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18. A teologia como sapientia fidei: Interfaces entre teologia e espiritualidade

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06.05.2015 | 24 minutos de leitura
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Acadêmicos
18. A teologia como sapientia fidei: Interfaces entre teologia e espiritualidade
Paulo Sérgio Carrara  
Solange Maria do Carmo  
Resumo 
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre as interfaces entre teologia e espiritualidade. Sabe-se que a teologia escolástica se tornou muito especulativa e racional, relegando a espiritualidade à piedade popular e suas devoções. Teólogos modernos redescobrem a dimensão existencial da teologia, uma vez que, enquanto ciência da revelação, ela busca uma linguagem racional coerente para a experiência cristã de Deus. A teologia conjuga fé e razão; a experiência de fé, no entanto, é anterior à reflexão racional que, em última instância, está a serviço da experiência, para iluminá-la e torná-la mais fiel à experiência fundamental da revelação de Jesus Cristo, que se encontra nas Escrituras. Nesse sentido, a espiritualidade emerge como aspecto intrínseco à teologia. A teologia, se permanecer fiel à sua missão, se expressará existencialmente como sapientia fidei. Este artigo trata, portanto, da relação evidente, mas muitas vezes esquecida, entre teologia (discurso racional) e espiritualidade (experiência cristã de Deus), mostrando que a teologia só cumpre o seu papel de serviço à Igreja se conduz o crente à experiência do mistério indizível de Deus que se aproximou de nós em Jesus Cristo. 

Introdução 
Parece estranho buscar as interfaces entre teologia e espiritualidade. Haveria teologia sem espiritualidade ou espiritualidade sem teologia? Não são realidades que se implicam mutuamente? Embora paradoxal, o percurso da teologia no Ocidente se caracteriza por um distanciamento gradual da espiritualidade. De fato, nos primórdios da Igreja não era assim. Teologia e espiritualidade caminhavam juntas. Os Padres da Igreja eram teólogos, espirituais e pastores. Sua teologia, mesmo quando bastante especulativa, sobretudo quando iluminada pela filosofia grega, apresentava-se sempre como mistagogia. A teologia não tinha função em si mesma; sua validade se encontrava na sua tarefa de introduzir o crente no mistério de Deus. Era impossível para os primeiros pensadores da fé cristã fazer teologia fora da perspectiva da experiência pessoal de Deus, cujo mistério só se torna acessível quando buscado na contemplação e na oração (COSTA, 2006, p. 328). A razão, portanto, na perspectiva dos Santos Padres, deveria se deixar iluminar pelo Espírito, o que gerou uma teologia que é, antes de tudo, sapientia fidei. 
A Idade Média, por sua vez, insistiu na dimensão epistemológica do amor. Os teólogos dessa época entenderam que o conhecimento verdadeiro de Deus brota do amor, exercitado na contemplação através da Palavra, a lectio divina, que conforma o coração humano à vontade de Deus. A teologia medieval, nos seus primórdios, era essencialmente simbólica, alegórica, prática e existencial. Assim como a teologia patrística, o estudo de Deus proposto pela teologia medieval visa à santidade pela aquisição da sabedoria. Entretanto, a Idade Média se tornou, mais tarde, palco do divórcio entre teologia e espiritualidade. A lógica aristotélica , ao chegar ao Ocidente, provocou uma virada epistemológica, introduzindo na teologia o silogismo. A preocupação maior dos pensadores cristãos recaiu sobre a necessidade de explicar as “verdades objetivas” da fé de modo metodológico e conciso. O método trouxe ganhos para a teologia, tornando-a mais precisa e clara, mas esse investimento na precisão teológica fez que a espiritualidade fosse considerada como aspecto subjetivo da fé, centrado nas intuições e reflexões piedosas, deixando-a à margem da teologia acadêmica, que busca dar as “razões racionais” da fé. Desde então, a teologia fragmentou-se em várias disciplinas e a espiritualidade ficou relegada à piedade popular. Uma coisa era fazer teologia, pensar a fé teologicamente, explicitar sua lógica e buscar maior precisão nas formulações dogmáticas da fé. Esta tornou-se uma tarefa das academias. Outra bem diferente era viver a fé, cultivar a amizade com Deus, fazer a experiência do mistério professado. Esta era tarefa da espiritualidade ou da mística cristã. Um abismo se instalou entre estas duas realidades: teologia e espiritualidade. Foi no século XX que a espiritualidade começou a despontar novamente, não mais como característica da piedade cristã, mas também como fundamento das razões da fé. Desde então, ela ganhou status de disciplina teológica e ainda hoje busca consolidar seu lugar ao sol no quadro da formação teológica acadêmica. 
Ainda bem que, atualmente, a nova gramática existencial gerada pela pós modernidade favorece a redescoberta da espiritualidade. No horizonte do ressurgimento do religioso , a espiritualidade cristã tornou-se uma obrigação para todo batizado. A desilusão pós-moderna com a razão absoluta e a falência de seus ideais utópicos fizeram emergir um novo interesse pela espiritualidade, não só como disciplina teológica, mas especialmente entendida como marca registrada da fé cristã. Não são poucos os teólogos que insistem na necessária superação do divórcio entre teologia e espiritualidade, mostrando como esta separação foi funesta para a fé cristã. Clodovis Boff (1998, p. 321-322), por exemplo, denuncia um déficit espiritual por parte da Igreja que, às vezes, parece ocupar-se mais de problemas burocráticos e administrativos, assumindo um discurso de cunho doutrinário, moralista e disciplinado que de favorecer o real encontro do crente com Deus por meio da experiência cristã. Segundo o teólogo, a preocupação mística ou espiritual não é o forte da instituição. Para Martin Velasco (1993, p. 273), a situação na qual o cristão hoje se encontra impõe, como primeira exigência, a personalização do cristianismo, na qual, aliás, “insistem todos os diagnósticos autorizados sobre o cristianismo na época moderna”. Mas esta percepção não é de hoje. Rahner (1968, p. 20), no século passado, já afirmara: “A coisa primeira e essencial que deve caracterizar a piedade de amanhã é a relação pessoal e imediata com Deus, o que constitui a perene essência da piedade cristã”. O grande teólogo se mostra convencido da necessidade de urgente passagem de um cristianismo recebido como tradição cultural e feito de convicções unânimes a um cristianismo pessoalmente assumido a partir de decisão subjetiva e de convicções pessoais; passagem que não se faz sem o que ele chama de experiência cristã. Tornou-se conhecida sua categórica profecia: “O cristão de amanhã ou será um místico, alguém que experimentou alguma coisa, ou deixará de ser cristão” (RAHNER, 1968, p. 24). Isto quer dizer que será exigida do cristão uma opção por Jesus Cristo alicerçada na experiência pessoal, ou seja, na espiritualidade. 
Teólogos atuais fazem eco a Rahner, cuja intuição parece confirmar-se cada vez mais . Constata-se, enfim, certo consenso em torno à real necessidade de um cristianismo enraizado na experiência pessoal, subjetivamente assumido, mais espiritual e menos racionalista. Aliás, ao longo da história, o cristianismo sempre se renovou a partir de cristãos que fizeram uma profunda experiência de Deus . Cabe, pois, à teologia, como tarefa, reencontrar-se com a espiritualidade, para que se torne menos apologética e mais iniciática e assuma a urgente missão de comunicar a experiência cristã de Deus4. Este artigo investiga as interfaces entre teologia e espiritualidade, evidenciando suas especificidades e pontos comuns. Busca mostrar, ainda, que uma boa teologia será sempre espiritual. Chama a atenção, por outro lado, para os riscos de uma espiritualidade sem fundamentação teológica, que não teria certamente sustentação suficiente para enfrentar as intempéries da vida. 

