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72. Reflexão para o 24º domingo do Tempo Comum (Mc 8,27-35)

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15.09.2018 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
72. Reflexão para o 24º domingo do Tempo Comum (Mc 8,27-35)

Neste vigésimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia nos apresenta o episódio central e divisório do Evangelho segundo Marcos: a confissão de fé de Pedro, em nome de todo o grupo dos discípulos, e o primeiro anúncio da paixão. O texto proposto, Marcos 8,27-35, é um divisor de águas também no itinerário missionário e messiânico de Jesus, pois marca o início do seu caminho para Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão e morte, culminando com a ressurreição. É, portanto, o início de uma etapa decisiva que exige muita convicção nos discípulos. Se trata de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (cf. Mc 8,27ss; Mt 16,13-19; Lc 19,18-22), cuja versão mais rica é essa de Marcos, com mais probabilidade de correspondência com os fatos reais.


Dividido em duas grandes partes, o Evangelho segundo Marcos tem como finalidade apresentar Jesus como o Cristo, ou seja, como o messias, e como o Filho de Deus, como já se percebe em seu primeiro versículo: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Toda a primeira parte, capítulos de 1 a 8, visa gerar na comunidade a certeza de que Jesus de Nazaré é o messias, tão esperado por Israel ao longo dos séculos; por isso, essa é concluída com a proclamação solene de Pedro, em nome da comunidade dos discípulos, afirmando “Tu és o Cristo” (o nome Cristo, em grego χριστóς - christós, significa messias ou ungido). Já a segunda parte, capítulos de 9 a 16, visa levar a comunidade a acreditar que o messias é também o Filho de Deus, cuja certeza é dada pela confissão do centurião romano no momento da morte de Jesus: “realmente, esse homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). A maturidade da comunidade, portanto, pode ser verificada pela sua capacidade de professar livremente essas duas verdades a respeito de Jesus de Nazaré, dando-lhe adesão até as últimas consequências.


Olhando especificamente para o texto do evangelho de hoje, a nossa primeira observação diz respeito à dimensão espacial: Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesaréia de Filipe” (v. 27b). Esse dado possui grande relevância, considerando a localização e a importância da cidade de Cesaréia de Filipe. Ora, como Cesareia estava localizada no extremo norte da Galileia, em área já considerada pagã, esse dado representa uma espécie de isolamento dos discípulos em relação à ideologia nacionalista. Lá, eles estariam livres para emitir uma opinião isenta de qualquer influência ideológica e preconceitos. Para reconhecer a verdadeira identidade de Jesus é necessário isolar-se dos esquemas religiosos de Israel. Além disso, a cidade de Cesareia, como o próprio nome indica, era uma homenagem a César, um dos títulos de honra do imperador romano; logo, o reconhecimento de Jesus como messias, na “cidade de César” representava a oposição do projeto do Reino de Deus às forças de morte movidas pelo poder opressor romano.


Com esse dado, o evangelista quer ensinar que as duas primeiras exigências para o seguimento convicto de Jesus é o rompimento com as ideologias, religiosas principalmente, e a coragem para confrontar toda forma de poder oposta ao Reino de Deus. Essa era a situação da comunidade do evangelista Marcos, na época da redação do evangelho: escrito fora da Palestina, quando a convivência com a comunidade judaica já tinha se tornado insuportável e, especificamente, na cidade de Roma, capital do império, em época de forte perseguição. Portanto, o evangelista, para fortalecer os cristãos da sua comunidade, narra esse episódio para mostrar que aquela situação presente já tinha sido prevista e vivida pelo próprio Jesus com seus primeiros discípulos.


Em situações de hostilidade, é necessário renovar as convicções para continuar o seguimento. Assim, Jesus faz uma espécie de consulta a respeito da sua própria imagem, não interessado em fama, mas somente para saber se estava sendo compreendido juntamente com a sua mensagem; não era preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio na comunidade. Por isso, ainda “no caminho, perguntou aos discípulos: ‘Quem dizem os homens que eu sou?’” (v. 27). Aqui, o evangelista faz questão de evidenciar o aspecto itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio, o que também reflete a situação da comunidade do evangelista: expulsos da sinagoga, os cristãos já não tinham lugar fixo para a pregação, buscando espaços alternativos, como as casas, as estradas e até os cemitérios. Não obstante esses desafios, a clareza e a convicção do seguimento são fundamentais para a vida da comunidade.


