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20. Evangelho de Jesus Cristo, filho de Deus: As linhas mestras do Evangelho de Marcos

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26.08.2015 | 13 minutos de leitura
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Acadêmicos
20. Evangelho de Jesus Cristo, filho de Deus: As linhas mestras do Evangelho de Marcos

Juan Pablo García Martínez, SCJ – Betharram*
Solange Maria do Carmo**


Resumo
Este trabalho, que consta de três artigos sucessivos, faz uma leitura do Evangelho de Marcos a partir da chave-hermenêutica fornecida por Wilhem Wrede no seu célebre livro “O Segredo Messiânico” (1901). Com os ajustes necessários, a perspectiva de Wrede possibilita uma percepção mais clara e abrangente da poderosa – e misteriosa – mensagem de Marcos, expandindo os horizontes do leitor para além de uma abordagem superficial. Aliás, permite visualizar a intrínseca relação existente entre o messianismo e o discipulado na teologia do Segundo Evangelista. De fato, a tese da qual parte o presente trabalho é que, para Marcos, uma adequada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma apropriada compreensão do discipulado. No primeiro artigo serão apresentadas as linhas mestras do Evangelho de Marcos; no segundo se aprofundará sua concepção messiânica e, no terceiro, seu modo de compreender o discipulado. 
Palavras-chave: Evangelho de Marcos. Messianismo. Messias inesperado. Segredo messiânico.  Wilhem Wrede. Discipulado. Seguimento de Jesus.