1 Elementos da espiritualidade cristã nos Sinópticos 
Nos Sinópticos, a espiritualidade cristã se mostra sob a forma do seguimento de Jesus, que anuncia o Reino de Deus. “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Jesus inicia sua vida pública com o anúncio da chegada próxima do Reino. O Reino acontece por pura gratuidade de Deus, e o homem nada faz para alcançá-lo, apenas o acolhe como graça e misericórdia. Ao acolher o Reino, o homem entra num processo de discipulado, de caminhada, de seguimento de Jesus, o mestre. E todos são chamados a entrar na sua dinâmica, ainda que o anúncio do Reino seja primeiramente endereçado aos pobres (cf. Mc 8,34-38). Nos Sinópticos, observamos que todos os que fazem seu encontro com Jesus e o acolhem sofrem um processo de conversão e se tornam seguidores dele, entrando na dinâmica do discipulado. Como consequência, passam a experimentar uma nova relação com Deus, a quem chamam de Pai, como ensina Jesus. Para Jesus, Deus é Pai e assim deve ser invocado (cf. Mt 6,9; 7,7-11; 23,9; Mc 11,25; Lc 12,32). Por outro lado, os seguidores de Jesus assumem em suas vidas os valores do Reino: a misericórdia, a justiça, a gratuidade... A adesão a Jesus cria uma fraternidade que expressa o Reino que ele veio inaugurar. No abraço do Pai todos se tornam irmãos, e um compromisso ético surge como imperativo desta relação fraternal. Os seguidores de Jesus se tornam irmãos uns dos outros porque o Pai os irmana. Não se trata de uma fraternidade escolhida, direcionada a quem o coração se afeiçoa. Ela diz respeito a um laço que extrapola as escolhas do coração. Os seguidores de Jesus não se escolhem para serem irmãos; tornam-se irmãos porque Deus é Pai de todos. O amor do Pai, capaz de amar justos e injustos e de compadecer-se de bons e maus (cf. Mt 5,43-48), leva os seguidores de Jesus à exigência ética de amar até seus inimigos. A espiritualidade cristã, portanto, segundo os Sinópticos, implica a acolhida do Reino que Jesus anuncia, a firme decisão de segui-lo, manifestada na fé e na conversão, e uma nova relação com Deus e os outros, pois nele todos foram feitos irmãos. 

