Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

199. Reflexão para o 5º Domingo do Tempo Comum – Mc 1,29-39 (Ano B)

Ler do Início
06.02.2021 | 12 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
199. Reflexão para o  5º Domingo do Tempo Comum – Mc 1,29-39 (Ano B)
O evangelho que a liturgia propõe para este quinto domingo do tempo comum é Mc 1,29-39. Esse texto é a continuação e conclusão da chamada “jornada de Cafarnaum” (1,21-34), cuja leitura fora iniciada no domingo passado (cf. Mc 1,21-28) e, ao mesmo tempo, o início de uma nova etapa da missão de Jesus em outros lugares da Galileia. De acordo com os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), Jesus adotou a estratégica cidade de Cafarnaum como ponto de apoio para o seu movimento. Para Marcos, essa cidade possui um significado ainda mais forte, pois ele localiza nela também a inauguração solene do ministério de Jesus, apresentando um dia intenso de atividades que contemplam ensinamento e ações libertadoras (exorcismo e cura). Esse dia é chamado pelos estudiosos de “Jornada de Cafarnaum”; funciona como uma síntese programática de todo o ministério de Jesus com as suas principais características – promoção e libertação total do ser humano – incluindo o aspecto subversivo, pois trata-se de um sábado, dia em que não era permitido fazer praticamente nenhuma atividade. Desse modo, o Reino anteriormente anunciado como próximo (Mc 1,15), começava a se manifestar concretamente.

Se no domingo passado o evangelho iniciava com a entrada de Jesus na sinagoga, hoje inicia com o movimento contrário: “Jesus saiu da sinagoga” (v. 29a). Aqui, o evangelista emprega um verbo que significa não apenas sair, mas também escapar, fugir, libertar-se (em grego έξέρχομαι – ecserkomai), fazendo assim uma clara relação com o antigo êxodo. Com isso, Marcos ensina que a sinagoga não é lugar para o discipulado; pelo contrário, como instituição integrante do sistema religioso vigente, a sinagoga fazia parte do aparato de poder e dominação que a religião exercia sobre as pessoas. E as instituições, de um modo geral, são espaços hostis para o discipulado de Jesus porque tendem a impedir a realização do ser humano em sua liberdade e dignidade plenas, pois, à medida em que estabelecem normas e doutrinas inflexíveis, ignoram a ação contínua do Espírito Santo. Logo, a sinagoga é um lugar do qual as pessoas devem ser libertadas, na perspectiva do evangelista. É um espaço que Jesus não evita; pelo contrário, frequenta assiduamente, porém, mais para promover libertação que para cumprir devoção. Por isso, será um espaço de conflito constante no seu ministério.

Saindo da sinagoga, “Jesus foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (v. 29b). A casa (em grego:  οίκία – oikia) é a alternativa proposta por Jesus para a realização do seu projeto em sua primeira dimensão espacial. No âmbito do poder instituído, aqui representado pela sinagoga, não há espaço nem condições para a realização do Reino de Deus. Por isso, é necessário buscar novas formas viáveis de organização que permitam a realização do Reino e, consequentemente da promoção da vida. E a casa é a primeira alternativa. Compreender esse deslocamento da sinagoga para a casa é fundamental para a compreensão de todo o projeto de Reino proposto por Jesus. A casa é o espaço eclesial por excelência; é na casa onde Jesus fala abertamente com seus discípulos, é o lugar da compreensão, da partilha. A Igreja primitiva adotou a casa como o lugar da liturgia, da catequese e do encontro. Se é na casa onde acontece a vida, deve ser na casa o culto agradável ao Deus da vida; um culto não ritual, mas serviçal. Do púlpito da sinagoga não era possível conhecer as necessidades reais das pessoas; isso só é possível indo ao encontro delas, ou seja, indo à casa.

Ao chegar na casa com dois dos discípulos, João e Tiago, Jesus encontra uma situação desconfortável e caótica, necessitada de um gesto libertador da sua parte: “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus” (v. 30). Embora se tratasse apenas de uma febre, de acordo com o texto, essa tinha paralisado a mulher, impedindo-a de exercer suas funções. Se a mulher em pleno estado de saúde já era pouco valorizada naquela sociedade, muito menos seria enquanto enferma; acamada e com febre ela estava totalmente impotente. É interessante que não aparece um pedido de cura; os membros da casa apenas contam a Jesus sobre a situação. O fato de deixar Jesus a par da situação evidencia a confiança nele; é sinal de que ele já estava sendo reconhecido como doador de vida e de sentido para a existência. É também sinal de que naquela comunidade embrionária a mulher terá um papel relevante e até essencial, como mostrará a sequência do texto e de todo o Evangelho de Marcos.