A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual Jesus já gozava entre o povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem mais lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias, outros, ainda, que és algum dos profetas” (v. 28). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.


A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 29a). Que as pessoas de fora o conhecessem apenas superficialmente, seria tolerável, mas dos discípulos, esperava-se uma resposta mais profunda e convicta, como de fato aconteceu: “Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias’” (v. 29b). Aqui, Pedro fala em nome do grupo. Essa é a resposta da comunidade. Embora correta, a resposta de Pedro e da comunidade não é satisfatória, por isso, “Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito” (v. 30). Dizer que Jesus é o Messias, é o mesmo que dizer o Cristo, como de fato ele era. O que fez ele proibir Pedro de repetir essa fórmula foram as possibilidades de incompreensão que essa comportava. Ora, o messias esperado pelos judeus, cujas expectativas foram alimentadas por muitos séculos, desde a época do exílio, era um guerreiro, um restaurador do reino de Davi. Essas expectativas diziam respeito a um único povo e religião, enquanto a mensagem de Jesus é universalista e acessível a todos os seres humanos, independente de qualquer cultura, etnia e religião. Portanto, podemos afirmar que Pedro deu a resposta correta – Jesus é mesmo o Cristo – mas não tinha ainda a consciência ideal – Jesus não veio para restaurar o reino de Davi, mas para implantar o Reino de Deus, como realidade universal.


Diante do equívoco dos discípulos, representados por Pedro, Jesus inaugura uma nova etapa da sua catequese, buscando revelar a sua verdadeira identidade de messias “às avessas”: o messias descendente de Davi, esperado pelos judeus, era um guerreiro, viria ao mundo para combater e matar os inimigos de Israel, restaurando o trono outrora ocupado por Davi e Salomão; Jesus mostra que sua missão é o contrário de tudo isso: “o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (v. 31). Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho. Ao invés de matar, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, essa deveria ser também a sorte dos seus discípulos.


Fechado na mentalidade nacionalista, Pedro não aceita um messias sofredor, por isso, “tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo” (v. 32). Essa atitude de Pedro é absurda e inaceitável. O verbo repreender (em grego: επιτιμαω – epítimao) significa condenar por um erro, reprovar bruscamente; fazendo isso, Pedro nega a sua condição de discípulo, e é chamado por Jesus a assumir o seu verdadeiro lugar: “Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: ‘Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens’” (v. 33). Jesus, como mestre, tem autoridade para “repreender” e condenar a atitude absurda de Pedro. Ao chama-lo de satanás, Jesus está apenas dizendo que, com aquela postura, Pedro está sendo obstáculo para o Reino de Deus. Pedro queria evitar a cruz para Jesus e seus companheiros. Jesus, ao contrário, afirma que a cruz é condição para o seguimento (v. 34). Porém, ao contrário do que a tradução litúrgica do texto afirma, Jesus não manda Pedro para longe, mas apenas para trás de si. Aqui, ele usa a mesma expressão do chamado vocacional: “segue-me” – empregada em Mc 1,17; 8,34 (em grego: οπισω μου – opísso mu). Jesus repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo, apenas diz “vai para trás de mim”, “assume teu lugar de discípulo”, ou simplesmente “segue-me”. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre, assim como, na comunidade cristã, nenhuma pessoa pode ter a última palavra, pois essa é sempre de Jesus.


Devido a tentação de Pedro, querendo suavizar o seguimento, diminuindo as suas consequências, Jesus aproveita para reforçar as convicções e a necessidade de disposição de dar a vida por sua causa e pelo Evangelho (vv. 34-35). De fato, o discipulado é incompatível com o egoísmo e a falta de coragem de dar a vida por causa do Evangelho. A comunidade se torna, de fato, cristã, ou seja, discípula, quando encontra o seu verdadeiro lugar: sempre atrás do mestre, no seguimento, não impondo os pensamentos humanos, mas apenas seguindo e fazendo o que Jesus pediu.