2 A Espiritualidade cristã segundo Paulo e João 
Na sua acepção mais comum, define-se espiritualidade como “a vida sob a ação do Espírito”. Paulo afirma que alguém se torna espiritual quando está sob o influxo do Espírito Santo (cf. 1Cor 2,14-15). O cristão está em Cristo, e Paulo utiliza com frequência a expressão ser em Cristo (cf. 1Cor 1,2.30; Rm 8,1; Gl 3,28), mas o apóstolo constata que no cristão também habita o Espírito. “Enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho” (Gl 4,6). Outros textos afirmam a presença do Espírito no cristão (cf. Rm 5,5; 2Cor 1,22). O corpo é uma morada de Deus porque nele habita o Espírito Santo. “Não sabíeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus?” (1Cor 6,19). O cristão se torna espiritual porque leva uma vida segundo o Espírito. Espiritual não se opõe a material, mas se refere a uma nova maneira de viver gerada pela ação de Deus na pessoa através do Espírito Santo, dom primordial de Jesus Ressuscitado (cf. Jo 20,22-23). De fato, a presença do Espírito revela o aspecto crucial da espiritualidade cristã. Faz brotar uma forma unificadora de entender toda a vida: Deus, o homem, a morte, o universo, a história, o amor. Sob esse ângulo, a espiritualidade se aproxima da “orientação fundamental”, termo mais específico da teologia moral. Diz respeito à estruturação da existência a partir da fé em Jesus Cristo, que brota da ação do Espírito. A espiritualidade é própria da identidade cristã. É fruto do mergulho em Cristo, acontecido por graça do Espírito nas circunstâncias concretas da vida. Por graça, o cristão se torna existencialmente aquilo que é chamado a ser pelo batismo: um homem novo em Cristo. 
A identidade cristã emerge do mergulho do cristão no mistério pascal de Cristo, que o introduz no próprio mistério da Trindade. O cristão entra na vida trinitária enquanto filho do Pai, por graça do Espírito que o faz participar da filiação de Jesus. O teólogo Ruiz de La Peña (1991, p. 383) afirma que “a teologia da graça alcança sua última e mais pura essencialidade na categoria filiação natural por participação”. A grande novidade da vida cristã se encontra na participação do cristão na morte e ressurreição de Jesus pelo batismo. Tal participação realiza o chamado intrínseco de viver como filho de Deus. Toda criação carrega uma inegável dimensão crística. Ao nascer, o ser humano nasce chamado à filiação em Cristo, o que significa que, na atual ordem histórico-salvífica, todo ser humano traz em si a exigência intrínseca, mas gratuita, de chegar à filiação. O pecado, enquanto existencial negativo deixado pelo pecado original, somado ao pecado social e ratificado ainda pelos pecados pessoais, impede a realização plena desse dom. Mas o chamado de Deus a uma existência nele em Cristo não deixa de marcar a pessoa; Cristo chega à vida de cada ser humano antes do batismo, mas o assumir-se como filho realiza-se no momento do batismo, como um dom de recriação . A filiação divina, latente em todo ser humano, torna-se manifesta no momento do batismo pelo dom da participação no mistério pascal de Cristo, o Filho. O batismo evidencia o perdão dos pecados pela inserção em Cristo, mas a salvação ultrapassa o perdão dos pecados, pois realiza o plano divino de elevar o ser humano à comunhão com a própria Santíssima Trindade por meio de Cristo, o Filho feito homem. Desde sua criação, o ser humano é chamado à comunhão com Deus em Cristo. Aqui se encontra sua mais autêntica vocação. “Deus não só nos salvou por meio de Cristo, mas esta salvação consiste na comunhão com ele, na inserção nele mesmo e, mediante essa, no nosso acesso ao Pai como filhos em Jesus” (LADARIA, 2001, p. 231). 
A nova realidade criada pelo batismo extrapola toda realidade imaginada e fica difícil tematizá-la. Paulo utiliza o termo adoção (hyiothesía), mas este termo não diz toda a novidade que certamente o apóstolo quer expressar (cf. Gl 4,5; Rm8,15.23; 9,4; Ef 1,5). Para ele, a palavra adoção não se encerra no seu sentido jurídico, como se a filiação divina fosse fruto de um contrato e não algo natural. Por obra do Espírito, os cristãos são realmente constituídos filhos de Deus (cf. Rm 8,14- 17). Trata-se, antes, de uma filiação real, porque os homens em Cristo se tornam verdadeiros filhos de Deus. O Espírito não adota os homens; ele os filializa, fazendo-os participar da filiação natural de Jesus (DURRWELL, 1982, p. 180). 
Em João, há também diversas expressões que traduzem a vida nova do cristão. Para o evangelista, a filiação é mais que adoção. A ação do Espírito se revela criadora; o cristão se torna filho mediante um novo nascimento. “Ele nasce da água e do Espírito (Jo 3,5): da água como de um ventre materno; do Espírito do qual a água é símbolo” (DURRWELL, 1985, p. 86). O evangelista opõe duas realidades, uma do alto, verdadeira, e outra de baixo, sombria e passageira; o nascimento do alto revela-se o verdadeiro nascimento (cf. Jo 3,3). A Primeira Carta de João apresenta a filiação do cristão com profundo realismo: “Vede que manifestação de amor nos deu o Pai, sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos!” (1Jo 3,1). Com a expressão joanina nascidos de Deus (cf. Jo 1,12-13; 3,1-11; 1Jo 2,29–3,10; 4,7; 5,1; 5,18) ganha mais realismo a relação do homem com Deus do que com o termo paulino adoção (DURRWELL, 1990, p. 75). Para João, os cristãos são de fato filhos de Deus, pois são dele nascidos. Para não deixar equívocos, o evangelista diferencia a filiação de Jesus, a quem chama de hyiós, da filiação dos fiéis, chamados de tekna. Jesus é o Filho unigênito (cf. Jo3,16.18; 1Jo 4,9), os fiéis nascem de Deus, em Cristo (GAMARRA, 2000, p. 71). 
Para João, todos os que são nascidos de Deus são também morada dele. O evangelista apresenta uma variedade de textos sobre a presença da Trindade no cristão. Há textos que falam de uma presença recíproca de Jesus (cf. Jo 6,56; 14,20; 15,4) e do Pai (cf. 1Jo 3,24); textos sobre a presença de Jesus e do Pai sem reciprocidade (Jo 15,6-7; 17,23; 1Jo 27; 3,6; 1Jo 2,5; 3,24; 4,4). Também são muitos os textos joaninos com o verbo conhecer, que se refere a um conhecimento íntimo, privilegiado, experiencial e afetivo das realidades divinas. Tal conhecimento encontra seu horizonte de possibilidade na comunhão com as pessoas da Trindade (cf. Jo 10,14; 14,7; 1Jo 2,3-4; 13-14; 4,6.7-8), pois, para João, assim como há comunhão entre Jesus e o Pai, há também comunhão entre os cristãos e a Trindade (cf. Jo 17,20-23). Aparecem em abundância, na teologia joanina, fórmulas que expressam a comunhão dos fiéis com as pessoas divinas: possuir o Pai (cf. 1Jo 2,23), ter o Filho (cf.1Jo 5,12), possuir o Pai e o Filho (cf. 2Jo 2,9). 
E não faltam textos sobre a presença do Espírito, descritas com expressões semelhantes (cf. Jo 15,17; 1Jo 2,20.27; 3,24; 4,13). Além disso, o termo morada, tão típico do vocabulário joanino, diz respeito a essa presença do Espírito nas pessoas que acolhem o Filho. Embora se aproxime do verbo permanecer – também muito presente na teologia do Quarto Evangelho – a expressão morada indica ainda maior estabilidade: “Se alguém me ama, guardará minha palavra e meu Pai o amará e nele estabeleceremos morada” (Jo 14,23). Essas são expressões importantes que João utiliza para falar sobre a comunhão do cristão com as pessoas divinas, portanto sobre a dimensão trinitária da existência cristã. A essa rica panorâmica colhida dos escritos joaninos, somam-se os textos de Paulo, que afirmam que os cristãos são templo de Deus e do Espírito (cf. 1Cor 3,16-17; 6,9; 2Cor 6,16). O Espírito de Deus habita nos cristãos (cf. Rom 8, 9.11) (GAMARRA, 2000. p 60-62). Estes textos levam a uma conclusão óbvia, mas que vale a pena repetir: Deus está no cristão, ele o habita, faz nele sua morada. E o faz segundo sua identidade última, ou seja, trinitariamente. Pai, Filho e Espírito Santo estão no cristão. Essa é uma especificidade do cristianismo. A comunhão com a Trindade se impõe como marca registrada da fé cristã, ou seja, a espiritualidade é intrínseca à vida cristã e não uma possibilidade a mais, um plus, que o cristão pode acolher ou não. Ser cristão é viver essa comunhão trinitária; é cultivar a presença do Deus uno e trino no mais íntimo de si por meio do mergulho no mistério pascal. 
Paulo e João, ainda mais que os Sinópticos, acentuam a participação do cristão na vida do Ressuscitado. O mistério pascal se converte na característica mais específica da espiritualidade cristã. O Espírito Santo, por meio do batismo, esculpe as feições de Cristo no cristão. Cria, pois, uma comunhão que toca o nível ontológico. Configurado a Cristo, o cristão se torna filho do mesmo Pai de Jesus. A espiritualidade se concretiza como experiência de comunhão com Cristo. Uma experiência vertical que repercute na horizontalidade da vida como fraternidade. Através da fraternidade, o cristão expressa Cristo que lhe foi impresso pelo batismo. Toda a exortação paulina segue esta lógica: o Cristo impresso seja expresso. O fazer característico da espiritualidade brota, pois, do ser, como reza o adágio latino: agere sequitur esse. A tarefa do cristão ao longo de sua vida se resume na atuação do batismo. Ele é chamado a se tornar o que é com todas as fibras do seu ser. A espiritualidade evidencia a dimensão existencial da vocação cristã. É pôr em prática o que sé é e o que se crê. 

