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18. Reflexão para o 23º domingo do Tempo Comum (Mt 18,15-20)

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09.09.2017 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
18. Reflexão para o 23º domingo do Tempo Comum (Mt 18,15-20)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe Mateus 18,15-20 para o Evangelho. O capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus é composto pelo quarto dos cinco grandes discursos de Jesus apresentados nesse Evangelho. Esse discurso é dirigido especialmente aos discípulos e trata das relações entre os membros da comunidade, por isso é comumente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”. O ensinamento de Jesus nesse discurso tem como primeiro objetivo apresentar a comunidade cristã como uma comunidade de iguais, marcada pelo amor, pela humildade e pelo perdão recíprocos.


Como a liturgia desse domingo não compreende o início do discurso, convém retornarmos o início do texto para contextualizá-lo. O quarto discurso de Mateus é a resposta de Jesus a uma pergunta absurda dos discípulos, conforme o primeiro versículo do capítulo: “Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: ‘Quem é o maior no Reino dos céus?’” (18,1). A pergunta revela que os discípulos ainda não haviam compreendido quase nada do Reino dos céus. Desde o início da sua pregação, Jesus tinha apresentado o Reino dos céus como uma sociedade alternativa ao sistema vigente, sem relações de poder, nem hierarquia entre os seus membros. Se os discípulos ainda perguntavam quem era o maior, é porque ainda não haviam compreendido nem aceitado essa proposta.


Pouco antes desse episódio, Jesus havia feito o segundo anúncio da paixão (cf. Mt 17,22-23). Por incrível que pareça, quanto mais Jesus falava em cruz, perseguição e sofrimento, mais os discípulos alimentavam seus sonhos de grandeza e poder (cf. Mt 20,20-28), demonstrando que não estavam ainda vivendo as bem-aventuranças anunciadas no começo do Evangelho (cf. Mt 5,1-12). Sem dúvidas, essa era também a crise da comunidade de Mateus, cerca de quatro décadas após a morte de Jesus. A tendência hierarquizante era cada vez mais forte, por isso o evangelista faz questão de recordar as palavras de Jesus contrárias a essa tendência.


O trecho proposto pela liturgia desse domingo é também precedido pela parábola da ovelha perdida (cf. 18,10-14). Ele poderia muito bem ser entendido como uma espécie de explicação da parábola, uma vez que, ao tratar da correção fraterna, o texto evidencia o esforço da comunidade para que o perdão e a reconciliação aconteçam. Os membros da comunidade devem se esforçar ao máximo para refletirem em suas vidas o cuidado do Pai: “Vosso Pai, que está nos céus, não quer que se perca nenhum destes pequeninos” (18,14). Ora, para que nenhum dos pequeninos se perca, a comunidade não pode medir esforços; deve empenhar-se com todos os meios disponíveis para que prevaleça o amor, o perdão e a reconciliação fraterna aconteça.


Feita a devida contextualização, voltemos a nossa atenção para o nosso texto de hoje (18,15-20). Eis o primeiro versículo: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão.” (v. 15). A possibilidade do pecado e da ofensa já deixa muito claro que a comunidade não é perfeita, pois seus membros também não são perfeitos. Não obstante as imperfeições, a comunidade é, antes de tudo, um espaço fraterno, pois seus membros são todos irmãos. De fato, uma das informações e dos ensinamentos mais importantes desse versículo é o uso da palavra irmão. Independentemente da falta cometida, a fraternidade, como regra básica da comunidade cristã, deve ser buscada em todas as circunstâncias. A correção em particular é o primeiro recurso: nada de exposição ou de humilhação; entre irmãos, deve haver liberdade para perceber juntos o erro e a necessidade de correção para o bem da comunidade. Não é a posição de um superior para com um subalterno, mas de um irmão que busca outro irmão para recompor a unidade da comunidade. Ganhar o irmão significa recuperá-lo para a comunidade, ou seja, reatar com ele os laços de fraternidade.


Caso essa primeira tentativa não funcione, novos meios devem ser buscados: “Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas testemunhas para que a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas” (v. 16). O cuidado com o irmão continua muito evidente: nada de expô-lo publicamente. Contudo, para que não se perca, é necessário continuar buscando a sua reconciliação e seu retorno à fraternidade. Tendo falhado a primeira tentativa, busca-se uma segunda. Nessa, recorre-se ao princípio judaico do testemunho, ao aconselhar que se tome uma ou mais testemunhas, para que o testemunho seja válido (cf. Dt 19,15). No entanto, não se trata de um recurso jurídico, mas sim da ajuda mútua. Mais do que mostrar o erro, o esforço da comunidade deve ser um convencimento para que o irmão não se aparte dela.


