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12.A perda que é puro lucro: exigências do seguimento de Jesus em Mc 8,34-38 presentes na vida de Paulo

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30.10.2014 | 25 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Acadêmicos
12.A perda que é puro lucro:  exigências do seguimento de Jesus em Mc 8,34-38 presentes na vida de Paulo

 Resumo


 Partindo de Mc 8,34-38 (cf. Lc 9,23-26 e Mt 16,24-27), texto sobre a renúncia necessária para se tornar um seguidor do mestre Jesus, procura-se fazer um paralelo com Paulo e sua experiência pessoal no seguimento de Cristo. O apóstolo das nações, ao passar de judeu zeloso e perseguidor da Igreja a ardoroso evangelizador e fiel seguidor do Crucificado, experimentará inevitável reavaliação de seus valores, abrindo mão do que era para ele lucro e que se tornou esterco diante do bem supremo, que é o conhecimento do Cristo Senhor. Paulo se apresenta como discípulo que encarnou os imperativos do seguimento de Jesus que aparecem em Mc 8,34-38. Para tal análise, toma-se como base dois relatos importantes de cartas consideradas autenticamente paulinas: Fl 3,4-14 e 2Cor 11,21-28. Em tempos de pós-modernidade, quando a fé parece ter sido destituída de toda exigência, o artigo interpela o leitor – especialmente o jovem – a repensar as condições do seguimento cristão.







Na sociedade atual, falar de renúncia parece no mínimo fora de contexto ou coisa de reacionários, que tentam a qualquer preço implantar uma espiritualidade do passado em tempos que são bem outros. Para os jovens, então, fruto de uma sociedade muito mais leve e condescendente que no passado, a renúncia soa como coisa de antiquário ou de museu: uma peça rara em extinção, sob os olhos curiosos do observador. Mas saibam nossos jovens que a palavra renúncia sempre frequentou o dicionário cristão. Não foi a Igreja quem a inventou; nem foi a Idade Média que a implantou no caminho do discipulado cristão. Não é a Igreja que, para recuperar sua imagem denegrida diante do mundo, volta a esta palavra para ganhar moral diante de seus seguidores. A renúncia nunca ficou fora do âmbito cristão e nem mesmo agora – quando se fala tanto em mudança epocal e consequentemente mudança de valores – a fé cristã pode riscar a renúncia de seu vocabulário, exilando-a para âmbitos rigoristas e ascetas. Basta um rápido olhar sobre a catequese dos sinópticos para perceber a importância da renúncia no seguimento do Nazareno. Diversas vezes a palavra aparece e, quase sempre, como exigência do seguimento do Homem de Nazaré. Em Mateus, Jesus exige que o jovem rico se desapegue de seus bens para segui-lo (cf. Mt 19,16-26); em Lucas, Jesus exige renúncia à comodidades e apegos para entrar na dinâmica do Reino (cf. Lc 9,57-62); em João, Jesus exige que Nicodemos renuncie a seus conhecimentos para nascer de novo (cf. Jo 3). São inúmeros os exemplos de renúncia que são exigidos dos que desejam seguir Jesus. Os Evangelhos estão permeados de exigências de renúncia como condição para o seguimento do Nazareno. Mas é Marcos provavelmente o primeiro evangelista a delinear o caminho do seguimento com as exigências da renúncia. Depois, Mateus e Lucas vão seguir suas pegadas, com pequenas diferenças.


Poucos anos depois da morte de Jesus, entrou no cenário cristão a figura de Paulo de Tarso, o perseguidor da Igreja nascente, que, depois de um encontro pessoal com o Ressuscitado no caminho de Damasco, converteu-se e se pôs a serviço do evangelho. Dos anos 49 até no máximo no ano 67, atuou Paulo como teólogo e escritor, evangelizador das nações, deixando-nos um legado considerável. Ainda que muitas das cartas a ele atribuídas tenham, depois de estudos mais recentes, se revelado como pseudo-paulinas ou deutero-paulinas[1], persiste a certeza de que Paulo escreveu muitas cartas às comunidades que fundara ou àquelas que ele assessorava por meio de notícias de seus companheiros. É o caso da Primeira Carta aos Tessalonicenses, a Carta a Filemon, e as Cartas aos Romanos, aos Gálatas, aos Filipenses e as duas aos Coríntios. Há um consenso entre os exegetas de que essas cartas são autenticamente paulinas, assim como há acordo de que as pseudo-paulinas tem influência do fariseu de Tarso, tendo sido elas escritas por correntes paulinas, algum secretário, alguém de seu círculo teológico.