3 Teologia e Espiritualidade 
Recentemente muitos teólogos voltaram a acentuar a dimensão espiritual da teologia. H. Urs von Balthasar (1964, p. 270) buscou manter uma estreita relação entre teologia e espiritualidade, definida por ele como o aspecto subjetivo da dogmática. Para Ratzinger (2008, p. 48), a teologia “vive do paradoxo de que existe uma ligação entre fé e ciência”. Enquanto supõe a fé, o ponto de partida da pesquisa teológica se encontra na experiência do próprio mistério que ela busca compreender e comunicar. Ratzinger (2008, p. 49) afirma uma ligação estreita entre teologia e santidade, não por pietismo barato ou palavrório sentimental, mas por causa da lógica inerente à própria teologia que nasce da experiência de fé. Como dizia Lutero, sola experientia facit theologum. Outros corroboram a opinião de Ratzinger, apontando a fé como o início da teologia, uma vez que a teologia constrói seu discurso crítico e sistemático guiada pela fé. Para fazer teologia cristã, o teólogo precisa ser fiel e racional ao mesmo tempo, ou seja, antes de ensinar sobre Deus, ele próprio deve ser ensinado por ele (O’ COLLINS, 1991, p. 15). 
Também Rahner esteve sempre atento à experiência cristã de Deus. Seu trabalho teológico nasce do desejo de construir uma teologia que corresponda aos exercícios espirituais de Santo Inácio, que buscam proporcionar uma experiência com características da imediatez de Deus. Seu ponto de partida é claro: o ser humano faz uma experiência imediata de Deus. A convicção básica de Inácio segundo a qual o ser humano pode encontrar-se com Deus no cotidiano de sua vida desperta no teólogo alemão um grande apreço pela experiência de Deus que influenciará sua teologia (VORGRIMLER, 2006, p. 40). Rahner busca resgatar o elemento místico da experiência de Deus, uma experiência do não experimentável. Tal experiência se aproxima da decisão existencial de se entregar a Deus, como o fundamento último da própria vida, algo que se dá na estrutura fundamental do sujeito que crê. O ser humano é aberto a esta experiência, tende para ela. Nosso pertencer a Deus tem a ver com o nosso interior, com o centro da nossa existência. Tal interioridade permeia nossa vida, pois o ser humano está sempre, ontologicamente, orientado para Deus, para o Mistério Santo, ainda que disso não seja consciente. A essência da teologia seria a “reductio in misterium”, uma vez que as verdades da fé se reduzem à unidade do único Mistério indizível, Deus em si mesmo em sua relação conosco. O que interessa na revelação é a autocomunicação de Deus; ela é um evento que acontece na vida humana. Deus se autocomunica, e essa autocomunicação se dá no nível da experiência. A pessoa é pouco a pouco introduzida no Mistério da fé cristã, pois Deus mesmo se comunica a ela. Trata-se de um processo de iniciação que se dá na experiência concreta da vida: o Deus inacessível e transcendente se dá a conhecer no coração humano. A teologia tem, pois, um caráter mistagógico. Seu telos não se encontra no estudo frio das verdades da fé desencarnadas da vida; dá-se na imersão do crente no Mistério insondável que chamamos Deus, Mistério ao qual ele se entrega como centro unificador de sua existência (TABORDA, 2005, p. 77). O discurso da teologia jorra do mistério inefável de Deus que a ultrapassa enormemente. A teologia é linguagem racional para a experiência do encontro afetivo com Deus na fé. A teologia busca entender e tematizar esse encontro com Deus, que envolve toda a vida humana e a transforma. O Deus que se autocomunica na espiritualidade é o sujeito da ação desse encontro. Na teologia ele se torna objeto de estudo e pesquisa, mas sempre na sua alteridade inesgotável e não como um objeto qualquer que podemos manipular. A ação teológica – que a princípio pertence ao crente –, no fundo, é ação do próprio Deus que se dá a conhecer num encontro pessoal com ele. O exercício teológico é, para o teólogo alemão, a experiência de Deus buscando se entender racionalmente. 
Também para Durrwell (1981, p. 11) “a teologia é a luz da fé buscando, com a ajuda do fiel, estender-se sobre o domínio da razão, para que o homem se torne crente com todo o seu ser. Ela é um apostolado, cuja missão é interior: ela evangeliza a razão, levando-a a acolher, também ela, o mistério já presente e conhecido”. Nesse sentido, a teologia ocupa um lugar modesto diante da espiritualidade que se traduz na experiência dos fiéis, cuja fé confunde, às vezes, os mais doutos. Ela não quer decifrar o mistério de Deus; ao contrário, imita o respeito maravilhado dos discípulos quando o Ressuscitado se lhes manifesta perto do lago. “Nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe: quem és tu?, porque sabiam que era o Senhor” (Jo 21,12). Embora a teologia se defina como racionalidade da fé, as evidências racionais encontradas por aquele que as buscam jamais o dispensam do dever de crer. A teologia não reserva o encontro com Deus para depois do estudo racional e apurado sobre ele. Ela nasce de um encontro com o Mistério do Deus Trino. Um encontro que antecede a reflexão e a alimenta. A teologia vem depois da experiência de Deus. Quando o cristão faz a experiência da entrega gratuita de Deus à humanidade, ele sente necessidade de dar as razões de sua entrega a ele. O fazer teológico nasce, portanto, de uma resposta a Deus na fé, sem a qual a teologia perderia todo seu sentido. 
Muitos são os teólogos que defendem essa estreita relação entre experiência cristã de Deus e teologia, ou seja, entre a espiritualidade e o fazer teológico. Ratzinger (2008, p. 49-50), por exemplo, afirma que “a racionalidade pura e simples não basta para dar origem a uma grande teologia cristã”. Para ele, a conversão constitui a primeira exigência da pesquisa teológica. Como Durrwell (1981, p. 11), ele entende que fazer teologia não é buscar a veracidade do que o Senhor diz. É antes de tudo crer no que diz o Senhor e experimentar sua presença na própria vida. A indagação vem depois; ela é, na realidade, uma oração: Senhor, ajuda-nos a compreender melhor o que tu nos dizes. O trabalho do teólogo se resume em debruçar-se racionalmente sobre o que o Senhor diz, para que a mensagem da fé transpareça toda sua razoabilidade. Fazer teologia não é buscar provas racionais da fé, mas sim explicitar a razoabilidade da Palavra do Senhor, pela qual Deus se comunica. 