Estando ciente da situação, Jesus não se omite, pois não permite o domínio do mal na vida das pessoas, como fora evidenciado no evangelho do domingo passado. E, para a mentalidade da época, qualquer doença era compreendida como maldição. Por isso, “ele se aproximou, segurou sua mão, e ajudou-a a levantar-se” (v. 31a). O texto não menciona uma única palavra de Jesus, mas apenas gestos. Por sinal, gestos sacrílegos, considerando que era dia de sábado e, portanto, nenhuma atividade manual era permitida naquele dia. Certamente, o evangelista pensou na sua e nas comunidades cristãs de todos os tempos: os gestos de libertação falam mais do que longas e muitas palavras. Sem medo de transgredir, e movido por amor, Jesus se aproxima de uma pessoa com a vida ameaçada; ele não teme nem foge das situações concretas de dor e sofrimento, mesmo que tal atitude fosse proibida pela religião. O gesto de segurar pela mão significa a ação libertadora de Deus ao longo da história. Tanto o êxodo quanto a libertação do exílio babilônico foram atribuídos à força e aos cuidados da mão de Deus (cf. Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.). Logo, segurar pela mão é um gesto que expressa o cuidado de Deus para com a humanidade.

Com um cuidado incomparável, Jesus manifesta sua opção incondicional pela vida e o bem do ser humano. Para expressar o levantar-se da mulher, o evangelista emprega o mesmo verbo grego usado para falar da ressurreição de Jesus (Mc 16,6): έγείρω – egheiro. Com isso, ele quer dizer que Jesus restituiu a vida para aquela mulher. A ressurreição é, por excelência, o triunfo da vida sobre a morte e suas causas. Um gesto simples como segurar a mão do outro pode erguer uma vida; significa que a vida cristã deve ser vivida de mãos dadas, em comunidade, com plena solidariedade e comunhão. Eis, então, as consequências da ação de Jesus: “Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los” (v. 31b). O mal, representado no texto pela febre, não resiste à presença amorosa e cuidadosa de Jesus. Sendo o mal banido da comunidade, as atitudes de serviço se evidenciam. E o serviço é a primeira consequência do encontro verdadeiro com o amor restaurador de Jesus, e o critério para verificar se esse amor está sendo vivido na comunidade cristã. Jesus é doador de vida, e quem recebe essa vida se torna servo e serva de todos, como ele mesmo. Ao evidenciar a atitude de serviço desta mulher específica, o evangelista recorda a importância que as mulheres tinham na Igreja primitiva e devem ter em todos os tempos. Inclusive, ele se refere à atitude da mulher com um verbo muito caro para as primeiras comunidades cristãs: o verbo grego διακονέω – diakonêo, o qual, de imediato, faz recordar a diaconia ou diaconato.

Na sequência, diz o evangelista que “À tarde, depois do pôr-do-sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio” (v. 32). O indicativo temporal “depois do pôr do sol” significa o início do novo dia, já não era mais sábado. Certamente, as pessoas estavam cumprindo o preceito, esperando passar o sábado para levarem seus doentes até Jesus; ainda não tinham compreendido que o bem do ser humano deve estar acima de qualquer norma. Estavam literalmente sob o julgo da Lei. Como a fama de Jesus tinha se espalhado rapidamente (cf. 1,28), era grande a procura pela sua ação libertadora. Nos casos da libertação do homem encontrado na sinagoga com um espírito mau, e da cura da sogra de Pedro, a iniciativa fora de Jesus. Agora, são as pessoas que vão até ele, levando seus doentes. Isso atesta como a jornada de Cafarnaum despertou fama, curiosidade e popularidade. Tanto é, que “A cidade inteira se reuniu em frente da casa” (v. 33). Com isso, o evangelista insiste ainda mais com a ideia da casa como alternativa e oposição à sinagoga. Inclusive, a própria palavra sinagoga significa reunião, mas, ironicamente, o evangelista diz que o lugar de reunião da comunidade seguidora de Jesus é a casa. Se Jesus está na casa, é ali onde as pessoas devem reunir-se; e se as pessoas estão reunidas na casa, é ali onde Jesus está presente. A reunião “em frente da casa” é sinal de liberdade, acolhida e fraternidade, os principais valores da comunidade cristã.