Mesmo que a segunda tentativa não funcione, ainda há outros recursos e meios, como sugere Jesus: “Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja” (v. 17a). A terceira tentativa para que o irmão não se perca da comunhão fraterna é levá-lo à comunidade, ou seja, à Igreja. Essa, não como instância jurídico-institucional, mas como espaço de comunhão e fraternidade, deve ser comunicada e ficar a par de todas as situações que envolvam seus membros. A Igreja aqui, como já falamos, não é uma instituição nem um grupo hierárquico, mas a comunidade reunida, a assembleia. Esse conselho de Jesus é mais um sinal da sinceridade e transparência com que os irmãos e irmãs da comunidade cristã devem viver. Como um corpo que é a comunidade, seus membros têm direito de saber como andam as relações entre os demais membros, afinal o bom funcionamento do corpo depende da saúde e do bem de todos os membros. A comunidade reunida, como espaço de comunhão e oração, deve também fazer da celebração uma oportunidade de crescimento por meio da reconciliação de seus membros.


É possível que até mesmo a comunidade reunida não seja suficiente para convencer o irmão da necessidade da reconciliação. Assim como é espontâneo o ingresso na comunidade, também deve ser o afastamento, o que muitas vezes ocorre até por falta de compreensão e acolhida. Por isso, Jesus previne: pode ser que nem mesmo o conselho da assembleia reunida seja suficiente para o retorno do irmão: “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público” (v. 17b). Muitos interpretam, equivocadamente, que após todas as tentativas de conversão, a Igreja pode e deve excomungar, abandonar e excluir o membro pecador. É claro que esse pensamento distorce completamente o pensamento de Jesus. Contradiz, inclusive, a parábola que antecede o nosso texto, aquela da ovelha perdida. O real significado dessa expressão é: se aquele irmão não se convenceu da necessidade de viver em paz com o outro, se ele não se deixou mais convencer pela beleza da vida fraterna e comunitária, então, depois de várias tentativas, ele precisa refazer o caminho.


Ser tratado como pagão ou publicano é ser, de novo, destinatário do Evangelho. Embora o texto litúrgico use a expressão “pecador público”, é mais correto usar “publicano” ou “cobrador de impostos”  por uma questão de fidelidade ao texto original. Ora, ao longo de todo o Evangelho, os cobradores de impostos e os pagãos são destinatários do interesse de Jesus e, portanto, do Evangelho. Essas duas categorias de pessoas eram desprezíveis para os fariseus, mas jamais para Jesus. A comunidade cristã não pode ser pautada pelos mesmos princípios dos fariseus e sim pelo amor de Jesus e do Pai, por Ele revelado. Por isso, deve ter coragem de voltar atrás e recomeçar seu caminho formativo para o discipulado, quantas vezes for necessário, indo ao encontro daqueles e daquelas que se afastaram. Portanto, como comunidade inclusiva, a Igreja deve buscar todos os meios para que nenhum pequenino se perca.


O que já dissera aos discípulos no episódio de Cesaréia de Felipe, Jesus agora reforça: “Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v. 18). É claro que não se trata de uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade que vive de fato as bem-aventuranças é reflexo do céu. As relações fraternas de amor e perdão são os distintivos da comunidade cristã. Não é necessário ter poder para que as coisas da terra sejam confirmadas pelo céu; basta coerência, testemunho e, sobretudo, amor! Ao Pai, importam apenas amor, concórdia e fé (v. 19). São esses os requisitos para tornar válida a oração. Antes de dobrar os joelhos e abrir os lábios para dirigir uma prece ao Pai, a comunidade deve viver a concórdia interna, respeitando as diferenças, obviamente.


A autêntica comunidade cristã, reconciliadora e orante, é o lugar privilegiado da presença de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (v. 20). Aqui, o evangelista retoma um dos temas principais de todo o seu Evangelho: a presença do Senhor no meio da comunidade (cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20). Aqui está também a justificativa para que a comunidade nunca se canse de buscar o retorno daqueles que se afastam: é a presença do irmão que gera comunhão, e essa comunhão garante a presença de Jesus. Na época da redação do Evangelho de Mateus, como o templo já havia sido destruído, os judeus afirmavam que Deus estava presente onde dois ou mais estivessem reunidos para estudar a Lei. Com essas palavras, Jesus diz que não é o estudo da Lei que garante a presença divina, mas é o seu nome. O evangelista entende que reunir-se no nome de Jesus não é apenas pronunciar palavras juntos, mas viver de acordo com o seu ensinamento. Com isso, ele combate as tendências individualistas que começavam a aparecer na sua comunidade.


Uma comunidade só é autenticamente cristã quando é possível perceber e sentir nela a presença de Jesus. Essa presença só se manifesta quando há amor, perdão, reconciliação e compreensão. Havendo esses elementos, independente do número de membros, mesmo que sejam só dois ou três, o Senhor estará presente. Por isso, a comunidade deve empenhar-se ao máximo possível para recuperar um irmão ou irmã afastado; mesmo que seja somente um, a sua ausência pode comprometer a presença do Senhor!