Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

4. Crise ou noite escura: o inevitável à luz da fé

Ler do Início
08.12.2013 | 5 minutos de leitura
Pe. Paulo Sérgio Carrara- C.Ss.R
Para Pensar
4. Crise ou noite escura: o inevitável à luz da fé

O inevitável: aquela dimensão do real que preferiríamos ignorar, mas que se nos impõe. O que não depende de nós para acontecer, mas que nos acontece. Quantos por cento da nossa vida pertencem à categoria do inevitável? 20, 30, 40%? Talvez bem mais que isso. E o real? O que nos resiste e que exige que sejamos “resistentes” ou “resilientes”. Nosso desejo, que gostaríamos fosse onipotente, depara-se sempre com a realidade. E sem o enfrentamento da realidade, caímos na ilusão. Sonhamos com uma felicidade durável, perfeita, completa. Quem não almeja uma alegria plena e sem limites? É o sonho de todos nós. Mas nossa vida não se reduz a um sonho. A realidade nos espreita e temos que enfrentá-la, sem nos esquivarmos, sem negá-la e, também, sem nos deixar esmagar por ela. E o mais importante, para quem crê, é afrontá-la a partir da fé.


A espiritualidade antiga dizia: “É preciso acolher a realidade como Deus a envia”. Acolher o real da providência divina, que tudo dispõe. Quanta sabedoria nesse conselho clássico da espiritualidade, mesmo sabendo que Deus não envia sofrimentos, desgraças, doenças. Deus não é o responsável por nossos males.  Hoje poderíamos dizer o seguinte: é preciso se encontrar com Deus a partir dos acontecimentos e nos acontecimentos. Acolher Deus em todos os eventos da vida, negativos ou positivos. Na alegria e abundância, mas também no sofrimento, na tristeza e no fracasso. Por mais que nos sintamos visitados e abençoados pela graça de Deus, sabemos que tristeza, a desolação e o desalento são estados de ânimo comuns na vida humana. E a verdadeira experiência de Deus, às vezes, emerge, e de maneira profunda, no meio de tudo isso. Na vida concreta, também das pessoas espirituais, surgem fatos penosos, desentendimentos, traições, incompreensões, conflitos de ordem afetiva, doenças. Situações que admitem uma série de interpretações: falta de sorte, maldade humana, acaso, erros próprios, opções errôneas, pecados pessoais e sociais. Interpretações possíveis, mas que não resolvem o desconcerto dos acontecimentos indesejados. O problema fica pior quando a pessoa se sente abandonada por Deus, pelos amigos e pelos próprios recursos. Sente-se só, posta numa situação-limite. Porém, Deus mistura sua graça aos escombros de nossa vida. Sua graça, oculta, eficaz e misteriosa, sabe fazer maravilhas através dos acontecimentos inesperados, inclusive com elementos de erro e de pecado. Basta que a pessoa não se desespere, mas confie, espere em Deus. A confiança nele nasce também de certo desespero interior. É quando não pode mais confiar nos próprios recursos que a pessoa ousa jogar-se nos braços da misericórdia de Deus. Mas, no meio das trevas, para que haja verdadeiro amadurecimento na fé, faz-se necessário manter a fidelidade a Deus, esperar pacientemente. São João da Cruz aconselha: “Lembre-se de Cristo Crucificado e silencie. Viva na fé e na esperança, mesmo que seja às escuras, pois nestas trevas Deus ampara a alma”.  Ele é capaz de escrever certo pelas linhas tortas da nossa vida.  Mas é preciso confiar e acreditar. Não duvidar e tudo esperar de Deus.


Grandes santos da Igreja se depararam com situações difíceis, extremas. Santo Afonso, apóstolo da misericórdia, consolou muitos na confissão, mas disse, certa vez: “eu sofro um inferno”. Santa Teresinha atesta uma verdadeira tortura interior, marcada pelo medo de se desesperar. No meio da crise, exclama: “É a pura agonia, sem nenhuma mistura de consolação! Não, jamais acreditei que fosse possível sofrer tanto”! Masoquismo espiritual? Não, essas pessoas não se infligiam sofrimentos, porque, nesse caso, se transformariam em gozo perverso. Os santos lutaram contra os sofrimentos e tudo fizeram para superá-los. E também nós não temos que buscar sofrimentos ou inventá-los. Quando surgem, temos o direito, e até o dever, de buscar uma solução na psicologia, na medicina e nas ciências.  Também podemos recorrer a Deus em busca da cura. Se a alcançarmos, agradeceremos a Deus. E se não conseguirmos o que buscamos? Sempre há um lugar em nós em que fracassamos. Exatamente aí Deus abrirá uma brecha para nos curar mais profundamente. Cura que não restaura o objeto perdido, mas modifica nosso olhar sobre Deus e sobre nossas relações. Nesse caso, cura significa assumir a doença, perdoar sua causa e amar a Deus e a si mesmo suficientemente para ser capaz de carregar sobre si e, às vezes, sobre o próprio corpo, um novo olhar. Trata-se de um processo doloroso, porém, se vivido na fé e no abandono, revelará o verdadeiro rosto de Deus, que não se deixa banalizar ou identificar com meios que nós mesmos construímos. Ele não é uma caricatura, um fantoche ou mesmo um ídolo construído à imagem e semelhança do nosso desejo. Ele é soberano, Senhor dos homens, do universo, da história e do destino. Mistério insondável ao qual estamos referidos desde o mais profundo do nosso ser e que reclama obediência, porque só Ele é o Sumo Bem. Não nos trata como crianças, mas nos conduz, através das crises, a uma vida adulta, autêntica e responsável. Somos assim conduzidos a uma maturidade provisória. Próxima etapa do crescimento em Cristo.