Os escritos de Paulo antecedem até mesmo os Evangelhos, podendo Paulo “ser considerado o pioneiro da reflexão cristã sobre o evento Jesus Cristo”[2]. Sua morte data antes da redação final de Marcos (ano 70 dC). Marcos, provavelmente, teria conhecido Paulo, trabalhado com ele em uma de suas viagens e bebido de sua reflexão teológica[3]. Mas, independente dessa hipótese aceita por biblistas renomados[4], é inegável a semelhança da pregação paulina com a pregação marcana. Konings cita pequenas aproximações (cf. 1Ts 4,9 e Mc 12; 1Ts 4,13-18 e Mc 13), perguntando se isso não é indício do “evangelho de Paulo”[5] (cf. Gl 1,8.11) transparecendo no Evangelho de Marcos (idem, p. 4-5). Comungamos dessa hipótese e ensaiamos uma aproximação entre Mc 8,34-38 e alguns textos paulinos presentes em Fl 3,1-14 e 2Cor 11,21-28.


O Evangelho de Marcos apresenta Jesus de Nazaré como o evangelho ou a boa nova do Pai. Seu texto centra-se na vida pública, paixão, morte e ressurreição de Jesus[6], não se desgastando com relatos de nascimento ou infância (como Mt e Lc) ou mesmo com relatos de aparições[7]. Para Marcos importa anunciar Jesus, respondendo à pergunta norteadora do seu escrito: “Quem é Jesus?”. Para dizer que Jesus é o Messias e Filho de Deus, e consequentemente convidar os leitores ao discipulado, ou seja, ao seguimento do Homem de Nazaré, Marcos elabora um texto simples, enxuto, mas rico de detalhes e sutilezas. Todos que leem o seu Evangelho são interpelados a se colocar a caminho com Jesus, pois só é possível saber quem é ele ao longo da caminhada com o mestre. Este caminho tem, certamente, suas exigências. Marcos percebe que o seguimento de Jesus tem traços característicos próprios, por isso encaixa nos relatos de “anúncio da paixão” as exigências necessárias do discipulado. Vejamos passo a passo o texto de Mc 8,34-38[8].




34a Jesus chamou a multidão, juntamente com os discípulos, e lhes disse:
34b “Se alguém quiser seguir atrás de mim, renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me”,
35 pois aquele que quiser salvar a sua alma a perderá; quem, porém, perder sua alma por causa de mim e do evangelho a salvará.
36 Pois qual a utilidade de um homem lucrar o mundo inteiro e sua alma ser danificada?
37 Pois que daria alguém dar [em] equivalente da sua alma?”

“Se alguém quiser seguir atrás de mim, renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me” (v. 34b).


Numa única frase, aparecem três imperativos: renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me. Todos os três verbos aparecem precedidos de uma condicional: “Se alguém quiser seguir atrás de mim”. Ir atrás de Jesus não é imperativo. Ninguém está obrigado a segui-lo; a fé é proposta e por isso aparece apresentada como convite para quem quer, para quem se sente seduzido por seu apelo, por seu chamado. O discipulado não encontra sentido como algo imposto, não vem de fora, senão de uma adesão livre, pessoal e consciente pelo Filho de Deus, que livremente por nós se entregou, amando-nos até o fim, a morte de cruz.


Se o seguimento do Nazareno não é imperativo, para Marcos, o mesmo não pode ser dito da renúncia necessária para segui-lo. Uma vez declarada a disposição de seguir Jesus, a renúncia torna-se exigência do caminho a ser percorrido. Ela não tem valor em si mesma, senão em vista do seguimento ao Mestre que vai à frente enfrentando a paixão e ensinando o caminho do amor e da fidelidade. Caso contrário, a renúncia seria confundida com masoquismo, com autopiedade ou coisas do gênero. Acontece que a adesão à pessoa de Jesus e ao seu Reino tem sabor de radicalidade e comporta exclusividade: ou se pertence a ele ou não se faz parte do grupo dos “com Jesus”. Marcos gosta desta radicalidade e ela aparece em outros relatos quando, por exemplo, ele opõe a família biológica de Jesus, representada por sua mãe seus irmãos, á família escatológica, composta pelos seguidores do Mestre (cf. Mc 3,20-35). O argumento para a radicalidade do seguimento vem logo em seguida na perícope estudada. Marcos faz questão de explicar tudo direitinho para que não haja equívocos. Que ninguém abandone uma migalha que seja para depois reclamar da escolha feita. O Mestre de Nazaré não prometeu vida mansa, nem benesses advindas do seguimento. Quando Pedro reclama seus direitos em nome do que deixou para trás, Jesus esclarece: “Todo aquele que deixa casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e campos, por causa de mim e do evangelho, recebe cem vezes mais agora, durante esta vida – casas, irmãos, irmãs, mães, filhos, e campos, com perseguições – e, no mundo futuro, vida eterna” (Mc 10,29-30). Nenhum dos que seguiam Jesus deviam estar iludidos, achando que haveria privilégios por causa do seguimento.