Durante séculos, o Evangelho de Marcos foi relegado a um segundo plano, no estudo e também na liturgia. Passadas sua popularidade e sua difusão iniciais, o Segundo Evangelho foi praticamente esquecido. A brevidade, o estilo simples e a aparente incompletude do texto fizeram como que a Igreja preferisse os outros Sinópticos, especialmente Mateus, mais extenso e didático. O próprio Agostinho de Hipona chegou a considerá-lo um compêndio de Mateus (De Consensu Evangelistarum, 1,2). Mas o panorama mudou no século XIX, quando a teoria das duas fontes advertiu acerca da dependência de Mateus e de Lucas em relação a Marcos, agora considerado o mais antigo dos Evangelhos. Em contrapartida às alegrias desta descoberta, a nascente teoria caiu numa certa ingenuidade, pois, ao considerar o Evangelho de Marcos como o mais próximo temporalmente de Jesus de Nazaré, passou a estimá-lo também quase que como a testemunha inalterada do Jesus histórico. A teoria foi ganhando consenso até que, na virada do século, Wilhelm Wrede acendeu o debate com seu célebre livro “O Segredo Messiânico” (1901), demonstrando que também Marcos – e não somente Mateus e Lucas, como já tinham advertido os teólogos liberais – estava perpassado de ponta a ponta pela fé messiânica da Igreja. Apesar dos extremos da nova teoria, que acabou negando todo valor histórico ao texto de Marcos, esta significou um antes e um depois na leitura do Segundo Evangelho, possibilitando novas perspectivas e abordagens. (TAYLOR, 1979, p. 29).
A chave hermenêutica fornecida por Wrede será, de fato, a bússola que norteará nossa leitura de Marcos. A razão desta escolha é simples: a doutrina do segredo messiânico explicita bem a teologia marcana, ao mesmo tempo em que consegue elucidar um texto com frequência desconcertante e perpassado pelo mistério. Aliás, muito mais do que oferecer uma mera ferramenta interpretativa, entendemos que a doutrina do segredo messiânico consegue evidenciar a perspectiva a partir da qual foi escrito o Segundo Evangelho. A tese de Wrede oferece, com as devidas ressalvas, não somente uma chave hermenêutica, mas também a intuição teológica marcana, que moveu o evangelista a redigir o texto. 
Com base nesta perspectiva, levantaremos três perguntas fundamentais, dedicando à cada uma delas um artigo específico. Deste modo, quem quiser completar nossa abordagem do Segundo Evangelho deverá aguardar os próximos números da publicação.
Neste primeiro artigo, a pergunta a ser respondida será: Quais são os princípios e propósitos teológicos basilares que inspiram o Evangelho de Marcos? Para respondê-la, desdobraremos a questão em vários interrogantes: Em que contexto foi escrita a obra marcana? Quem são seus destinatários? Que propósito persegue o autor ao escrever o Evangelho? Quem é Jesus para Marcos? De que modo estrutura-se o texto?
 O segundo artigo vai se debruçar sobre o modo como Marcos compreende o messianismo de Jesus, que – conforme notaremos – é a de um messias às avessas de toda expectativa davídico-nacionalista. A pergunta subjacente será: Como entende e apresenta Marcos a identidade e a missão de Jesus? Como veremos, este será o cerne do nosso trabalho, pois colocará os alicerces de toda a teologia marcana.
No terceiro artigo, estudaremos a concepção marcana do discipulado. Perceberemos que, na perspectiva do Segundo Evangelista, o discipulado se resume no seguimento de Jesus, feito ao longo do caminho. A pergunta que orientará nossa pesquisa será: Quais as implicações, para Marcos, do seguimento de Jesus? Nesse ponto da reflexão, indagaremos se há algum tipo de dependência entre o modo como Marcos entende o discipulado e sua compreensão do autêntico messianismo – já aprofundada no segundo artigo. Em outras palavras, o fato de Marcos compreender Jesus como o messias às avessas, ou seja, o messias inesperado, influencia no tipo de discipulado proposto? 
Essa é, de fato, a tese fundamental da qual partimos: no Segundo Evangelho, o seguimento de Jesus – o discipulado – está intrinsecamente relacionado com o tipo de messias que o evangelista compreende que Jesus é. Procuraremos mostrar que, para Marcos, uma apropriada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma adequada interpretação do discipulado. Nossa intuição se baseia em Mc 8,34-38, onde se adverte, bem às claras, que o destino de Jesus é, ao mesmo tempo, o destino do seguidor. (SMITH, 1996, p. 523-539). Sendo assim, a pergunta pela natureza do messianismo na obra de Marcos é, necessariamente, uma questão previa à sua concepção do discipulado. 
1 DATA, LUGAR DE COMPOSIÇÃO E AUTORIA
Conforme uma antiga tradição testemunhada no início do século II por Pápias, bispo de Hierápolis, o Segundo Evangelho foi escrito em Roma por volta do martírio de Pedro (aproximadamente 65 dC.). Além do testemunho de Pápias, conservado na Historia Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (III,39-15), outras fontes extrabíblicas, como o Adversus Haereses de Ireneu de Lyon (III,1.2) e o Prólogo Antimarcionita (da Vetus Latina), também localizam a redação do Evangelho nesse contexto.
Pápias atribui a obra a Marcos, de quem informa que não conheceu pessoalmente a Jesus, senão através de Pedro, cuja catequese teria colocado por escrito. Quem será este Marcos a quem se atribui o Segundo Evangelho? Difícil dizer ao certo, mas devemos recordar que o nome não era incomum na época. Provavelmente, trate-se de uma alusão ao Marcos do livro dos Atos dos Apóstolos, “de sobrenome João” (ou simplesmente “João Marcos”), associado a Pedro, Paulo e Barnabé (cf. At 12,12.25; 13,5.13), que em At 15,36-41 aparece simplesmente como “Marcos” e, em Cl 4,10, como “primo de Barnabé”. Também na Primeira Carta de Pedro se faz referência a um tal Marcos (cf. 1Pd 5,13). 
Quanto ao momento da escrita, mais confiáveis do que a tradição referida parecem ser os indícios internos do texto, em particular as possíveis alusões à Primeira Guerra Judaica (66-73 dC.) e à destruição de Jerusalém (70 aC.), presentes, sobretudo, no denominado discurso apocalíptico (cf. Mc 13), que parecem confirmar a datação sugerida por Pápias. Nessa mesma linha, a estimativa dos exegetas geralmente oscila entre uma data mais remota, 65-70 dC., e outra mais próxima, 70-75 dC. (BARBAGLIO, 1990, p. 428).
No tocante à autoria atribuída a Marcos, alguns se inclinam pela sua historicidade, pois a tendência da tradição cristã sempre foi atribuir a autoria dos Evangelhos a algum dos apóstolos. Não sendo Marcos um dos Doze, dificilmente teria sido considerado autor sem motivo suficiente. (TAYLOR, 1979, p. 50). Outros – de cujo ponto de vista participamos – entendem que o autor quis deixar sua obra anônima. Quando o escritor recebeu o querigma, sua personalidade se apagou diante da autoridade da mensagem a ser comunicada, o Evangelho. (MARGUERAT, 2009, p. 58).