É importante recordar que, embora tenham levado todos os doentes, o evangelista diz que “Jesus curou muitas pessoas de diversas doenças e expulsou muitos demônios” (v. 34). Parece que não curou todas as pessoas doentes, embora tenha curado muitas. É um dado que passa quase despercebido, mas é muito relevante. Aproximar-se fisicamente de Jesus não significa entrar em comunhão com ele. Nas multidões, sempre há incompreensão, falso entusiasmo, risco de dispersão. Estar no meio da multidão não significa necessariamente estar em comunhão. Não basta ir fisicamente ao encontro de Jesus ou participar de momentos de reunião na comunidade; é necessário, antes de tudo, ter disposição interior e disponibilidade para viver os valores do Reino. A comunidade não deve entusiasmar-se simplesmente por juntar multidões; é necessário muito mais para ser, realmente, uma comunidade de discípulos e discípulas.

Terminada a chamada “jornada de Cafarnaum”, Jesus inicia uma nova fase do seu ministério. Como comunicador do Reino de Deus, ele precisava nutrir sua intimidade com o Pai através da oração, como atesta o evangelista: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto” (v. 35). Essa informação também é muito significativa. Embora Marcos não chegue a desenvolver uma “teologia da oração” como Lucas, ele recorda Jesus rezando em três ocasiões importantes: aqui, após a jornada de Cafarnaum; após a primeira multiplicação dos pães (Mc 6,46); e no Getsêmani, às vésperas da crucifixão (Mc 14,35). Significa que esses três momentos são indispensáveis para a catequese da comunidade. Jesus sentia necessidade de comunicar-se com o Pai para permanecer fiel em sua missão. A atitude de retirar-se também mostra que ele não se deixou levar pelo aparente sucesso do dia anterior. A oração capacita para o discernimento, fortalece as convicções. Muitas vezes o ativismo das comunidades deixa essa dimensão importante da vida cristã passar despercebida. Aqui o evangelista deixa um recado muito claro para a sua comunidade e para as demais.

Enquanto rezava, porém, “Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando o encontraram, disseram: “Todos estão te procurando” (vv. 36-37). Os discípulos, ainda principiantes no seguimento, queriam certamente que Jesus repetisse os feitos da jornada anterior, refazendo o mesmo percurso. É a tentação do comodismo, da fama e do poder. Alimentado pela oração e, portanto, cada vez mais convicto de sua missão, “Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (v. 38). Aqui o aspecto dinâmico e itinerante do movimento de Jesus é evidenciado, bem como o universalismo do seu alcance é pré-anunciado. Mesmo sendo desenvolvida inicialmente na Galileia, a itinerância da missão de Jesus antecipa a universalidade que deve marcar o discipulado cristão de todos os tempos. Cafarnaum era apenas um ponto de apoio; a missão de Jesus não poderia ficar circunscrita a uma localidade. O instalar-se duradouro num lugar pode gerar comodismo. Ir a outros lugares é uma necessidade de quem vive a Boa Nova e os valores do Reino.

É preciso ir aonde as pessoas têm necessidade de vida abundante e de libertação, como atesta o versículo conclusivo: “E andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os demônios” (v. 39). A pregação e a expulsão dos demônios sintetiza a práxis de Jesus. Quer dizer que a sua missão é marcada por palavras e ações, como deve ser a missão da comunidade cristã em todos os tempos. A pregação só tem credibilidade se for acompanhada de gestos concretos de libertação em favor das pessoas mais necessitadas. A expulsão dos demônios significa o bem operado por Jesus em todas as dimensões; é a libertação do ser humano de todas as amarras, e ele priorizava os ambientes onde as pessoas estavam mais acorrentadas: os espaços de domínio da religião, como símbolo de todas as formas de poder e dominação. A expressão “suas sinagogas” alude ao distanciamento que Jesus começa a tomar das instituições de Israel. É um prenúncio do conflito com a religião oficial que irá marcar todo o seu ministério, cujo ápice será o processo em Jerusalém. Certamente, por onde passava ele fazia a passagem da sinagoga para a casa, libertando do peso da lei para o bem da vida, em espírito de serviço e gratuidade.

À maneira de Jesus, as comunidades cristãs de hoje devem priorizar a importância e a necessidade de ir sempre a outros lugares. É essa a postura de uma Igreja, de fato, em saída e fiel aos ensinamentos de Jesus. Os outros lugares são todas as margens e encruzilhadas onde há pessoas necessitadas e excluídas, vítimas das mais diversas formas de dominação e exploração. Mas é também a casa, onde muitas vezes há pessoas acomodadas, fechadas e solitárias, necessitadas de encontro e partilha. E tudo isso, é claro, só tem sentido e credibilidade se houver coerência entre a pregação e gestos concretos de libertação.