O argumento da exigência aparece em Mc 8,35, com uma explicativa: “Pois aquele que quiser salvar a sua alma a perderá; quem, porém, perder sua alma por causa de mim e do evangelho a salvará” (v. 35). A negação de si mesmo, a tomada da cruz e o seguimento exigidos no versículo anterior ganham sentido quando entendidos por uma causa maior: a salvação da própria vida (alma), perdida em meio a tantas tentativas de encontrar-se. Ao “perder-se” a si mesmo, o discípulo se encontra numa singularidade sem par, advinda de uma causa mais nobre que não a procura narcisista de si mesmo: Jesus e seu evangelho. Não há argumentação mais clara. A renúncia se encontra no imperativo não por causa daquele que é seguido, porque ele é intransigente ou perverso, mas por amor ao seguidor. A renúncia não visa o engrandecimento do mestre, mas ela se impõe por limitação do discípulo; não por capricho de quem chama, mas por debilidade daquele que foi chamado. A renúncia não se impõe por si mesma, não tem estatuto próprio, não é valor em si mesma. Ela existe em função daquele que renuncia; pensando unicamente no bem do discípulo. Vale observar a delicadeza marcana “quem quiser salvar a sua alma...”. Querer salvar a própria vida é escolha pessoal, é decisão que cada um deve tomar livremente, sem coações, assim como também a decisão de seguir atrás do Mestre. Perdê-la por causa de Jesus e do evangelho, porém, não é ação própria, mas obra do Espírito que age na vida daquele que aceita a proposta de Jesus. Marcos afirma: “quem perder sua alma por causa de mim e do evangelho”. Note que o evangelista não escreve: “quem quiser perder sua vida por causa de mim e do evangelho”. Marcos não diz “aquele que quiser perder sua vida”, pois não parece razoável alguém querer perder-se. Ninguém quer perder-se, mas achar-se; ninguém quer perder a alma ou a vida, mas ganhá-la. Marcos dá a “perdição de si mesmo” como um dado que já foi construído anteriormente sobre o apelo do seguimento (quem perder). No ato da livre decisão de seguir o mestre, o espírito age e capacita para a renúncia. A condição de possibilidade do perder-se não se encontra nas forças do discípulo, mas na dynamis daquele que nos amou e nos chamou ao discipulado.


E Marcos ainda interroga: “Pois qual a utilidade de um homem lucrar o mundo inteiro e sua alma ser danificada? Pois que daria alguém dar [em] equivalente da sua alma?” (v. 36-37). O evangelista não vê nenhuma vantagem em ganhar o mundo inteiro, se a pessoa perde sua alma, ou seja, sua identidade de filho no Filho, cuja vocação primeira é amar e doar-se como Aquele que o filiou. Ter a alma danificada parece indicar a fuga da vocação mais genuína[9]; a perda daquela interioridade que nos é mais autêntica, mais particular. Não há nada que possa ser dado em troca desse bem maior: o de ter posse de si mesmo para se ofertar a outrem, num eterno perder-se para se encontrar. Marcos está convicto que, assim como Jesus tem posse de si para se perder por amor aos seus (neste gesto de entrega se encontra sua identidade de Filho de Deus, pois Jesus significa Deus salva), cada discípulo deve ter posse de sua vida para entregá-la em oblação.


