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206. Francisco de Assis, Francisco de Roma

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16.10.2019 | 7 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
206. Francisco de Assis, Francisco de Roma

“Ele foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu a boca,

como um cordeiro conduzido ao matadouro” (Is 53,7)



“Ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria,

e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão.

Acima de todas as graças

e de todos os dons do Espírito Santo,

os quais Cristo concede aos amigos,

está o de vencer-se a si mesmo,

e, voluntariamente, pelo amor,

suportar trabalhos, injúrias,

opróbrios e desprezos


(Francisco de Assis)



Temos assistido nos últimos tempos, especialmente depois da convocação para o Sínodo da Amazônia, a um desfile de ofensas, ultrajes e insultos ao Papa Francisco. Alguns, se pudessem, pediriam sua cabeça numa bandeja, como a jovem filha de Herodíades fez com João Batista (Mc 6,17-30), ou o apedrejariam, como os fariseus desejam fazer com a mulher pecadora (Jo 8,1-11). O Papa é a nova Geni, aquela que se doa para salvar a humanidade, mas é apedrejada como uma meretriz pelos puritanos de plantão. Francisco tem enfrentado batalhas gigantes. É Davi resistindo bravamente a Golias.


O gigante opositor a Francisco é um monstro de infinitas cabeças, bem mais que as sete cabeças ornadas com diademas, descritas na fera do Apocalipse (Ap 13,1). Talvez, pudéssemos compará-lo ao bicho medonho de Dn 7,7: terrível e muito forte, com enormes dentes de ferro, ela come e esmaga tudo que seu apetite voraz anseia e ainda macera com os pés o que sobra. Sua maldade e ferocidade ultrapassam as possibilidades do mal, até mesmo entre os mais perigosos dos animais. 


As forças que atacam o atual Bispo de Roma são malignas, estou certa disso. São muitas e, à primeira vista, não têm um eixo comum, mas estão convergidas em função de derrotar o que ele representa, como Herodes e Pilatos, antes inimigos, mas unidos para condenar o Mestre de Nazaré ao madeiro da humilhação. O projeto de Francisco, humano como o Filho do Homem de Daniel (Dn 7,13), assusta os adeptos da igreja da comodidade. Seu sonho de um mundo solidário, sua abertura ao mundo, sua capacidade de misericórdia e sua bondade ameaçam os que são mesquinhos, afeitos ao poder e às falsas seguranças que a instituição Igreja pode oferecer. O fato de Francisco colocar-se ao lado das populações marginais, de trazê-las para o centro da Igreja e da sociedade, irrita quem a vida inteira “mamou nas tetas da Igreja” e agora se vê tendo que dividir o leite materno com os irmãos enfraquecidos e esquecidos, calcados aos pés pelos grandes e oportunistas.


Mas quem são eles? Quem quer destruir e arruinar o Pobrezinho de Roma? É difícil elencar, mas é preciso tentar. É preciso “dar nomes aos bois”, diria meu pai, pois o que não é nomeado não pode ser dominado ou adestrado. Os opositores de Francisco vão desde cardeais eméritos que amam longas caldas e cálices de ouro a jovenzinhos recém-convertidos que se acham os mais católicos do mundo. São freirinhas aparentemente inofensivas que, tendo renunciado aos prazeres do mundo, ficaram ofendidas de ver que o papa acolhe e ama quem não fez a mesma renúncia. São ex-protestantes convertidos ao catolicismo, que acham que vão salvar a Igreja de si mesma, mas que – no íntimo do coração – alimentam um desejo de vê-la agonizando. São padres youtubers, com batinas asquerosas, que vasculham o Catecismo e citam Tomás de Aquino, fazendo discursos de fidelidade à mãe Igreja, quando na verdade escondem, debaixo dos panos, questões humanas mal resolvidas. São fatimistas – movimento composto por devotos de Nossa Senhora de Fátima, mas não de Maria de Nazaré – que, em nome da mãe de Jesus, se arrogam o direito de atacar o Servo de Deus que ocupa a cátedra de Pedro. São pessoas que odeiam o mundo criado e tudo que ele representa; negam o corpo em nome de uma pretensa salvação das almas. São católicos que se estagnaram numa fase da história da Igreja que já virou quimera; que não querem ver os sinais dos tempos e se sentem ofendidos que alguém o faça. São pobres mães e pais de família, manipulados por pregadores inescrupulosos, por líderes interesseiros que não estão dispostos a perder seu status quo. São comunidades novas – e também velhas – que se sentem donas do Espírito Santo e sabem a vontade de Deus, pois pensam ter comunicação direta com ele. São seguidores de movimentos conservadores que, desde dentro da Igreja, vão ruindo com a ferrugem do ódio as bases solidárias de uma Igreja dos pobres. São integristas, donos da verdade, que veem inimigos em tudo e em todos que estão segregados pelo critério da pureza sonhada. São tantos e tantas que é quase impossível seguir o rol dos que o perseguem. Pobre Francisco! É bem digno desse nome que carrega.