2 DESTINATÁRIOS E PROPÓSITO TEOLÓGICO-PASTORAL DO EVANGELHO

O texto de Marcos, primeiro do gênero literário Evangelho, foi elaborado para encorajar e esclarecer a fé daqueles que, amedrontados pela tribulação, experimentavam a tentação de um cristianismo sem cruz. Diante do perigo que isso representava para a fé da comunidade, o evangelista lhes anuncia novamente o querigma, lembrando-lhes que seguem a Jesus, o Servo Sofredor, que caminha para Jerusalém acompanhado de seus discípulos.
Se a datação mais aceita for correta (década de 60 ou de 70 dC.), quando o Evangelho de Marcos foi escrito, as comunidades cristãs existiam há trinta ou quarenta anos. No momento em que as testemunhas oculares de Jesus estavam desaparecendo, percebendo o risco de que o essencial do querigma se perdesse, a segunda geração de cristãos assumiu a tarefa de conservar a memória escrita da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo para a terceira e as ulteriores gerações.
Quais seriam, pois, estes leitores imediatos do texto de Marcos? A falta de uma reflexão profunda sobre a Torá – ao contrário do Evangelho de Mateus –, assim como a explicação de usos e costumes judaicos aparentemente desconhecidos pelos leitores (cf. Mc 7,1-4, sobre os rituais de purificação), leva a pensar numa comunidade, ao menos em parte, de origem pagã. As numerosas incursões de Jesus fora da Palestina parecem apontar nessa mesma direção. (MARGUERAT, 2009, p. 62).
Sabemos que os Evangelhos nascem no seio de comunidades concretas, historicamente situadas, e para elas são originariamente escritos, levando em consideração as circunstâncias e as necessidades do destinatário. O Evangelho nos faz pensar em uma comunidade que procurava seguir a Jesus, o Crucificado, mas que estava escandalizada e confusa diante da própria tribulação. A Igreja de Marcos atravessava, possivelmente, tempos de perseguição, e não havia entendido ainda que estava associada ao mesmo destino do seu Senhor. Consequentemente, não dava conta de anunciar a Boa Nova da ressurreição (cf. Mc 16,8). (TILLESSE, 1992, p. 80). A insistência do evangelista na necessidade da paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34) e na persistente incompreensão dos discípulos (cf. Mc 4,13; 6,52; 9,32), aparentemente imunes às reiteradas explicações que recebem de Jesus “em particular” (cf. Mc 4,34; 9,29), sugerem essa problemática. 
Certamente – podemos concluir –, a comunidade de Marcos já tinha sido evangelizada, mas encontrava-se necessitada de uma nova evangelização. Marcos lhe anuncia outra vez o querigma, levantando para isso uma pergunta fundamental, que só pode ser respondida na dinâmica do seguimento: “Quem é Jesus?” (cf. Mc 8,29). Concomitantemente, diante do desânimo e da incompreensão, faz questão de deixar às claras as consequências do seguimento: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34).

