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37. Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade (Ef 2,14) - PARTE 1

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14.01.2021 | 11 minutos de leitura
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Acadêmicos
37. Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade (Ef 2,14) - PARTE 1
Solange Maria do Carmo
Aíla Luzia Pinheiro de Andrade

1. INTRODUÇÃO
A Campanha da Fraternidade de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e, como lema, “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”, baseado no texto de Ef 2,14. Falar sobre o tema do diálogo nunca é demais, ainda mais a partir das Escrituras Sagradas, que são o luzeiro da vida do cristão. O momento atual, marcado pela intolerância, pela promoção do ódio e pelo preconceito, obriga os cristãos a colocarem a fé a serviço da cultura da paz, rumo à construção de um modelo social alternativo, cujas bases sejam o diálogo e o respeito à diferença. Em tempos de tantos fundamentalismos e integrismos, uma leitura apurada da Carta, que serve de pressuposto para a CF, pode contribuir nesse processo.

2. ABORDAGEM GERAL: DADOS DA CARTA
Segundo o livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo teria estado em Éfeso por ocasião de sua segunda viagem missionária e, quando lá chegou, teria encontrado alguns discípulos que ainda não tinham recebido o batismo (At 19,1-7). Durante três meses, o apóstolo teria anunciado Jesus como o messias na sinagoga da cidade (At 19,8). Mas como “alguns se obstinavam na incredulidade e falavam mal” dos seguidores do Caminho (At 19,9), Paulo teria passado a usar a escola de Tiranos para sua atividade evangelizadora e catequética (At 19,9). De acordo com Lucas, autor dos Atos, o apóstolo teria permanecido naquela região por dois anos, sempre pregando para os efésios e para os habitantes das cidades vizinhas (At 19,10), tornando Éfeso um centro de difusão do cristianismo.
Sabe-se, pois, que o livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, não é uma crônica histórica, ou seja, é um relato mais teológico que factual. Lucas tem intenções teológicas quando descreve as viagens de Paulo. Quer mostrar como se cumpre o programa dos seguidores de Jesus, descrito em At 1,8: “Sereis minhas testemunhas, em Jerusalém, na Judeia, na Samaria e até os confins da terra”. O autor quis mostrar que, para Paulo, não havia limites. O apóstolo dos gentios extrapolou as fronteiras da Palestina e chegou aos confins da terra, Roma, levando a boa nova de Jesus Cristo. Nessa aventura de divulgar o evangelho, Paulo teria ido parar em Éfeso.
Éfeso, a segunda cidade mais importante do império romano, era a casa de Diana (também conhecida como Ártemis). Ali havia um imponente templo erigido à deusa, tal era a importância de seu culto na localidade e nas regiões vizinhas (At 19,24). A cidade era lugar de muitas crenças, de práticas mágicas e de idolatria (At 19,17-20), carregava a marca do pluralismo religioso, obrigando a fé cristã nascente a lidar com essa realidade. Assim, a diversidade religiosa é o pano de fundo da Carta aos Efésios, uma realidade não muito distante do nosso tempo, no qual o pluralismo religioso e a liberdade religiosa são fundantes.
A epístola atribuída ao apóstolo Paulo está incluída entre as quatro Cartas do Cativeiro, juntamente com Colossenses, Filipenses e Filemon. Essa inclusão se deve ao léxico utilizado pelo escritor. Expressões como ser “prisioneiro de Cristo Jesus” (Ef 3,1), “prisioneiro do Senhor” (Ef 4,1) e “embaixador acorrentado” (Ef 6, 20) dão o tom do texto.