Nesta perspectiva, Villepelet (2009) traz contribuição importante. Para o teólogo francês, a teologia não diz respeito em primeiro lugar ao conhecimento de Deus, mas à possibilidade de fazer o mergulho na experiência cristã. Villepelet sugere um caminho de fé bem diferente do percorrido atualmente na prática catequética. Para ele, a experiência cristã vai da fides qua creditur para a fides qua creditur (a fé com a qual se crê, ou seja, o ato de crer) por mediação da fides quae creditur (a fé na qual se crê, ou seja, o conteúdo da fé ou o patrimônio teológico da Igreja). A fides quae, apesar de toda sua objetividade, ganha um novo caráter. Ela não existe mais em função de dar as razões da fé, apesar de isto continuar sendo importante. A teologia se põe a serviço da fides qua; nela o cristão encontra a presença do Deus de Jesus Cristo que se autocomunica em seu Filho. Daí a importância que o autor atribui ao mistério pascal, apontado por ele como centro da teologia cristã. Essa perspectiva liberta a fides quae (e a teologia, é claro) da clausura da intelectualidade. Ela não é nem uma doutrina, nem uma mensagem, mas um conjunto de significações na qual o crente é mergulhado e que possibilita o seu encontro pessoal com Deus. Fica evidente, neste caso, o caráter espiritual da fides quae. Ela não é, primeiramente, objeto de estudo pois seu centro é Deus que não pode ser objetivado. Deus é sempre sujeito da ação, inclusive do fazer teologia. Ele se revela, se autocomunica, se dá a conhecer. Para Villepelet, tomar a fides quae como mediação não é uma novidade; esta é sua característica mais antiga, já comprovada nos primórdios da Igreja. 
A teologia é, portanto, espiritual na sua origem, o que, em nenhuma hipótese, a dispensa do esforço e do cansaço da pesquisa, ao contrário, obriga-a a tal. Nesse sentido, seria correto afirmar que toda e qualquer teologia parte da espiritualidade, mas não se reduz a ela. A teologia se destina, em última instância, à espiritualidade; sua meta é iluminar a experiência de fé dos crentes para que esta se torne ainda mais consistente e sólida por meio da reflexão. Se por um lado a teologia se revela espiritual na sua origem, pois se faz guiada pelo Espírito, que imerge o cristão no mistério do Deus Trino, por outro ela se mostra espiritual também na sua finalidade, exatamente por estar a serviço dos fiéis e do seu encontro com Deus. 
Ao buscar a inteligibilidade do mistério, a teologia presta um grande serviço aos que creem, pois os ajuda a compreender melhor sua experiência e a fundamentá-la. O exercício teológico se caracteriza como “um esforço de fé, ou seja, de acolhida do mistério, para que a razão se dê a alegria de ser crente” (DURRWELL, 1981, p. 34). O conhecimento teológico parte da fé; tem seu princípio orientador nela. “O teólogo pode conhecer, porque ele acredita; a fé faz parte do método de pesquisa. O pensamento é sustentado pela fé e se torna sensível ao mistério. A fé torna o teólogo intuitivo na sua pesquisa” (DURRWELL, 1997, p. 250-251). O teólogo não abandona a intuição por seguir os métodos científicos, nem dispensa a iluminação do Espírito Santo. Mantendo suas crenças básicas, não se livra do esforço de ter que crer, pois o próprio método teológico o exige. 
O pressuposto da teologia cristã parece claro: o Deus Trino, cuja revelação plena se dá na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus. As convicções que os teólogos irão perquirir brotam da experiência de fé da comunidade que crê. A pesquisa teológica visa a ajudar os crentes a interpretar, explicar e descrever sua fé. O que os cristãos creem (a fides quae) se revela o núcleo central da investigação teológica (O’COLLINS, 1991 p. 20). E eles o farão em diálogo com as ciências modernas, que mudam o modo de o ser humano se compreender; isso obriga a teologia a um contínuo esforço hermenêutico para traduzir, para os tempos de hoje, as verdades de fé. Não que tais verdades mudem; muda, porém, o modo de interpretá-las e dizê-las. Se o cristianismo não tivesse sido explicado com as categorias gregas quando se confrontou com o helenismo, provavelmente não teria sobrevivido. Apresentar a verdade cristã como o cumprimento do que pretendia a filosofia grega marcou a preocupação dos primeiros teólogos, mas nem por isso a experiência primordial da fé ficou desconsiderada. Amor e racionalidade guiaram a teologia nascente. 
A experiência de fé precede, pois, a pesquisa teológica cujo objetivo é dar uma linguagem explicativa para esta experiência. Por ser espiritual, no sentido aqui descrito, a teologia não se choca, no entanto, com a racionalidade científica; aliás, seria bem absurdo se o fizesse. Conjugar fé e ciência será seu desafio perene. O discurso racional não faz do cristianismo um gnosticismo, como se o conhecimento de Deus que o cristianismo propõe fosse algo intelectual, desvinculado da experiência do encontro com o Ressuscitado. Numa situação limite, poder-se-ia afirmar que uma comunidade ágrafa, uma Igreja de iletrados, estaria em condições de transmitir o essencial da experiência cristã através do amor. Mas a teologia, enquanto reflexão metodológica e científica sobre a revelação, instaura um fecundo diálogo crítico com as cosmovisões que se lhe apresentam e assumem a importantíssima tarefa de mostrar a plausibilidade do cristianismo (DE LA PEÑA, 1988, p. 217). 
Hoje em dia se faz urgente, para a teologia, a tarefa de evidenciar a ligação estreita entre fé e razão, fé e ciência . Os riscos de uma interpretação meramente subjetiva do mistério cristão são enormes. A experiência cristã conta sempre com critérios objetivos de discernimento. Se por um lado o mais importante é o encontro amoroso com o Senhor, por outro a revelação, enquanto Palavra de Deus a nós dirigida, conta com inegável objetividade que a experiência não negligencia. Santa Teresa de Ávila (2010, p. 201), que experimentou o mistério cristão num nível muito profundo, afirmou: “O que tenho visto e sabido por experiência é que, nestas coisas, só fica a certeza de que procedem de Deus, na medida em que são conformes à Sagrada Escritura”. A doutora busca na objetividade da Sagrada Escritura confirmação de sua rica experiência. Sua subjetividade não inventa Deus, mas o reconhece e a ele se submete no conhecimento da revelação. Por outro lado, a beleza e grandeza do mistério ultrapassa tudo o que se diz sobre ele: “se o Senhor não me houvesse instruído, pouco teria aprendido com os livros. Nada entendia até que Sua Majestade me fez compreender por experiência” (SANTA TERESA DE JESUS, 2010, p. 171). Não se trata de um conhecimento recebido por via de informação, mas de vivência profunda. Em Santa Teresa encontramos um raro equilíbrio entre fé – experiência – e razão – conhecimento. Aqui há dois extremos graves a evitar: um racionalismo que queira dispensar os cristãos de ter que crer e um experimentalismo que desobrigue a fé de mostrar a razoabilidade do conteúdo da revelação. Por outro lado, quem crê não precisa temer a ciência, afinal, como afirma o Papa Francisco na Lumen Fidei, 
 
olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé 
desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre a ultrapassa. Convidando-o a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência (LF 34). 

O perigo maior em nossos dias parece ser o do experimentalismo, uma vez que o homem pós-moderno valoriza sobretudo o conhecimento estético, feito de sensações e sentimentos. Nesse caso a fé se distancia da razão. Ele corre, portanto, o sério risco de definir Deus a partir de sua subjetividade, criando para si um ídolo muito diferente do Deus de Jesus Cristo, que exige conversão e compromisso com o Reino. 

4 Teologia e oração 
A oração se caracteriza como fenômeno central de toda religião que postula a existência de um Deus pessoal. Através da oração, o ser humano entra em relação com Deus. Qualquer oração se revela o reconhecimento da dependência de um Outro que nos transcende. É como se, na oração, o orante se dissesse: “Não sou a origem de mim mesmo; existo referido a um mistério maior do que eu. Não venho de mim, mas de outro. Não sou onipotente sobre mim mesmo; o fundamento da minha existência se encontra na transcendência”. Nesse sentido, mesmo aquele que diz não crer, ao se reconhecer referido a um mistério maior do que ele, está, de algum modo, fazendo oração. 
Os Evangelhos apresentam Jesus como um homem de oração freqüente. Jesus ora sempre, especialmente nas circunstâncias mais importantes de sua vida. Lucas sugere que Jesus vivia em estado permanente de oração (cf. Lc 5,16). E mostra Jesus orando nos momentos decisivos da sua vida: no batismo (cf. Lc 3,21), antes do chamado dos apóstolos (cf. Lc 6,12), antes da profissão de fé de Pedro (cf. Lc 9,18), na transfiguração (cf. Lc 9,28). Além disso, Jesus ora por Pedro, para que seja sustentado no momento da tentação (cf. Lc 22,32). Ora por si mesmo, na sua luta para permanecer fiel à vontade do Pai (cf. Lc 22,39-44); ora na cruz (cf. Lc 23,34) e na hora da morte (cf. Lc 23,46). Os teólogos da espiritualidade são unânimes ao apresentar os momentos fortes da existência de Jesus em que aparece sua oração, não só no Evangelho de Lucas, mas também nos outros Evangelhos (GAMARRA, 2000, p. 158; FURIOLI, 2001, p. 19-20; RUIZ, 1999, p. 236). Uma oração estreitamente ligada à sua missão (BERNARD, 2002, p. 387). 
A oração anima o cotidiano de Jesus. Às vezes, seu dia começa com a oração: “De madrugada, estando ainda escuro, ele levantou-se e retirou-se para um lugar deserto e ali orava” (Mc 1,35). Jesus busca a solidão (cf. Mc 1,35; Mt 14,24; 23,26; Lc 5,16; 9,18); gosta de se retirar para o silêncio da montanha (cf. Mc 14,23; Mc 6,46; Lc 6,12; 9,28); aprecia a serenidade da noite (cf. Mc 1,35; Lc 6,12). E sua oração não se apresenta como um apêndice na sua vida, mas como parte integrante da mesma. Ela não se reduz a um ato ritual, mas diz respeito a um modo de ser e de se pôr em referência ao Pai. A oração de Jesus abarca todo seu existir e ilumina seu atuar. Ele ora em silêncio; permanece em segredo sua intimidade com Deus. O conteúdo aparece apenas indiretamente, na sua maneira de falar de Deus e de anunciar o Reino, pois o importante não é o que ele reza, mas a comunhão que ele cultiva com Deus por meio da oração. 
Na oração, Jesus encontra o sentido mais profundo da sua missão. Ele fomenta sua comunhão com o Pai que o envia. Colocando-se assim na dependência de Deus, o Pai se revela o horizonte último da vida de Jesus e do anúncio do Reino. Sua missão, ele a recebe do Pai e a realiza no poder do Espírito que o Pai envia sobre ele. Exatamente na oração Jesus adere à sua missão. Na intimidade orante, ele se deixa moldar pelo Pai, acolhe sua vontade e adere com todo o seu ser à missão que lhe fora confiada: anunciar a boa nova do Reino a toda criatura. 
Também na oração emerge a identidade última de Jesus: a filiação divina. Jesus chama Deus de Pai em suas orações. Entre elas, uma se mostra muito singular, a que se encontra em Mc 14,36, quando Jesus utiliza o termo aramaico Abba (Pai). “Abba, tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém não o que eu quero, mas o que tu queres”. Jesus invoca a Deus de maneira singular, dizendo Abba. Palavra que expressa intimidade filial. A afirmação segunda a qual Jesus é Filho de Deus nasce da sua oração, observada e teologizada pelos evangelistas. Nesse sentido, a oração de Jesus se revela “o revestimento econômico de sua identidade filial” (TREMBLAY, 2005, p. 132). Na oração Jesus assume sua identidade filial e se apropria de sua missão. Sem uma relação filial com o Pai, sua referência última, sua missão perderia o sentido. 
Os cristãos podem dizer Abba, Pai, participando da oração de Jesus, graças ao Espírito de Cristo que neles habita, como atesta Paulo: “Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba, Pai!” (Rm 8,15). Em Gl 4,6, também graças ao Espírito, o cristão pode dizer Abba, Pai! O cristão participa da relação do Filho com o Pai na sua oração graças ao Espírito que age nele, configurando-o a Cristo. A oração brota da vida segundo o Espírito. É no Espírito que o cristão está em contínua relação com Deus e ora a Deus. A oração cristã se fundamenta no mistério trinitário. 