Mateus e Lucas foram fidelíssimos a Marcos ao fazerem o mesmo relato. O texto se encontra quase sem alterações, salvas raríssimas exceções. A primeira é que Mt 16,24 e Lc 9,23 não utilizam o verbo seguir como no v. 34 de Marcos (Se alguém quiser seguir atrás de mim...). O convite de Jesus se dá com o verbo vir (Se alguém quiser vir atrás de mim...). Uma distinção oportuna para que a condição do convite e os imperativos do convite não se confundam. Ir atrás de Jesus é escolha; renunciar, levar a cruz e seguir é exigência para quem se pôs a caminho com ele. A segunda diferença é que Mt 9,25 e Lc 19,24 não usam a Palavra evangelho como faz Mc 8,35 (quem perder sua alma por causa de mim e do evangelho). Mateus e Lucas ignoram essa expressão. Para eles, a perdição de si mesmo irrompe-se como um dado exclusivamente por causa de Jesus. A princípio, diríamos que Mateus e Lucas suprimiram a expressão “e do evangelho”[10]. A hipótese que prevalece é a de que, com o passar do tempo, as comunidade cristãs de Mt e Lc que foram escritos mais ou menos dez anos depois de Marcos, tendo já no seu seio a convicção de que Jesus é o evangelho do Pai, não viam mais necessidade de afirmar esse detalhe. Mas poderíamos também dizer que Mc originalmente não escreveu “por causa de mim e do evangelho”, mas apenas “por causa de mim”, a cujo texto Mateus e Lucas teriam sido fiéis. Mais tarde, a comunidade marcana, querendo realçar o valor do evangelho que os norteava, teria acrescentado a expressão “e do evangelho” ao texto. A discussão continua em aberto.


Sabemos que Marcos provavelmente escreveu seu Evangelho na década de 60, ou a muito tardar no ano 70. Sua comunidade teria conservado a radicalidade do discipulado, tematizando-a como “renunciar a si mesmo, tomar a cruz e seguir o Mestre”. Se os verbos renunciar, tomar (ou abraçar) e seguir são de máxima importância no texto de Marcos, mais importância ainda se encontra no complemento destes verbos: renunciar a si mesmo, levar a cruz e seguir o mestre.


Renunciar a si mesmo é coisa para fortes. O verbo renunciar costuma cheirar mal. Renunciar às regalias, à riqueza, ao poder, ao comodismo, à vida mansa, à família até... Tudo isso faz pensar. Tudo isso gera constrangimentos. “Por que não podemos seguir Jesus com todas as tralhas e penduricalhos que temos atrelados a nós?”, nos perguntamos. Parece-nos absurdo que, para seguir Jesus, tenhamos que abrir mão de muitas coisas que nos são importantes. Se já traz alguma complicação a renúncia de bens, pessoas, hábitos e outras coisas adquiridas ao longo da vida, quanto maior constrangimento nos causa ouvir Marcos falar que o objeto indireto do verbo renunciar não se refere a algo exterior a nós, mas a nós mesmos. Nós somos a única coisa que, aparentemente, possuímos. Tudo o mais nos é tirado com tanta folga, com tanta facilidade. Então nossa tendência é nos reter, nos poupar, nos salvar. Mas é justamente nós mesmos que somos o objeto da renúncia que Marcos propõe. Renunciar a nós mesmos, ou ao que pensamos ser nós mesmos, é condição para ficar cheios do Espírito e dar conta do discipulado. Por nossa própria força jamais conseguiríamos viver a proposta de Jesus.


Levar a cruz também não é tarefa fácil. Mas o que é a cruz? A cruz, berço no qual o Filho descansou sua cabeça nos ombros do Pai, já aparece neste texto como algo bendito, algo a ser abraçado e não como algo repulsivo ou maldito. No tempo em que Marcos escreveu seu Evangelho, a comunidade cristã já havia ressignificado a cruz que, de maldição, passou a bênção[11]. A cruz aparece aqui como aquilo que nos atrela ao Filho. Como Jesus assumiu sua condição humana, não se esquivou do preço de ser ele mesmo (o Filho de Deus e o messias), assim cada um de nós tem que se assumir, com todas as mazelas e dores que fazem parte de nossa vida. Para Marcos, a cruz não é uma predestinação de Deus, nem uma provação, nem um infortúnio. Não é o marido que bebe, nem o filho que se droga, nem um pai ou familiar doente. Ela é nossa própria vida que carregamos sobre nossos ombros, sem declinar do que ela nos exige. Ela é a maca do paralítico que tem que ser colocada nos ombros e não pode ficar pra trás (cf. Mc 2,11-12). Ela é nossa história, nossa identidade, nossa marca. Ela diz respeito a nossos limites, a ser nós mesmos, coisa nada fácil. E certamente tem a ver com as pessoas que nos cercam. Ser nós mesmos quando vivemos só não parece fardo tão pesado, mas ser nós mesmos nos limites do outro que também quer e deve ser ele próprio já tornou-se tarefa bem mais árdua. Mas é justamente na relação com o outro e no confronto com ele que sabemos quem somos e somos instigamos a assumir nossa história pessoal. O outro nos revela quem somos e até nos ajuda, como o Cirineu, a carregar nossa cruz.


