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198. Reflexão para o 4º Domingo do Tempo Comum – Mc 1,21-28 (Ano B)

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30.01.2021 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
198. Reflexão para o 4º Domingo do Tempo Comum – Mc 1,21-28 (Ano B)
O evangelho deste quarto domingo do tempo comum – Marcos 1,21-28 – está em perfeita continuidade com o do domingo anterior (cf. Mc 1,14-20), tanto em relação à sequência de versículos quanto ao conteúdo. Após ter começado a anunciar a iminência do Reino de Deus e iniciado a composição da comunidade de discípulos, chamando seus quatro primeiros seguidores, eis que Jesus inaugura definitivamente o seu ministério na Galiléia. Até então, o evangelista fizera referências muito genéricas e sintéticas sobre o início do ministério de Jesus (cf. Mc 1,14-15), chegando a descrever com detalhes somente o chamado dos primeiros discípulos (cf. Mc 1,16-20). Sendo assim, a primeira narrativa descritiva da atuação de Jesus, quando ele de fato começa a tornar manifesto o Reino anteriormente anunciado, é o evangelho de hoje. Isso, obviamente, confere um valor ímpar a esse texto, tornando-o paradigmático. Como elementos centrais do texto a serem observados, destacamos: as dimensões de tempo e espaço (Cafarnaum-sinagoga/sábado), ensinamento e cura-exorcismo (palavra/ação), admiração e confronto. Esses elementos são muito representativos para a imagem de Jesus que Marcos pretende construir ao longo do seu Evangelho.

Eis o texto: “Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v. 21). É muito significativo esse primeiro versículo. A cidade de Cafarnaum, cujo nome significa “aldeia da consolação”, se torna o centro das atividades iniciais de Jesus na Galiléia. Apesar de itinerante, Jesus escolhe essa cidade como ponto de apoio para o seu movimento. Embora não fosse grande, Cafarnaum era uma cidade estratégica pela sua localização às margens do mar (lago) da Galiléia; possuía uma economia forte e uma população bastante diversificada. Era a cidade ideal para a “pesca de homens”, como Jesus definiu simbolicamente a missão dos seus discípulos. A designação dos discípulos como “pescadores de homens” possui um significado muito forte: longe de ser um convite ao proselitismo, é um convite à promoção do ser humano em sua dignidade plena. Significa a missão do discípulo de promover a libertação do ser humano de toda e qualquer situação de perigo, injustiça e morte.

Neste texto, Marcos não faz qualquer referência ao conteúdo do ensinamento de Jesus, mas a descrição da reação do auditório faz supor que fosse um ensinamento ousado, emancipatório, questionador da ordem vigente, como é próprio do Reino de Deus. E isso será confirmado pela ação posteriormente descrita, ao libertar um homem de um espírito mau. Por isso, é muito significativo que a primeira ação libertadora de Jesus aconteça na sinagoga e em dia de sábado. A sinagoga era o lugar sagrado do culto, da reunião da comunidade, da catequese; o espaço privilegiado da pregação no judaísmo e, consequentemente, do ensino da preservação das tradições e do cumprimento dos preceitos da Lei. O sábado era o dia sagrado por excelência para o povo judeu; dia do repouso e do culto, da escuta atenta da Lei e dos Profetas. E Jesus não vai ao culto apenas como devoto e fiel observador dos preceitos; ele vai também para questionar e denunciar que a religião também aliena e oprime. Por isso, o primeiro espaço visitado por ele com sua mensagem e ação libertadoras é a sinagoga, porque ele via a alienação religiosa como a mais danosa de todas as alienações.

A diferença entre a pregação inovadora de Jesus e a tradicional dos mestres da Lei e rabinos da época logo foi percebida pelo povo: “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v. 22). A afirmação é forte e impactante porque os mestres da Lei ou escribas eram os que ensinavam com mais qualidade e autoridade na época. Eram os pregadores e mestres oficiais da religião judaica, autorizados pelos sacerdotes do templo. De repente, percebe-se que o ensinamento de um nazareno é superior. Na verdade, essa afirmação declara o ensinamento dos mestres da Lei como ilegítimo. A contraposição dos ensinamentos mostra que era falsa a autoridade dos mestres da Lei; eles eram impostores. A autoridade com a qual Jesus ensinava consistia na sua coerência de vida e fidelidade ao Pai. As pessoas, habituadas a ouvir repetições de fórmulas, sermões repressivos e moralistas, logo se admiram com a novidade apresentada por Jesus. Ora, o Reino de Deus, objeto da pregação de Jesus, tinha sido bloqueado pela religião. Os mestres da Lei eram funcionários do sagrado; praticavam autoritarismos, ao invés de autoridade; ensinavam para dominar. Jesus, ao contrário, ensina para libertar.