A novidade da oração cristã está em ser a própria oração de Cristo comunicada aos homens. Cristo nos faz seus membros, vive em nós no seu Espírito precisamente enquanto faz nossa a sua oração e assim nos introduz no mistério da sua relação pessoal com o Pai. A essência teológica da oração cristã é, portanto, entrar em diálogo com Deus Trindade, através da mediação do Cristo. (LAUDAZZI, 1990, p. 1999). 

A teologia vem depois da oração, que estabelece a relação do cristão com Deus. Antes de falar de Deus, o teólogo fala com Deus. Sua experiência de Deus evidenciada pela oração tem a precedência sobre o seu discurso científico sobre a revelação de Deus. Afinal, ao se revelar, Deus comunicou o seu mistério em forma de diálogo com o ser humano. Realmente, do ponto de vista da doutrina da revelação, a oração situa-se no nível da resposta do ser humano a Deus. A Dei Verbum (DV 2), citando vários textos da Sagrada Escritura, afirma que a revelação de Deus nada mais é do que o dom que ele faz de si mesmo ou sua autorrevelação, que faz o homem descobrir o sentido da sua vida e da sua história, à luz do plano salvífico de Deus. Deus se revela essencialmente amigo dos homens e com afabilidade entra em diálogo com eles. A própria história da salvação se fez através de palavras e de gestos que Deus dirigiu aos homens, uma história de amizade, de diálogo permanente, englobando a vida e a história. A autocomunicação de Deus é não só palavra de Deus a ser aprofundada, mas convite ao homem a um diálogo com ele. Nessa perspectiva, a oração se mostra o lugar privilegiado para a realização do diálogo com Deus. Ela se manifesta como acolhida, na fé e obediência, da revelação, instaurando a relação com Deus; nela se acolhe o Deus que se revela e se dá (CASTELLANO, 1993, p. 68-69). 
Clodovis Boff (1999, p. 134) tem razão, ao afirmar que “a teologia é originariamente oração a Deus e proclamação de Deus. Sua natureza nasciva e íntima é contemplativa. Daí também por que sua função última será sempre servir à adoração” . A teologia terá sempre um caráter apofático, ou seja, se definirá como aproximação ao mistério indizível. Mesmo a teologia mais científica é aproximação ao mistério, mera tentativa de dizer em palavras humanas um mistério que não cabe em nenhuma definição. Segundo Ignazio Sanna, para Rahner, que soube unir teologia e espiritualidade de modo genial, o lugar no qual o objetivo da dimensão espiritual e pastoral da teologia emerge de maneira mais claramente perceptível, inclusive na sua forma linguística, é a oração. Ela nasce na experiência e tende à experiência. Através dela traduzimos na voz do coração as palavras e as reflexões que brotam da inteligência e do pensamento (SANNA, 2004, p. 66). 

Conclusão 
O objetivo deste artigo foi mostrar a intrínseca relação entre espiritualidade e teologia. A Escritura é a experiência da revelação fundamental, ou seja, ela consigna por escrito o que o povo de Israel vivenciou em sua história como intervenção de Deus a seu favor. Deus saiu do seu mistério e estabeleceu um diálogo com o ser humano, convidando-o a se tornar seu interlocutor. Os Salmos exprimem, de maneira profunda, a resposta orante do povo, em suas situações específicas, às interpelações de Deus. O Novo Testamente transmite a experiência que os primeiros discípulos fizeram da plena revelação de Deus em Jesus Cristo. Os autores do NT escrevem para que outros possam fazer a experiência. “O que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida – porque a Vida manifestou-se: nós a vimos e dela damos testemunho e vos anunciamos esta vida eterna” (1Jo 1,1-2). Os cristãos, graças a uma experiência transmitida por inspiração divina, chegam, também eles, “a apalpar com as mãos o Verbo da vida”, ou seja, experimentam Cristo como o fundamento último de sua existência. E expressam-no através de sua oração, reconhecimento reverencial do mistério que os habita e faz ser e que reclama uma resposta existencial totalizante. 
A teologia, pois, reconhece o primado da experiência. Seu esforço é o de compreender racionalmente o mistério de Cristo à luz da revelação. Uma vez que Deus se dirige ao ser humano todo, este deve pôr sua inteligência a serviço do mistério. A experiência humana postula o trabalho da inteligência. Deus criou o ser humano inteligente e espera que ele possa crer também a partir de sua inteligência. Portanto o ser humano, enquanto criatura de Deus, é chamado a compreender Deus com a capacidade da razão, não para explicá-lo como se ele pudesse ser objeto de inquirição da razão científica. A ciência se ocupa do real em suas causas segundas. Deus, fundamento último de tudo que existe, não se reduz a uma causa entre outras a ser explicada de maneira experimental. Mas a razão se curva diante do mistério que experimenta e põe-se à busca de compreensão, para mostrar que sua experiência tem uma razoabilidade própria e, portanto, não é irracional. Afinal, crer no amor como fundamento último da existência não se mostra uma atitude irracional. A experiência, no entanto, tem a primazia, o que a teologia não ignora. Por isto ela parte da experiência para iluminar, ainda mais, esta experiência, tornando-a plausível também à luz da razão. Teologia e espiritualidade se condicionam mutuamente. Sem teologia, a espiritualidade corre o risco de se reduzir a devoções mágico-supersticiosas, por carência de fundamento e objetividade. Afinal, a revelação cristã sustenta uma objetividade quanto ao seu conteúdo, que não está sujeito às variações emocionais de quem a experimenta. A teologia ajuda a espiritualidade a evitar o risco do emocionalismo. Jesus Cristo e o Reino são o critério da espiritualidade cristã, que sempre apontou o amor a Deus a aos irmãos como critério final de discernimento de uma experiência verdadeira de Deus. Mas a teologia sem espiritualidade corre o risco de tornar mera erudição vazia, que não ilumina a vida e nem ajuda o ser humano a experimentar o mistério de Deus nos momentos decisivos de sua vida. 