Seguir o mestre é uma constante no Evangelho de Marcos. O verbo seguir pede objeto direto. Seguir o que ou quem? Para Marcos, seguir Jesus e só Jesus, mais nada nem ninguém mais. Não é à toa que o centro do seu Evangelho é a profissão de fé de Pedro, seguida do “vai para trás de mim, satanás” que Jesus dirige a ele quando este quer passar à frente do mestre ou se colocar ao lado dele ensinando-o seu destino. Para Marcos, o discípulo vem sempre atrás do mestre, não em outra posição qualquer. O mestre vai à frente mostrando o caminho, e o discípulo vai atrás nas pegadas do mestre. Daí a exigência marcana do “siga-me”.


Assim como aparecem bem visíveis em Marcos as exigências do ir atrás de Jesus, uma leitura atenta das Cartas Paulinas aponta para a mesma radicalidade marcana, tendo o próprio apóstolo Paulo como paradigma daquele que renunciou a tudo, tomou sua cruz e se pôs a seguir Jesus. Não são poucas as passagens em que o apóstolo adverte as comunidades a deixar tudo por causa de Cristo. É só conferir Filipenses. Ele convida a comunidade de Filipo (cf. Fl 2,1-5) a renunciar a toda glória a exemplo de Jesus (cf. Fl 2,6-11) e dele próprio (cf. Fl 3,7-14). Depois de falar da kenose de Jesus, de seu rebaixamento, de sua total renúncia a qualquer privilégio divino ao assumir a condição humana, Paulo fala de seu próprio rebaixamento. O Apóstolo dos gentios estava bem consciente de que a experiência do Crucificado-Ressuscitado relativiza todas as coisas. Diante do conhecimento de Cristo, o bem supremo, toda renúncia se torna pequena. Essa experiência apresenta-se com tal força que Paulo abre mão de várias conquistas importantes para abraçar um bem maior.


Vejamos Fl 3,4-16 e 1Cor 11,21-33. Ao fazer seu encontro com Jesus Ressuscitado, Paulo entendeu bem as três exigências do discipulado, presentes em Mc 8,34b: renunciar a si mesmo, tomar a cruz e seguir atrás do Crucificado.


Renunciar a si mesmo: Em confronto com os judaizantes que se ufanam de seus privilégios de povo eleito, Paulo adverte que também ele teria de que se orgulhar e não seria sem motivo se colocasse sua confiança na carne (cf. Fl 3,3-4). Ele foi circuncidado ao oitavo dia, era da raça de Israel, da tribo de Benjamim, um verdadeiro hebreu, filho de hebreu, observador da Lei de tal forma que seu zelo o tornou perseguidor da Igreja; uma pessoa irrepreensível diante da Lei (cf. Fl 3,5-7; 1Cor 11,22). Mas tudo que antes era ganho apresenta-se agora como prejuízo por causa de Cristo[12]. Paulo compreende que aquele que se apresenta diante de Deus com o coração cheio demais sai vazio da sua presença. Não há mais espaço para a ação de Deus. Para deixar Deus agir, Paulo sabe que tem que passar por uma verdadeira kenose, a mesma kenose experimentada pelo Verbo de Deus ao se fazer homem. Tendo abandonando os privilégios divinos, o Filho se faz homem e tem que ser filializado na carne, num processo contínuo de aprendizagem da fidelidade por meio da obediência. Esse processo de filialização só se dá no esvaziamento total de si mesmo, na renúncia absoluta de todo privilégio. Paulo, que tão bem descreve a kenose divina, assume como tarefa sua própria kenose. Diante do bem supremo experimentado, que é o conhecimento do Cristo Jesus (v. 7-8), tudo virou esterco, lixo: nada mais tem significado a não ser seguir e servir Jesus no despojamento total de si mesmo: a kenose paulina. E o apóstolo dos gentios não narra com pesar suas perdas. Ao contrário, sabe que este é o único caminho possível do seguimento: “Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele” (Fl 3,8-9). Paulo se deixa perder por amor a Cristo. Ele comunga com Marcos da mesma teologia: perder por causa de Cristo é tudo ganhar. Na entrega radical da vida ao Crucificado, encontra-se a identidade mais profunda do seguidor, a singularidade, a interioridade antes perdida nas garantias da carne. A garantia da justificação em Cristo suplanta a pretensa justificação advinda da observância da Lei (cf. Fl 3,9). A comunhão com Cristo, o ser encontrado unido a ele, não tem preço. Vale qualquer preço, qualquer renúncia.