3 O MESSIAS INESPERADO E O SEGREDO MESSI NICO

Neste contexto de incompreensão e cruz, o evangelista anuncia que Jesus é o messias, mas não segundo as expectativas terrenas de sua comunidade. O Jesus de Marcos é um messias diferente, que ultrapassa os esquemas puramente humanos de restauração davídico-nacionalista e resiste a se encaixar neles. É o messias inesperado, e seu messianismo é o do Servo Sofredor, humilde, que entrega sua vida pela humanidade (cf. Is 52-53). Ele é o Filho do Homem (cf. Dn 7,13), o protótipo de todo homem, aquele que, em tudo, age segundo a vontade divina (cf. Mc 3,35) e precede à humanidade nos caminhos de Deus.
Precisamente pelo inesperado desta compreensão messiânica e visando preservar o Evangelho de toda interpretação triunfalista – incompatível, portanto, com o caminho da paixão –, Marcos se vale do que os exegetas denominaram de “segredo messiânico” – ao qual dedicaremos o próximo artigo. No esquema do Segundo Evangelista, a identidade e a missão de Jesus serão reveladas, mas isso só acontecerá plenamente no momento decisivo da cruz quando, aniquilado, Jesus será finalmente reconhecido como Filho de Deus (cf. Mc 15,39). 
Entretanto, sua realidade mais profunda deve ser guardada em segredo. Este se expressa no mistério que envolve a pessoa e a atividade de Jesus e se concretiza nas frequentes exortações ao silêncio que dirige a todo aquele que o proclama – ou meramente o declara – como messias. Assim, os discípulos são advertidos para que não contem nada a ninguém, logo depois da profissão de fé petrina (cf. Mc 8,30). Também os demônios, conhecedores de identidade de Jesus, devem guardar silêncio: Jesus lhes proíbe terminantemente dizer quem ele é. Em outras ocasiões, até mesmo os beneficiários de milagres devem se calar, pois os milagres constituem manifestações parciais da glória e do poder messiânicos. A mesma circunspecção permeia as cenas do batismo e da transfiguração, momentos cume da revelação messiânica, ora reservados ao próprio Jesus – “Tu és o meu Filho amado” (Mc 1,11) –, ora reservados a um reduzido número de testemunhas – “Este é o meu Filho amado” (Mc 9,7). 
Na dinâmica do segredo messiânico, Jesus é caracterizado pelo seu extremo poder, onde se vislumbram sua identidade e sua missão. O Jesus de Marcos é, assim, violentamente “sobre-humano”. Ele faz os cegos ver, os surdos ouvir, os paralíticos caminhar; expulsa demônios; acalma tempestades; faz a figueira secar. (TILLESSE, 1992, p. 61). Por isso, ele surpreende, suscita admiração e, eventualmente, desperta o desejo de se aproximar dele, para fazer-lhe perguntas e conhecê-lo.
Mas, ao mesmo tempo, Marcos apresenta um Jesus profundamente humano e próximo de nós. Ele é simplesmente “o carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Nenhum outro evangelista fala tanto sobre suas emoções: fica “entristecido” pela dureza do coração dos fariseus e passa sobre eles “um olhar irado” (Mc 3, 5); quando lhe põem a prova, dá “um suspiro profundo” (Mc 8,12); diante da incredulidade dos nazarenos, “se admirava” (Mc 6,6); perante o leproso e ao ver a grande multidão, “encheu-se de compaixão” (Mc 1,41; 6,34). Somente Marcos nos diz que Jesus olhou para o rico que queria segui-lo “com amor” (Mc 10,21) e, só em Marcos, Jesus toca o leproso com a mão (cf. Mc 1,41). O Jesus de Marcos também sente fome (cf. Mc 11,12), conhece o cansaço e procura descanso (cf. Mc 6,31). (MATOS, 1997, 112).
Também as parábolas se articulam cuidadosamente em torno do segredo messiânico, já que, na teologia do Segundo Evangelho, elas não tornam a mensagem mais clara, mas, ao contrário, a obscurecem (cf. Mc 4,11-12). A concepção marcana das parábolas é, consequentemente, oposta à suposição habitual, segundo a qual, enquanto representações concretas tiradas da realidade quotidiana, seriam narrativas destinadas a facilitar o entendimento. (BURKILL, 1956, p. 246). Ao contrário, na perspectiva de Marcos, elas cumprem a função de provocar os interlocutores, cuja posição Marcos delimita segundo a atitude assumida diante da incompreensão que segue à parábola. Alguns se aproximam de Jesus e lhe fazem perguntas (cf. Mc 4,10), dando, assim, o primeiro passo do discipulado. São os “de dentro”, o grupo dos “com Jesus” que convive com ele. Outros permanecem na incompreensão, sem mudar nem procurar respostas; ou compreendem a parábola, mas rejeitam a dinâmica do Reino (cf. 12,1-12). São os “de fora” (cf. Mc 4,11), sejam estes a multidão (cf. Mc 4,33-34), os adversários (cf. Mc 12,1-12) ou a própria família biológica de Jesus (cf. Mc 3,31). 
4 ESTRUTURA BIPARTIDA DO EVANGELHO