A Carta aos Efésios foi tradicionalmente atribuída ao apóstolo Paulo, mas, desde o final do século XVIII, a autoria paulina foi contestada pelos exegetas. Raymond Brown afirma que cerca de oitenta por cento dos estudos críticos julga que Paulo não escreveu a Carta aos Efésios . A contestação da autoria paulina se deu, principalmente, com base no vocabulário, na forma da escrita e no tema da escatologia, elementos que são nitidamente diferentes das cartas paulinas cuja autenticidade nunca foi questionada. Além desses fatores há o caráter impessoal da carta, que não possui qualquer indicação de que o autor tenha conhecido pessoalmente seus destinatários . O texto está na forma de um tratado geral; não há exortações próprias e não trata de problemas específicos da comunidade com a qual Paulo teria convivido por dois anos. Apesar da contestação da autoria, a Carta aos Efésios faz parte do Corpus Paulinum  desde tempos remotos do cristianismo. Os estudiosos que consideram uma improvável autoria paulina afirmam que Efésios seria um escrito deuteropaulino, cujo autor resumiu os ensinamentos de Paulo com o objetivo de dar respostas aos desafios de um contexto posterior à morte do apóstolo, entre os anos 80 e 100 dC.  Trata-se, pois, de uma pseudoepigrafia: um texto redigido por uma pessoa pouco conhecida, mas atribuído a alguém de renome. Essa não era uma prática incomum e são muitos os casos registrados na bíblia. Exemplo claro são os salmos de Davi, mas Davi provavelmente não sabia nem ler nem escrever, pois um rei devia ser bom de estratégias comerciais e bélicas e não versado nas letras. É o caso também da Sabedoria de Salomão e de muitos outros registros. Com essa prática, o texto ganhava visibilidade e sua aceitação ficava garantida.
Como um leitor atento pode observar, a Carta aos Efésios é bastante semelhante à Carta aos Colossenses. Ambas têm o mesmo estilo, o mesmo vocabulário e temas muito próximos, o que mostra que uma das cartas foi intencionalmente usada como base para se escrever a outra.
Tudo indica que a Carta aos Efésios foi escrita principalmente para cristãos vindos do mundo gentílico, pessoas que abandonaram um passado pagão para aderir à fé cristã. Esses neoconvertidos precisavam ser instruídos sobre o novo modo de crer e de viver dos cristãos. Apesar do tom da Carta apontar para esse público, os cristãos vindos do judaísmo não são excluídos da mesma. O autor os contempla com um ensinamento acerca do mistério divino: Deus incluiu os gentios na fé e na aliança, e essa graça não é mais uma exclusividade de Israel (Ef 1,9-10; 3,3-6). Com essa novidade, o autor ratifica a entrada dos gentios na comunidade e interpela os judeus à aceitação dos mesmos. No momento atual, quando a intransigência de alguns grupos conservadores exclui a diversidade do horizonte cristão e reivindica para si a exclusividade do nome de católicos, a Carta aos Efésios tem muito a nos ensinar. Jesus é paz entre judeus e gentios; ele é o elo que une dois extremos por longo tempo equidistantes, sem diálogo e sem tolerância. Essa afirmação da Carta rompe as barreiras dos judeus contra os gentios e abre as portas para os recém-convertidos de outras nacionalidades.
As primeiras comunidades cristãs não estavam isoladas do mundo, como também hoje não o estão. Desenvolviam-se inseridas no contexto histórico, geográfico, econômico, político e cultural da época. Os textos bíblicos refletem essa inserção. A fé cristã das origens mostrou-se crítica a respeito de muitas realidades do mundo e adequou-se a outras. Soube assimilar muitos valores e usufruir de todos os meios da época para divulgar o evangelho. O estilo epistolar do Corpus Paulinum, gênero muito comum no império romano nos primeiros séculos da era cristã, é um exemplo claro disso. As Cartas que compõem essa coleção têm seu estilo derivado das cartas do ambiente secular. No entanto, os autores neotestamentários sentiram-se livres para fazer diversas modificações no estilo, seja para dar centralidade a Cristo, seja para enfatizar os vínculos de fraternidade entre autores e destinatários. A Carta aos Efésios não foge à regra.
As cartas normalmente estavam divididas em três partes obrigatórias –  praescriptio, prooemium e corpo – e uma parte opcional, a salutatio final.
A parte inicial, chamada de praescriptio, abre a Carta e é composta por três momentos: superscrito, adscrito e salutatio.
Superscriptio é o que vem em primeiro lugar, acima dos demais elementos, e onde o nome do remetente da carta é mencionado. Na Carta aos Efésios, o superscriptio é apenas assim: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus” (1,1).