Apesar da oposição ferrenha, o Francisco de Roma segue como o servo sofredor de Isaías (Is 50,6), não rebate, não discute, não se justifica, não despende energia com vãs querelas. Caminha nu, sem as proteções institucionais, mas resoluto como Jesus que endureceu o rosto para resistir às crueldades encontradas no caminho para Jerusalém (Lc 9,51). Ou, como Jó, que – por causa de uma teologia incapaz de explicar as contradições da vida (Teologia da Retribuição) – é rotulado por seus “amigos” de pecador, quando, na verdade, sua vida ilibada é conhecida por Deus e até por satanás. Francisco ignora os argumentos teológicos dos “seus amigos”, pois sua teologia é a fraternidade e nela não cabe nenhuma imagem divina a não ser a do Deus-amor. O Chico dos pobres segue fiel e calado recebendo os escarros dos “santos da fé”. Carrega no lombo o peso do mundo: a causa dos pobres e do planeta Terra, que ele chama de Casa Comum.


Francisco sabe o que quer, e sabe o preço a pagar, mas está resoluto. Aquela resolução dos obstinados, dos santos e dos loucos. Francisco é um pouco de tudo isso: obstinado com o projeto de um mundo mais justo, santo pois eleito para amar os pobres e louco de amor pela irmã Terra, que nos dá frutos, flores, água e todo bem para a vida. Francisco é literalmente um “doido varrido”, diriam na minha terra. Varreu de seu interior as amarras da convenção, limpou de si o desejo de aplausos, faxinou seu coração e o imunizou contra o ódio. Segue Francisco cantando com sua vida o cântico das Criaturas. Vê em cada pessoa um irmão amado e não um inimigo. E, em cada ser vivo, vê a fecundidade da vida que pulsa e pede para ser cuidada. O Chico de Roma, como o de Assis, despreza o elogio dos bajuladores, pois não está disposto a perfilar-se com eles na fileira do carreirismo, e prefere a irmã morte pois sabe que ela é companheira.


Lá vai o Pobrezinho de Deus: vai amar o leproso que ninguém ama, vai reerguer a Igreja destruída pela hipocrisia de muitos, vai acolher os migrantes que ninguém quer, vai abraçar o travesti crucificado por seu corpo transgressor. Vai resoluto o Papa da América mostrar ao mundo que a fé cristã é bem mais que cumprimento de normas e de prescrições. E vamos nós com ele. Vamos fazer juntos o Sínodo da Amazônia. Vamos deixar que as consequências ecológicas, teológicas, eclesiais e humanas do Sínodo sejam fecundas. Vamos sonhar e construir outro modelo de Igreja e outro modelo de civilização. Francisco não está sozinho. Vamos juntos, claudicantes na noite fria da vida, pois somos seu irmão Leão, companheiro de caminho. Vamos aprender com ele a verdadeira alegria de nada possuir a não ser o amor, a verdadeira alegria de servir aos irmãos mais vulneráveis e de defender a vida de todas as criaturas.