Tomar a cruz: renunciar a si mesmo só tem sentido se em prol de abraçar algo maior e melhor do que aquilo que foi deixado pra trás. Não há para o seguidor do Crucificado outra força maior que a força da cruz que o próprio Jesus abraçou livremente em favor dos seus, como sinal de amor e fidelidade. Paulo, ciente disso, abraça sua cruz e faz comunhão com os sofrimentos do Mestre e com sua morte, rumo à ressurreição que também ele espera (cf. Fl 3,10-12). Paulo se assume, assume seu passado de perseguidor, de fariseu zeloso etc e sabe que tudo isso tem um preço. São muitos os sofrimentos que advém de sua história. Nega-la seria mais fácil, mas não mais cristão. Paulo abraça sua cruz. A cruz de Paulo se revela no seu ministério: fadigas, prisões, açoites, perigo de morte, chicotadas, apedrejamento, naufrágio, numerosas viagens, perigos por toda parte – nos rios, na cidade, no deserto, no mar –; da parte de ladrões, dos irmãos de estirpe, dos gentios, dos falsos irmãos. E mais: vigílias, duros trabalhos, fome, sede, jejum, frio nudez. E a preocupação cotidiana com todas as Igrejas (cf. 1Cor 11,23-29). Tudo isto mostra quem Paulo é, sua índole, sua personalidade, seu ser, o preço a pagar por suas escolhas. De nenhuma cruz imposta pelo apostolado, o Apóstolo se esquivou. Tomou-as sobre os ombros e levou-as até o fim do caminho, atrás do mestre Jesus. Compreendeu que seus sofrimentos “são participação nos sofrimentos e na morte de Cristo”[13]. Paulo vai entender, na dor do apostolado, como é duro recalcitrar-se contra o aguilhão (cf. At 26,14).


Seguir Jesus: A terceira condição colocada por Marcos diz respeito ao contínuo seguimento. Seguir Jesus não é apenas colocar-se atrás dele ocasionalmente; é continuar sempre correndo no desejo de alcançá-lo (cf. Fl 3,12), lançando-se em direção à meta, para conquistar o prêmio que Deus nos chama a receber, o próprio Cristo Jesus (cf. Fl 3,13-14). Paulo está consciente dessa exigência cristã e dela não abdica. Insiste que persegue o alvo, como um atleta rumo ao prêmio. Ele corre sempre atrás do prêmio, que é o próprio Cristo ressuscitado. Não se põe em pé de igualdade com ele, não abdica de ouvir sua voz e se dispõe a obedecer-lha sempre. Paulo sabe que o lugar do discípulo é atrás do mestre, e não se digna a tentar outro lugar no caminho que não este.


Retomando Marcos, percebemos que o renunciar a si mesmo, o tomar a cruz e o seguir Jesus são em prol do discípulo. Podemos afirmar que com certeza Paulo compreendeu isso. Nenhuma perda significa de fato perda para ele; ao contrário, é lucro. Nenhuma renúncia seria maior do que a de não ser discípulo autêntico e ter sua singularidade cristã comprometida por causa de seus apegos. Nenhuma cruz pesa mais que a de não poder seguir o mestre em amor e fidelidade. Paulo e Marcos comungam da mesma fonte: entendem os imperativos do discipulado como consequências naturais da opção abraçada. Paulo, em sua vida entregue ao apostolado, é ícone das exigências radicais de Mc 8,34-38. Oxalá o exemplo de Paulo e o relato das exigências de Marcos motivem nossos jovens a renunciar a todo impedimento para seguir Jesus. Nesta Jornada Mundial da Juventude, percebam eles o apelo que Jesus Cristo lhes faz ao discipulado. Para tal, será sempre atual e necessária a renúncia. Ecoa forte o escreveu Marcos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me!”.