Adscriptio é a parte que traz a identificação do destinatário. Em Efésios, o autor usa a expressão “aos santos [que moram em Éfeso] e fiéis em Cristo Jesus” (1,1b) . A expressão “em Éfeso” não é encontrada nos manuscritos mais antigos que contém os escritos paulinos, levando os exegetas a considerarem a expressão “em Éfeso” como uma interpolação, ou seja, um acréscimo. Marcião, no século II, criou o primeiro cânon do Novo Testamento e era de opinião que essa Carta teria sido endereçada à igreja de Laodiceia em vez de a Éfeso . A Bíblia de Jerusalém destaca que a frase “que estão”, provavelmente, viria “seguida por um espaço em branco, destinado ao nome dessa ou daquela igreja à qual seria enviada a carta” . Por essas razões, os estudiosos consideram que não se trata de uma carta para nenhuma igreja específica, mas de uma carta circular .
Salutatio é a saudação, que, em Efésios, é “graça e paz a vós” (Ef 1,2) que, em grego é χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη, aparece dez vezes no corpus paulinum (Rm1,7; 1Cor 1,3; 2Cor 1,2; Gl 1,3; Ef 1,2; Fl 1,2; Cl 1,2; 1Tm 1,1; 2Tm 1,1; Flm 1,3). Contudo, a salutatio no Corpus Paulinum não segue à risca o estilo epistolário da época. Há uma mistura de influência judaica e grega, pois os elementos de “graça e paz” vêm acrescidos de bênçãos e de orações derivados da liturgia judaica no Templo, com dependência, por exemplo, da bênção de Nm 6,25-26 .
Depois dessa primeira parte, o praescriptio, vem o prooemium, uma breve introdução a qualquer assunto. Poderia ser um agradecimento aos deuses, ou a um deus específico. As cláusulas de agradecimento não eram estereotipadas, mas emanavam do desejo espontâneo dos remetentes  ou se fundamentavam em um acontecimento específico . Um sentimento de ternura e gratidão podia exalar das cartas, pois mesmo não tendo a fé de Israel, os helênicos sabiam reconhecer as dádivas recebidas como divinas. Assim como hoje, a gratidão não é virtude própria dos cristãos, apesar de estes serem fundamentalmente chamados a ela. Qualquer pessoa de boa vontade, cristã ou não, crente ou não crente, pode cultivar essa atitude de reverência diante do mundo e dos seus mistérios, da natureza, das pessoas. É o que vemos em muitos artistas, poetas, compositores, atores... Diante do belo, se prostram e reconhecem que um mistério maior do que a mão pode abarcar. No caso do epistolário do Novo Testamento, não somente no Corpus Paulinum, mesmo não sendo obrigatórias, as ações de graças são constantes. Em Efésios, o autor agradece a Deus pela obra que ele fez através de Jesus Cristo.
O prooemium da Carta aos Efésios é um hino de ação de graças (1,3-14). Além de ser um louvor, trata-se de uma catequese sobre a obra do Pai (v. 4-6), a obra do Filho (v. 7-12) e a obra do Espírito (v. 13-14). O Pai nos escolheu, em Cristo, antes da criação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis; nos assinalou de antemão para sermos seus filhos adotivos por meio de seu Filho. A obra de Cristo é a redenção pelo seu sangue, ou seja, o perdão dos pecados. Ele esbanjou a graça de Deus com toda sabedoria e compreensão. Através de sua ação se tornou conhecido o mistério da vontade de Deus. Para ele tudo converge; tudo está sob sua liderança. Nele fomos escolhidos e nele temos nossa herança; nele fomos assinalados de antemão para o louvor de sua glória na plenitude dos tempos. Pelo (e com o) Espírito, fomos selados. O Espírito Santo completou tudo que foi feito pelo Pai e pelo Filho, pois nos abençoou com bênçãos espirituais de toda sorte.
Depois do prooemium, vem o corpo, que é o conteúdo da Carta. O corpo da Carta reflete a existência de uma igreja multicultural, pois o autor aborda questões típicas das culturas judaicas e também do mundo gentílico. A leitura da Carta dá a entender que judeu-cristãos e gentio-cristãos não estavam convivendo harmoniosamente. Essa desarmonia também estaria acontecendo no âmbito familiar, esposo-esposa, pais-filhos; assim como na dimensão social, escravos-livres. O autor exorta a igreja repetidamente sobre o tema da unidade, e esse é o núcleo central da Carta.

3. ORGANIZAÇÃO: ESTRUTURA CONCÊNTRICA
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