Nos escritos antigos, as primeiras palavras costumavam dar o título à obra, caracterizando ao mesmo tempo seu conteúdo. Se isto vale para vários escritos da Bíblia (para os livros do Pentateuco, na Bíblia Hebraica), resulta particularmente certo no caso de Marcos, o único dos quatro Evangelhos canônicos a colocar já no seu prólogo o termo “Evangelho” (Boa Notícia) e o fundador desse gênero literário. A sua mensagem é, de fato, uma Boa Notícia para a sua comunidade, abalada pela adversidade e por sua própria incompreensão acerca do seu sofrimento.
Marcos começa o texto bruscamente. Não há nele genealogias nem relatos da infância, como em Mateus e em Lucas; não há prólogo sobre a pré-existência do Verbo, como em João. Seu começo abrupto e despojado permite, porém, vislumbrar já no primeiro versículo toda a sua estrutura literária e seu propósito teológico. O versículo “Inicio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) é, de fato, programático, antecipando desde cedo a estrutura teológica da obra.
Nesse ponto, os exegetas enfrentam o problema de determinar a autenticidade da expressão “Filho de Deus”. Embora a mesma apareça na maioria dos manuscritos, em alguns – como o Sinaiticus, do séc. IV – só se lê “Evangelho de Jesus Cristo”. As regras da crítica textual mandam seguir o texto mais curto, pois dificilmente um copista teria tido a ousadia de reduzir o original. Pelo contrário, seria mais usual que um copista piedoso tivesse acrescentado sua própria profissão de fé. Mas, a expressão “Filho de Deus” corresponde de maneira tão profunda e rigorosa com a mensagem teológica de Marcos, que boa parte dos exegetas e tradutores a conserva. (TILLESSE, 1992, p. 147).
A estrutura da obra marcana se manifesta – seguindo a fórmula mais extensa –, através de duas grandes inclusões. Mediante o recurso literário da inclusão, típica da literatura judaica, uma palavra ou expressão usada no começo de um texto é retomada no fim do mesmo. Desta maneira, são marcados os limites da narrativa, ao mesmo tempo em que sua unidade estilístico-temática torna-se explicitada. (MOULTON apud GOPEGUI, 1982, p. 279-300).
O esquema marcano pode ser assim representado como uma escada de dois lances ou partes, cada um respondendo a uma questão fundamental: 1- Quem é Jesus? (primeira inclusão; cf. Mc 1,1–8,30); 2) Que tipo de messias é Ele? (segunda inclusão; cf. Mc 8,31–15,39). O patamar entre os dois lances é ocupado pela proclamação petrina: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29), a partir da qual o segredo messiânico começa a enfraquecer. Por sua vez, o segundo lance conduz aos pés do Servo Sofredor, onde o centurião romano proclama: “Na verdade, este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39), encerrando assim a segunda grande inclusão. Eis o final do segredo. (SILVA, 1989, p. 13).
  Significativamente, em Mc 8,31, primeiro versículo da segunda parte, afirma-se que Jesus “começou a ensinar-lhes”. Bem diferente do anterior ensinamento, caracterizado pela linguagem simbólica das parábolas, o objeto do novo ensinamento é comunicado “abertamente” e com clareza: “era necessário o Filho do Homem sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8,31). A nova modalidade de ensino e o processo desencadeado pela profissão de Pedro constituem, para Marcos, um autêntico recomeçar, após o começo de Mc 1,1. Com Mc 8,31 inicia-se a segunda grande inclusão, que culmina no desfecho da cruz, na qual fica exposta, à vista de todos, o genuíno messianismo de Jesus. Só então pode ser confessada sua identidade mais profunda (cf. Mc 15,39). (TERRA, 1997, p. 7-8).

