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96. Como náufragos

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26.07.2016 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
96. Como náufragos

“Arrastado o navio violentamente,

ficamos à mercê dos ventos” (At 27,15)



“Assim
fundo e me afundo

de todos os náufragos
náugrafo

o náufrago
mais

profundo.”

(Paulo Leminski)


 

Não é de hoje que escuto muita gente boa dizendo por aí que está enfarada da correria da vida, cansada da estressante rotina em que vivemos. Acordar cedo, engolir uma xícara de café com pressa, partir de carro ou de ônibus para o trabalho, almoçar num self-service qualquer – sozinho ou na companhia de estranhos –, trabalhar de novo, pegar nova condução para casa, quando não se vai direto para uma faculdade, voltar estafado, ver e-mails, responder urgências de WhatsApp e, por fim, dormir sacudido pelas violentas ondas do mar do dia. No outro dia, começar de novo. E, de novo, no outro dia. E, mais uma vez, no dia seguinte. Estamos à mercê dos ventos da urgência, náufragos no oceano imenso da existência, sem bússolas que nos orientem. Na pressa, nosso navio bateu nos limites da vida e uma fenda se abriu na proa. Estamos vendo as águas impetuosas subirem, sem saber o que fazer. Aí, tomamos emprestadas as palavras do poeta Alphonsus de Guimaraens e dizemos:



“O naufrágio, meu Deus!

Sou um navio sem mastros. 

Como custa a minha alma transformar-se e mastros, 

Como este corpo custa a desfazer-se em pó!”



Essa sensação de impotência, essa certeza de que algo maior que nós mesmos nos sufoca ou nos engole vivos,essa impressão de que a custo estamos virando pó, isso traz angústias com as quais parece ser impossível manter a sanidade mínima para o convívio. Sacudidos de todos os lados, ficamos com os nervos à flor da pele e, em vez de nos ajudarmos – pois somos todos náufragos do mesmo barco –, voltamo-nos uns contra os outros nos digladiando e procurando culpados: um combate inútil. Estar à mercê dos ventos nos desestabiliza. Somos surpreendidos a toda hora com novas urgências e precisamos fazer novos aprendizados para dar conta da vida. Vamos levando assim a vida, até a hora em que as forças se esvaem. Quando a mudança no cotidiano se apresenta maior que nossas forças e ficamos imobilizados, impossibilitados de dar conta da vida diária, estamos doentes. Sim, doentes. A medicina já nomeou esse mal-estar: transtorno de adaptação ou de ajustamento, dando-lhe um CID e tudo mais: 10F 43:2. Sei porque já fui acometida por essa traiçoeira tempestade, quando vi meus ânimos naufragarem junto com minhas seguranças, deixando em mim um perigoso déficit de energia. Não há o que fazer a não ser deixar a tempestade passar e esperar o dia clarear. Na noite escura, não parece bom arriscar mar adentro, sem nenhum farol que possa nos guiar.


Estive há poucos dias em um lugarejo um pouco distante daqui, onde a vida tem ritmo bem diferente do frenesi da cidade grande. Fui me reenergizar, como dizem os mais holísticos. Uma semana numa prainha deserta, numa vilazinha de mil habitantes, onde se pode contar as casas e saber o nome de todos, onde não há carros pelas ruas, nem portas trancadas com medo de ladrões... Parece o paraíso ou algo bem perto disso. Como disse Adélia Prado: “Se for só isso o céu, está perfeito”.


Nessa aventura, encontrei muita gente bacana que testemunhou sua experiência de naufrágio existencial. Trabalhadores, pais e mães de família, alguns com inteligência lapidada pelo conhecimento acadêmico, outros mais rudes. Conheci também um ex-presidiário: homem que conheceu o submundo das drogas e do crime e se reencontrou no sossego da vila. Todos contentes de ter deixado para trás a correria da vida, de poder agora caminhar em ritmo próprio, vendo seus filhos crescerem e seus cabelos brancos chegarem. Todos, sem exceção, afirmaram que escolheram esse estilo de vida quando admitiram que tinham naufragado no modelo anterior. E é nessa hora que a gente se pergunta se nosso barco também naufragou e a gente nem percebeu. Pode ser que tenhamos nos acostumado a viver à deriva.


Enquanto não posso viver nesse céu – ou não tenho coragem para fazê-lo –, sigo na tormenta. De volta ao cotidiano, revejo amigos e parentes queridos, que me mostram que a luta pela vida vale a pena.  Para me manter energizada, rezo o salmo 107,23-31 e encontro em Deus forças para recomeçar:



“Desceram ao mar em seus navios, para negociar na imensidão das águas.
Estes viram as obras do Senhor e suas maravilhas no oceano.
Com sua palavra mandou soprar um vento de tempestade que levantou as ondas.
Subiam até os céus, afundavam no abismo; suas almas titubeavam na desgraça.
Giravam, vacilando como bêbados, e toda sua perícia não valia nada.
Na sua aflição, clamaram ao Senhor, e ele os livrou de suas angústias.
Mudou a tempestade em brisa suave e as ondas do mar silenciaram.
Alegraram-se com a bonança e ele os conduziu ao porto desejado.
Que louvem o Senhor por sua bondade e por suas maravilhas”.



Nas mãos de Deus, a tempestade cessa, a tormenta passa, a vida flui. Não sem atropelos, é claro, pois estamos sujeitos às intempéries como qualquer outro. Mas não me sinto mais à mercê dos ventos. Mesmo à deriva, sei que há uma âncora a ser lançada. Sei onde posso atracar meu barco.