À medida em que o anúncio de libertação ecoa, eis que as forças do mal se evidenciam, sentindo-se ameaçadas, pois não aceitam a prática libertadora de Jesus, como constata o evangelista: “Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (vv. 23-24). A presença desse homem no reduto sagrado da sinagoga comprova a completa ineficácia da religião ali praticada. Até então, o ensinamento ali oferecido pelos mestres da Lei não tinha ido de encontro ao mal instalado na sociedade, incluindo a comunidade religiosa. Isso comprova que a autoridade dos mestres da Lei era falsa, ilegítima. Jesus não compactua com o mal; na verdade, ele veio para destruir o mal e tudo o que aprisiona o ser humano, como o próprio espírito mau reconheceu: “vieste para nos destruir?”. A incompatibilidade entre Jesus e o mal deve, obviamente, repercutir na comunidade cristã. Significa que os cristãos e cristãs não podem compactuar com nenhuma forma de expressão do mal, como violência, injustiças, preconceito, ódio, etc..

O que ameaça o mal é a presença do bem, e Jesus é, por excelência, o portador do bem, o possuidor do Espírito Santo em plenitude. Até então, o mal instalado não tinha se sentido ameaçado, porque não havia quem irradiasse o bem naquele ambiente. O homem possuído pelo espírito mau, com quem a religião convivia tão bem, se sente ameaçado pelo ensinamento libertador de Jesus com sua autoridade. Quanto mais o Reino de Deus se aproxima e se instala no mundo, mais o domínio do mal se sente ameaçado e começa a desaparecer. Por isso, o homem pergunta o que Jesus veio fazer. O poder da morte, a antivida se sente com os dias contados diante de Jesus. O mal sente-se destruído com a implantação do Reino de Deus. Por isso, mais na frente, será articulado o complô da morte entre a religião e o império romano para fazer calar a voz de Jesus. Convém recordar que, para a mentalidade da época de Jesus e da comunidade do evangelista, espírito mau, espírito impuro ou possessão demoníaca eram, na maioria das vezes, as explicações que se davam para os casos de doenças ainda desconhecidas da medicina da época, principalmente as doenças mentais.

Por não suportar o mal ao seu redor, “Jesus o intimou: Cala-te e sai dele!” (v. 25). A essa ordem, segue-se o seu efeito: “Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v. 26). Quem está dominado por forças hostis como a violência, a corrupção, a mentira e o ódio, não consegue livrar-se com facilidade. Mas, a palavra de Jesus tem uma eficácia imensurável e, mesmo sofrendo violência, consegue vencer. Aqui está um dos principais elementos do relato: a coerência entre a palavra e a ação de Jesus. Ensinamento e cura-exorcismo (expulsão do espírito mau) na mesma cena significam que em Jesus não há incoerência entre o falar e o agir; Ele é totalmente coerente. Essa é a sua práxis! Com a ordem de Jesus para o espírito mau calar-se, Marcos inaugura um dos temas principais de sua obra: o segredo messiânico. O espírito mau tinha reconhecido a identidade messiânica de Jesus como “Santo de Deus”, mas Jesus só aceita que esse reconhecimento seja fruto de uma experiência que passa pela cruz; por isso, até mesmo aos discípulos ordenará que se calem quando dirigirem-se a ele como o Messias (cf. Mc 8,29-30).

Se só o ensinamento de Jesus já causava admiração (v. 22), essa aumenta ainda mais quando os seus ouvintes percebem a novidade também na prática: “E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus e eles obedecem!” (v. 27). Chama a atenção da assembleia o fato de Jesus não tolerar o mal diante de si. Para os mestres da Lei, pregadores e intérpretes oficiais, não importavam as situações concretas vivenciadas pelos participantes do culto; eles se preocupavam apenas em transmitir a doutrina, em dar o sermão, conforme o costume. Jesus, pelo contrário, colocava a vida e o bem-estar do ser humano em primeiro plano, por isso incomodava às forças do mal ali instaladas. Essa novidade evidencia ainda mais a sua autoridade. E a novidade da práxis de Jesus gera admiração, fama e aceitação da parte do povo, como recorda o evangelista: “E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galiléia” (v. 28). As pessoas estavam saturadas de uma religião indiferente à vida e até conivente com as forças opressoras. Jesus inova no falar e no agir, tirando a doutrina do centro e colocando a vida do ser humano em primeiro lugar. Obviamente, como vai ser mostrado ao longo do Evangelho, muitos conflitos virão como fruto de suas opções, levando-o à cruz, inclusive.

Portanto, tendo no domingo passado designado os primeiros discípulos como “pescadores de seres humanos”, hoje Jesus nos ensina a natureza dessa pesca: ser agente de libertação para a humanidade, livrando o ser humano das situações de opressão e morte. Como de todas as alienações a pior é aquela religiosa, foi no espaço dito sagrado que Ele iniciou sua missão libertadora, pois era ali onde mais se permitia que os seres humanos fossem “afogados”, ou seja, privados de sua liberdade e vida plena. Hoje, seu discipulado é também interpelado a reconhecer quais são as estruturas de domínio do mal, e combatê-las. Vale a pena recordar que, muitas vezes, o mal ainda continua disfarçado de doutrinas, ritos e preceitos.