5 ESTRUTURA DO CAMINHO
Por cima dessa estrutura bipartida, que tem como cume as proclamações de fé de Pedro (cf. Mc 8,29) e do centurião (cf. Mc 15,39), o Evangelho apresenta uma outra estrutura, mais visível e existencial: a do caminho. Para Marcos, a intimidade com Jesus e o conhecimento de seu messianismo se darão no caminho, para aquele que se põe atrás do Mestre. Através desta dinâmica, as duas proclamações de fé, embora já antecipadas no prefácio (cf. Mc 1,1), não chegam ao leitor de maneira pronta e desencarnada, mas como fruto de um longo itinerário que tem a cruz como destino.
Por isso, o caminho deve ser entendido, fundamentalmente, como caminho a Jerusalém, ou seja, como caminho que leva à paixão (cf. Mc 10,32.46.52; 11,8) e que deve ser  percorrido, não somente por Jesus, mas também pelo discípulo. A tal ponto a questão é central que o discípulo que não acolher o caminho de sofrimento de Jesus e que não o assumir como seu único caminho pessoal compromete sua mesma permanência no discipulado. (GNILKA, 1986, p. 15).
Após o batismo no rio Jordão, Marcos situa Jesus no deserto (cf. Mc 1,12-13), lugar de provação (cf. Êx 15,25), de encontro com Deus (cf. Êx 3,1-6; 19,3) e de preparação para os tempos messiânicos (cf. Is 40,3-5). Lá são localizados o batismo (cf. Mc 1,9-11), as tentações  (cf. Mc 1,12-13) e, previamente, a pregação de João Batista (cf. Mc 1,4-8). Como um novo Josué, Jesus sai do deserto e entra na Galileia proclamando a Boa Nova do Reino de Deus. A missão de Jesus começa assim no preciso momento em que a do Batista é concluída. O “mais forte”, que João tinha anunciado (cf. Mc 1,7; Is 9,5), se faz presente em Jesus. 
Uma vez na Galileia, tudo sucede vertiginosamente, “imediatamente” (cf. 1,18.20; 1,42; 3,6; 5,29; 6,27; 7,35; 9,24). O Reino de Deus tem pressa de acontecer, pois o tempo da espera acabou (cf. Mc 1,15; Is 30,19). Na Galileia Jesus chama os primeiros discípulos e institui Doze dentre eles. Lá é também o lugar por excelência dos sinais messiânicos anunciados por Isaías (cf. Is 26,19; 29,18; 35,5; 61,1): curas, milagres e exorcismos se sucedem um após o outro, suscitando a surpresa de todos. O evangelista faz questão de salientar que todos ficam “admirados” pelas suas obras e pela autoridade de seu ensinamento (cf. Mc 1,22.27; 2,12; 5,20; 9,15; 10,26; 12,17; 15,5.44). Curiosamente, Marcos não diz qual é a natureza desse ensinamento (cf. Mc 1,22; 2, 2,13; 6,1.6.34). É que, ao contrário de Mateus (cf. Mt 5–7) e de Lucas (cf. Lc 6,17-49; 15–16), o Segundo Evangelista se preocupa muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Ele ensina fazendo, o que causa grande admiração em todos. (BELO apud SILVA, 1989, p. 12).  À admiração, com frequência, segue-se a pergunta pela identidade de Jesus: “Quem é este?” (Mc 4,41). Mas é só no caminho que esta pergunta pode achar resposta, pois só aos “com Jesus” são confiadas as chaves do segredo messiânico (cf. Mc 4,11). (TILLESSE, 1992, p. 137).  
Em alguns momentos, o caminho acontece em território pagão: Gerasa, Tiro, Sidônia, a Decápole (cf. Mc 5,1; 7,24.31). Os sinais messiânicos chegam também em terra estrangeira, pois a salvação ultrapassa os limites do judaísmo. A partir de Mc 10,1, Jesus se põe a caminho da Judeia e inicia a subida a Jerusalém, passando por Jericó. Finalmente, no capítulo 11, Jesus e os discípulos chegam à Cidade Santa, onde a oposição a ele se radicaliza. Em várias oportunidades, o grupo se traslada à Betânia, mas volta sempre a Jerusalém, onde o Filho do Homem abraça seu destino trágico (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,33-34).
Marcos tinha começado o Evangelho quase que de repente, sem referência ao nascimento nem à infância de Jesus, que aparece já adulto, sendo batizado no Jordão. E da mesma forma, abruptamente, termina a obra, diante do sepulcro vazio, onde “em tremor e fora de si” (Mc 16,8) as mulheres (ou a comunidade de Marcos) recebem um anúncio esperançoso: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, como ele vos disse!” (Mc 16,7). Para Marcos, não há necessidade de aparições pascais. A tradição posterior considerou incompleto o relato e acrescentou-lhe fragmentos – também canônicos – que compendiam as aparições pascais relatadas nos outros Evangelhos. A tentativa de completar o relato originou-se numa incompreensão da mensagem poderosíssima de Marcos, para quem a crucifixão é a cristofania definitiva que prova aos olhos do mundo que Jesus é realmente o Filho de Deus. (TILLESSE, 1992, p. 98).
Em síntese: o relato do batismo é a primeira manifestação de Jesus em Marcos; a crucifixão, ou seja, seu batismo de sangue, traz a última imagem, dando a entender que o destino messiânico de Jesus – e também o destino da Igreja – se consuma na cruz. Por sua vez, a imagem do túmulo vazio, que encerra o relato, remete ao modo como a Igreja de Marcos experimentava a presença do Jesus pós-pascal: como ausência. (TILLESSE, 1992, p. 96).
  O final do Evangelho em 16,8, porém, não significa o final do caminho, que continua na Galileia. Ali, onde tudo começou (cf. Mc 1,9), tudo começa de novo. O retorno à Galileia é o retorno do discípulo ao território do anúncio inicial do Reino (cf. Mc 1,14-15), dos sinais messiânicos, das primeiras perguntas e das incipientes respostas. O preceder do Ressuscitado é que possibilita a experiência sempre nova do seguimento. Este se faz no trilho desse caminho, com todas as suas implicações e consequências. Volta-se, enfim, à Galileia, porque o caminho do discípulo deve sempre recomeçar. (AZEVEDO, 1989, p. 30).

