditória e difícil de harmonizar – era, pois, a nota dominante.


Em meio a essa diversidade, quatro grupos ganharam especial destaque, a saber: saduceus, fariseus, essênios e zelotas. Vamos conhecê-los.


Os saduceus pertenciam à casta sacerdotal. Embora conformassem um grupo minoritário e carecessem de apoio popular, ocupavam um lugar de primazia – econômica, política e religiosa – na sociedade palestinense. Dominavam o Templo, o culto, o Sinédrio e o sumo sacerdócio. Reduziam a revelação à Torah Escrita e rejeitavam os “acréscimos” da Tradição Oral, negando, portanto, todo aquilo que não estivesse expressamente consignado nas Escrituras hebraicas.


Em contraste com o grupo anterior, os fariseus integravam os setores meios da sociedade judaica e gozavam do apoio e da confiança das camadas populares. Se a primazia dos saduceus se assentava, em última instância, no Templo, a popularidade dos círculos farisaicos fundava-se na Torah (literalmente, “Lei”), que estudavam e conheciam pormenorizadamente. Mas, para além da Torah Escrita, reconheciam a Palavra do Deus vivo também na oralidade. Torah Escrita (Escrituras) e Torah Oral (comentários dos sábios) eram, pois, duas dimensões inseparáveis de uma mesma Palavra revelada. Precisamente esse é o pano de fundo dos debates entre saduceus e fariseus a respeito da fé na ressurreição – professada pelos segundos com base na tradição oral –,testemunhados tanto por Mt (Mt 22,23-33) quanto por Mc (Mc 12,18-27) e por Lc (At 23,6-8). Mediante o zeloso cumprimento da Lei, os círculos farisaicos almejavam a santificação do povo, incluso fora dos limites do Templo. Mas, se, por um lado, pretendiam orientar o povo nos caminhos da Torah, por outro lado, o rigorismo quanto às normas de pureza e à observância do sábado dificultava o dia a dia e conduzia à exclusão de determinadas categorias de pessoas (leprosos, doentes em geral, pecadores, etc.). Numerosos episódios evangélicos apontam nessa direção (Mt 12,1-9; Mc 3,1-6; Lc 15,1-2; Jo 9,16). Contudo, devemos lembrar que os Evangelhos foram escritos com posterioridade à vida terrena de Jesus, o que leva a pensar que, por trás das controvérsias de Jesus com a comunidade farisaica, se vislumbra, na verdade, a tortuosa relação das primeiras comunidades cristãs com o judaísmo posterior à destruição do Templo (ano 70 dC.).


Os essênios, por sua vez, constituíam, de acordo com o historiador judeu Flávio Josefo (37-101 dC.), “a mais perfeita” de todas as seitas (cf. Guerra dos judeus, II,12,153). Viviam comunitariamente, trabalhavam a terra e possuíam todos os bens em comum. Eram celibatários e destacavam pelo rigor dos seus costumes e práticas ascéticas. Ao parecer, surgiram como um grupo dissidente do Templo durante o período asmoneu (163-63 aC.), pouco antes da conquista romana. O descobrimento fortuito, em 1947, dos chamados “manuscritos do Mar Morto”, nas proximidades das ruínas de Qumran, revolucionou os estudos bíblicos e deu a conhecer o maior legado essênio para nossos dias: seu labor como copistas.


Por fim, os zelotas eram um grupo político-nacionalista e, certamente, a facção mais belicosa. Sucumbiram durante a guerra contra Roma, não sem antes oferecer a mais férrea resistência.


À luz desses dados, podemos dizer que, longe de ser um coletivo uniforme e sem distinções internas, o judaísmo do período estudado era uma realidade complexa, conformada por grupos não somente diversos como também concorrentes e até rivais. A diversidade na terra de Israel era a tal ponto evidente que parece mais apropriado falar de “judaísmos” (plural) no lugar de “judaísmo” (singular).


Contudo, havia, em meio a crescente fragmentariedade, dois elementos principais de comunhão e unidade: o Templo e a Lei. O primeiro, no alto da Cidade Santa, era particularmente significativo para o judaísmo da Palestina, de cuja vida religiosa, cultural e social era o centro (à exceção do grupo dissidente dos essênios). Mesmo assim, projetava seu enorme poder simbólico também sobre as comunidades da diáspora, aquelas comunidades de judeus que se tinham firmado em países estrangeiros. Do mesmo modo, a Lei, ainda que mais adaptável à realidade palestinense, atingia e nutria o judaísmo nos quatro cantos da terra, como demonstra a tradução para o grego da Bíblia Hebraica conhecida como Septuaginta ou Bíblia dos LXX, realizada em Alexandria, Egito, entre os séculos III e II aC..


E o cristianismo? Que lugar ocupava nessa realidade tão plural? Em rigor de verdade, nesse estágio primitivo do movimento jesuano, parece prematuro falar de “cristianismo”. Acaso corresponda falar, com maior propriedade, do judaísmo reunido em torno de Jesus. Dito de outro modo, o movimento inaugurado por Jesus de Nazaré era – e assim se auto-compreendeu inicialmente – um judaísmo em meio a outros judaísmos.


Ora, uma vez desaparecido o Templo (e, com este, o culto sacrificial, a casta sacerdotal e o Sinédrio), o judaísmo perdeu, simultaneamente, boa parte dos referenciais sobre os quais até então se firmava sua vida, sua identidade e a unidade em meio às diferenças.Era preciso, pois, preencher esse vazio.


No ocaso da guerra, quando os grupos sobreviventes – dentre estes, a comunidade de Mt – procuravam um modo de vida que pudesse substituir o que tinha sido destruído, muitos olhares se voltaram para a seita dos fariseus. O motivo? O programa farisaico. Por centrar-se na Torah – ainda vigente –, despontava, não somente como a alternativa mais viável, mas também como potencialmente válido para todo Israel. A busca e a reformulação da própria identidade significaram, ao mesmo tempo, o começo do fim do sectarismo, isto é, o início de um longo caminho de unificação, ao final do qual encontramos um judaísmo menos fragmentado e mais coeso.


O processo, contudo, não esteve isento de lutas nem de oposição, pois muitos – como a comunidade mateana – resistiram o processo unificador, recusando serem encaixados nos esquemas farisaicos, sendo perseguidos e, no final, excluídos da Sinagoga. Diante da crescente pressão, a réplica de Mt não demorou em chegar: tendo sido rejeitado Jesus, o “messias esperado”, pelo Israel histórico, este deixou de ser, decorrentemente, o arauto do verdadeiro Deus. Doravante, seu lugar é ocupado pela comunidade “cristã”. Deste modo, uma vez respondida – ao modo do Primeiro Evangelista – a pergunta pela identidade de Jesus, a incógnita levantada por Mt a respeito da própria identidade, isto é, “Quem somos nós?”, recebe uma resposta contundente e definitiva: somos “o verdadeiro Israel de Deus”.


No próximo estudo, ofereceremos algumas chaves de leitura que ajudarão na compreensão do Primeiro Evangelho. Até então!







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