NOTAS

1 No contexto da teologia cristã, na qual se situa este artigo, sabemos que a entrada da lógica aristotélica para a reflexão teológica na Idade Média trouxe ganhos na precisão das formulações dogmáticas. Mas, quando ganhamos em precisão, perdemos em significado. Ao trocar a linguagem simbólica e existencial pela linguagem lógica e racional, a teologia fez da fé o seu objeto de estudo como se a fé cristã coubesse dentro dos parâmetros da racionalidade. Certamente que a fé cristã é totalmente razoável e não é nada absurdo crer no Deus de Jesus Cristo. Mas o Deus de Jesus não se deixa enquadrar nos limites estreitos da lógica humana. Ele é o Deus Totalmente Outro que não se deixa abarcar ou dominar. A relação com ele, que intitulamos fé, não é resultado de uma dedução lógica, mas pura gratuidade; pois, sem que o mereçamos, ele se autocomunica a nós. Ele é o autor da fé. Logo, mais que objeto de pesquisa ou da busca das razões da fé, é ele quem conduz a própria pesquisa; ele se revela e se dá a conhecer por causa de seu imenso amor. Assim, o divórcio entre teologia e espiritualidade é colocado em xeque. Sem a relação amorosa com o Deus da fé, perde o sentido buscar as razões da fé. Rahner, por exemplo, define Deus a partir do conceito de mistério. Embora Deus se tenha revelado em Jesus Cristo, ele não se desvelou e permanece mistério inabarcável, indizível e imponderável. Por um lado, pode-se estudar racionalmente o conteúdo da revelação, mas Deus permanece mistério insondável que a razão humana não explica totalmente, pois ele a ultrapassa infinitamente. O caráter incompreensível de Deus também constitui um dogma. O conhecimento mais profundo de Deus será sempre conhecimento amoroso do mistério. A teologia, por mais científica que seja e deva ser, será analogia, aproximação ao mistério. Sobre o rico conceito de mistério, ver o que diz o teólogo. Cf: RAHNER, 1970, p. 5-216. 

2 Vários teólogos abordam o assunto. Do ponto de vista da teologia espiritual, Saturnino Gamarra dedica um capítulo do seu manual à busca pós-moderna por espiritualidade, vendo aí uma chance para a Igreja. Cf: GAMARRA, 2000. p. 23-51. Libanio analisa o mesmo fenômeno, mas na complexidade do que hoje alguns estudiosos chamam de ressurgimento do religioso, que revela uma busca ambígua por experiência religiosa na pós-modernidade, não só nos movimentos cristãos, mas também nos movimentos que brotam em outras tradições religiosas e até neo-pagãs. Cf: LIBANIO, 2002. 

3 Segundo Velasco, “é necessário passar de um cristianismo impessoal, sociológico, de massa a um cristianismo pessoalmente assumido; de uma fé passiva a uma fé ativa; de um catolicismo praticante, feito de ritos e práticas cumpridas por obrigação social a um cristianismo confessante”: Cf. VELASCO, 1993 p. 275. Taborda sugere a mistagogia como forma de sobrevivência do cristianismo na cultura atual. O cristão deve ser conduzido “para dentro do mistério”, que é “Cristo em nós, esperança da glória” (Cl 2,19). A mistagogia supõe iniciação a uma experiência na comunidade cristã, mas a iniciação leva em consideração a subjetividade, intransferível, na qual insiste a pós-modernidade: Cf. TABORDA, 2009, p. 40-41. À mesma conclusão chega França Miranda: “A crise de fé em nossos dias não deixa de ser também uma interpelação à Igreja para uma autêntica mistagogia. O coração da comunidade de fé está na mística, na comunhão com o Deus vivo e entre si por parte de seus membros”: Cf.MIRANDA, 2009, p. 230). 

4 Para aprofundar o conceito de experiência, ver o que diz O’Collins: Cf. O’COLLINS, 1991, p. 47-69. 

5 Segundo Taborda, “todo ser humano que vem à luz nesta ordem salvífica – que é a única real – traz em si o germe da filiação divina, a marca do Cristo, primogênito de toda criatura (cf. Cl 1,15). A fé e o batismo, dando participação no mistério pascal de Cristo e incorporando o ser humano ao corpo de Cristo que é a Igreja, é o momento da revelação daquilo que se traz latente graças à segunda gratuidade da criação na ordem atual”: Cf. TABORDA, 2001, p. 124. 

6 Sobre isto, ver o que diz Libanio: Cf. LIBANIO, 2011, p. 4-16.
  
7 O teólogo enfatiza vigorosamente o caráter espiritual de toda teologia. Ao falar da teologia do Oriente, conclui que “a teologia é mística ou não é nada”. Com isto, ele quer apenas mostrar que a teologia tem, necessariamente, uma dimensão existencial e experiencial, neste sentido é espiritual: Cf. BOFF, 1999, p. 134-135. Outros teólogos também enfatizam o aspecto espiritual e místico da teologia: Cf. LIBANIO; MURAD, 1996, p. 59-62. 



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