6 CONCLUSÃO

O Segundo Evangelho foi escrito como Boa Notícia dirigida à uma comunidade específica, a Igreja de Marcos, a fim de animá-la e de revitalizar sua fé em tempos de provação. Diante da tentação de um cristianismo sem cruz – o que comprometeria a essência do querigma –, o evangelista anuncia Jesus, o messias inesperado. Ele não é, de fato, um messias “bem sucedido”, mas, ao contrário, o Servo Sofredor, o justo iniquamente condenado.
Exatamente pelo caráter inesperado da identidade e da missão de Jesus, o anúncio não pode ser feito subitamente, mas deve ser realizado de modo paulatino. Para isso, o evangelista elabora um artifício literário conhecido como segredo messiânico. Na perspectiva do segredo devem ser entendidos: os relatos de milagres e de exorcismos – com suas enigmáticas ordens de silêncio –; as parábolas, cujo sentido, a princípio, permanece oculto; e a própria estrutura do Evangelho. Como vimos, Marcos organiza o texto mediante duas grandes inclusões           – sugeridas já no começo do Evangelho (cf. Mc 1,1) – que são delimitadas através da confissão de fé petrina (cf. Mc 8,29) e da proclamação do centurião romano (cf. Mc 15,39). Aliás, com base neste esquema bipartido, Marcos configura a proposta fundamental do seu Evangelho, que é o seguimento de Jesus no caminho, isto é, o discipulado. 
Como podemos observar, tudo no Segundo Evangelho depende do segredo messiânico, de modo que não é possível aprofundar na teologia marcana sem estudá-lo cuidadosamente. Isso justifica e exige que lhe dediquemos o próximo artigo.