Bibliografia


BÍBLIA SAGRADA – Trad. CNBB, 5ed. São Paulo/Brasília: CNBB/Canção Nova, 2007.


CASALEGNO, A. O evangelho do amor fiel a Deus. São Paulo: Loyola, 2001.


CERFAUX, L. O cristão na teologia de São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1976.


DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 2008.


KONINGS, J. Paulo, Jesus e os Evangelhos. Theologica, Braga, v. 44, n. 1, p. 13-17, 2009.


KONINGS, J. Sinopse dos Evangelhos. São Paulo: Loyola, 2005.


KONINGS, J; CARMO, S. M. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal. Revista Eclesiástica brasileira, v. 69, n. 273, p. 103-119, 2009.


[1] É o caso da Carta aos Colossenses, aos Efésios, a Segunda Carta aos Tessalonicenses, as duas a Timóteo e a Carta a Tito.


[2] CASALEGNO, A. O evangelho do amor fiel a Deus. São Paulo: Loyola, 2001. p. 9.


[3] Marcos, o evangelista, seria o João Marcos do qual fala Lucas no livro dos Atos dos apóstolos. Marcos aparece como companheiro da primeira viagem missionária de Paulo e é o pivô do desentendimento de Paulo com Barnabé por ocasião dos preparativos para a segunda viagem. Marcos desertou na primeira viagem e Paulo não o quer mais como companheiro, enquanto Barnabé insiste em mantê-lo na delegação. Cf. At 13,1-13; 15,36-41.


[4] Cf. KONINGS, J. “Paulo, Jesus e os Evangelhos”. Theologica, 2ª série (Braga), v. 44, n. 1, p. 22, 2009.


[5] Todos nós sabemos que Paulo não escreveu um Evangelho. Não temos na Bíblia o “Evangelho segundo Paulo”, mas todo o tempo de seu apostolado Paulo pregou o evangelho. O “Evangelho de Paulo” salta de suas cartas, como a linha condutora do anúncio de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, que o homem de Tarso não se cansa de anunciar. Poderíamos então dizer que Paulo tem sim um evangelho, mas não no gênero “evangelho”, ou seja, narrativo-teológico como Mt, Mc, Lc e Jo, mas no gênero carta, ou seja, exortativo-teológico. Transparece nos escritos paulinos Jesus de Nazaré, sua vida, paixão, morte e ressurreição.


[6] Relato também chamado de querigma. Cf. KONINGS, J; CARMO, S. M. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal. Revista Eclesiástica brasileira, v. 69, n. 273, p. 103-119, 2009.


[7] Os relatos de aparições em Marcos presentes no capítulo 16, versículos 9 a 20, apesar de canônicos não pertencem originalmente ao Evangelho de Marcos. São acréscimos posteriores da comunidade que, tendo conhecido os diversos relatos dos outros evangelhos, faz um resumo das aparições e encaixa-os no final do texto, como uma espécie de epílogo. Uma analise mesmo superficial mostrará a semelhança das notícias de aparições em Marcos com os relatos de aparições presentes nos Evangelhos de Mateus, Lucas e João.


[8] Para citar Mc, Lc e Mt, seguimos KONINGS, J. Sinopse dos Evangelhos. São Paulo: Loyola, 2005. Para as Cartas Paulinas, seguimos Bíblia Sagrada – Trad. CNBB, 5ed. São Paulo/Brasília: CNBB/Canção Nova, 2007.


[9] Como o nome Jonas, que significa a pomba, que em livro de mesmo nome é apresentado como aquele que bate asas para outros campos, fugindo de Deus.


[10] Apesar de os exegetas estarem convictos de que é mais fácil acrescentar algo à Escritura, que suprimir alguma de suas expressões.


[11] Pouca probabilidade encontramos em atribuir tais palavras ao Jesus histórico; no seu tempo a cruz era algo ignominioso, e abraçá-la era algo improvável. A radicalidade do seguimento se encontra nele depositada, mas a formulação parece advinda de uma teologia cristológica posterior. Partilhamos a tese de Konings quanto à “continuidade entre a pregação de Jesus, a pregação apostólica refletida nos Evangelhos e a pregação de Paulo” (KONINGS, Paulo, p. 15).


[12] Dunn apresenta o questionamento de alguns autores se, de fato, Paulo deixou o judaísmo para trás. Cf. DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 49.


[13] CERFAUX, L. O cristão na teologia de São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1976. p. 125.