NOTAS

1 * Nasceu na Província de Buenos Aires, Argentina; é religioso da Congregação do Sagrado Coração de Jesus de Betharram, bacharel em Direito (2001) pela Universidade de Buenos Aires (Argentina) e bacharel em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (Belo Horizonte, 2014). 
2 ** Orientadora da pesquisa, licenciada em Filosofia, bacharel em Teologia (FAJE), mestre em Teologia Bíblica (FAJE) e doutora em Catequética (FAJE), professora do ISTA e do Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa (PUC-Minas).
3 VAI PARA TRÁS DE MIM: A questão messiânica no Evangelho de Marcos.
4 TAL MESTRE, TAL DISCÍPULO: O discipulado no Evangelho de Marcos.
5 Isto não significa excluir da tradição judaica a possibilidade de um messias sofredor, até porque Marcos se inspira claramente nos cânticos (judaicos) do servo do Segundo Isaías. No entanto, os destinatários de Marcos parecem imbuídos de uma noção messiânica triunfalista – sem cruz –, e é precisamente essa concepção deturpada o objeto da preocupação marcana e o alvo da sua catequese (cf. Mc 8,34-38).
6 No próximo artigo explicitaremos as funções do segredo messiânico na teologia marcana, a saber: função catequético-pedagógica e função lógico-histórica.
7 Nos livros canônicos, o termo “evangelho” é introduzido por Paulo, que o utiliza sessenta vezes, embora seja Marcos quem inaugura o Evangelho como gênero, dando um “rosto” concreto ao Cristo das Cartas Paulinas.
8 Peter Head é a favor da fórmula mais curta. (HEAD, Peter. Text-Critical Study of Mark 1.1 `The beginning of the Gospel of Jesus Christ´. New Testament Studies, Cambridge, v. 37, p. 621-629, 1991).
9 A simbologia do caminho é particularmente rica em significados, tanto bíblicos quanto antropológicos. Ela remete à experiência de Israel, povo de origem nômade (cf. Gn 12,1), caminhante e protagonista de uma longa peregrinação espiritual, a da Torá, que é, fundamentalmente, caminho sempre aberto à comunhão com Deus. A itinerância é também a experiência da Igreja, originalmente conhecida como “Caminho” (cf. At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14; 24,22), e da humanidade toda, que percorre o caminho da vida ao longo de sua história. (KONINGS, 1994, p. 7).
10 O trecho de 16,9-20, embora faça parte das Escrituras inspiradas, falta nos manuscritos mais antigos, como o Vaticano e o Sinaítico. Contudo, já no séc. II, era conhecido de Taciano e de Santo Ireneu, e aparece na maioria dos manuscritos gregos e em outros. (Nota da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973 e MATOS, 1997, p. 110).
11 Na verdade, todo o Evangelho de Marcos (e não só os oito versículos de Mc 16,1-8), enquanto relato de fé nascido da experiência pascal, deve ser lido à luz do Ressuscitado. Em outras palavras, “toda a atividade de Jesus é projetada como a presença entre nós do Filho de Deus, que a morte não pode engolir, aquele Filho em que Deus se compraz; e portanto, aquele que vive”. (MARTINI, 1997, p. 94).


REFERÊNCIAS

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BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990.

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973.

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MARTINI, Carlos Maria. O itinerário espiritual dos Doze. São Paulo: Loyola, 1997.

MATOS, Paulo Félix de. Títulos de Jesus no Evangelho de Marcos. Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 110-116, 1997.

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TILLESSE, Caetano Minette de. Evangelho segundo Marcos: nova tradução estruturada, análise estrutural e teológica. Fortaleza: Nova Jerusalém, 1992.