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230. Reflexão para o 22° Domingo do Tempo Comum – Mc 7,1-8.14-15.21-23 (Ano B)

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28.08.2021 | 1 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
230. Reflexão para o  22° Domingo do Tempo Comum – Mc 7,1-8.14-15.21-23 (Ano B)
A liturgia deste domingo – o vigésimo segundo do tempo comum – retoma a leitura do Evangelho de Marcos, após uma interrupção de cinco domingos seguidos, quando foram lidos trechos do capítulo sexto do Evangelho de João e um trecho de Lucas, na solenidade da Assunção. O texto proposto para hoje é Mc 7,1-8.14-15.21-23; está bastante fragmentado, como se vê. Seria mais interessante a leitura completa (vv. 1-23); contudo, devemos nos contentar com o que a liturgia oferece. O trecho selecionado mostra mais uma controvérsia de Jesus com os fariseus e mestres da lei. Os devotos praticantes da religião oficial, fiéis guardiões da moral e dos bons costumes, observam que o comportamento de Jesus e seus discípulos não condiz com as tradições ensinadas e transmitidas pelos antepassados, por isso fazem alguns questionamentos e acusações, sendo não apenas respondidos, mas desmascarados por Jesus. A controvérsia presente no texto de hoje diz respeito às leis de pureza relacionadas às práticas alimentares, uma das principais causas dos conflitos entre o judaísmo oficial e as primeiras comunidades cristãs.

Diz o texto que “Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado” (vv. 1-2). Já fazia algum tempo que Jesus era considerado uma pessoa perigosa para a religião e o sistema dominante como um todo, devido à sua maneira autônoma e livre de interpretar os costumes e tradições do seu povo, colocando sempre o bem da pessoa humana acima de qualquer norma. Por isso, seu ministério era monitorado pelas autoridades religiosas de Jerusalém que, informadas pelos fariseus da Galileia, enviavam comitivas para fiscalizar e conferir o seu comportamento fora dos padrões estabelecidos pela religião e a cultura da época (cf. Mc 3,22). Dessa vez, os alvos da denúncia são os discípulos, acusados de não observar as leis de pureza relativas à alimentação, e não Jesus mesmo. Isso mostra que o texto reflete mais a época da redação do Evangelho (anos 60–70 d.C.) do que propriamente o tempo de Jesus. Porém, é impossível separar a prática dos discípulos da prática do mestre. Portanto, é inegável que o próprio Jesus recebeu críticas e acusações por causa dessa prática, e a vida dos discípulos das primeiras gerações era verdadeira extensão da sua. A acusação é de que os discípulos comiam sem antes lavar as mãos. A prática de lavar as mãos antes da refeição não era uma regra de higiene, como é hoje, mas um preceito religioso: deixar de lavar as mãos tornava a pessoa impura e, por isso, distante de Deus. A não observância desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, era uma denúncia a essa mentalidade religiosa fundamentalista e excludente, que reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. Era uma regra de higiene o lavamento dos pés, a mais humilhante função do escravo, e isso Jesus recomendou que os discípulos fizessem uns aos outros como sinal de serviço (cf. Jo 13,1ss). 

Escrevendo seu evangelho fora da Palestina, provavelmente em Roma, e para uma comunidade que já não conhecia tão bem as tradições judaicas de pureza alimentar, o evangelista, para informar melhor os seus leitores, oferece uma nota explicativa: “Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre” (vv. 3-4). Conforme a maioria dos estudiosos, essa explicação do evangelista é um dos principais elementos que atestam a redação da obra fora da Palestina, e a predominância de cristãs de origem não judaica como destinatários, ou seja, pessoas que não conhecia certos costumes judaicos. Com ela, o evangelista visa advertir seus leitores a não reproduzirem na comunidade cristã as atitudes que Jesus reprovou na religião judaica de seu tempo. Como já afirmamos acima, as motivações de tal comportamento imposto pela religião não eram higiênicas, mas religiosas. O motivo de ter de tomar banho ao voltar da praça, por exemplo, era que o contato com outras pessoas que não praticassem a mesma religião tornava o judeu impuro e, de consequentemente, longe de Deus. A praça (em grego: ἀγορά – agorá), que poderia ser  traduzida também por mercado, era o espaço de circulação de pessoas, comercialização de produtos e propagação de doutrinas filosóficas e religiosas, onde se encontravam pessoas de diversas culturas; para os judeus mais fundamentalistas, era um lugar perigoso, pois o simples contato com uma pessoa de outra cultura já tornava o judeu impuro; por isso, ao retornar para casa, era necessário purificar-se o quanto antes, com o ritual do lavar-se (ablução). Havia prescrições determinando até mesmo a maneira de lavar os objetos domésticos (v. 4).

No mundo antigo, tanto na cultura greco-romana quanto na semita, os mestres tinham a responsabilidade de responder pelo comportamento dos seus discípulos. Por isso, quando se via em algum discípulo um comportamento irregular, fora dos padrões estabelecidos, era ao mestre que se reclamava e criticava. Inclusive, escritos extra-bíblicos do final do primeiro século e início do segundo, sobretudo de autores a serviço do império romano, continuavam “culpando” um certo “Cristo” pelo comportamento subversivo dos cristãos, o que reforça a responsabilidade do mestre do mestre em relação aos discípulos. É nessa perspectiva, portanto, que os vigilantes da religião pedem satisfações a Jesus: “Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: ‘Porque os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” (v. 5). Mais do que um simples questionamento, essa pergunta dos fariseus e mestres contém uma grave acusação: os discípulos de Jesus não seguem as tradições dos pais! Ora, além dos numerosíssimos mandamentos da Torá, principalmente as leis do Levítico, os judeus mais fiéis, como os fariseus, seguiam também as leis da “tradição oral”; a essa tradição, eles atribuíam o mesmo valor da lei escrita, a Torá, pois também consideravam proveniente de Deus e transmitida a Moisés, o qual a repetiu para Josué e depois aos sucessivos chefes religiosos. Deixar de cumprir um só daqueles preceitos era ofender a Deus e desonrar os antepassados.

À pergunta acusatória dos fariseus e mestres da lei, “Jesus respondeu: ‘Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (v. 6-7). A resposta de Jesus se fundamenta na herança mais autêntica da religião de Israel: a profecia! Ele cita explicitamente Isaías 29,13, denunciando a falsidade da religiosidade dos fariseus e mestres da lei e, ao mesmo tempo, provocando-os a buscar uma religião autêntica, vivida a partir de dentro, ou seja, do coração. Mesmo que tenha sido cultivada e transmitida durante muitos séculos, a tradição que separa, segrega e condena, não passa de preceito humano, não pode ser de origem divina. Ao chamar os fariseus e mestres da lei de hipócritas (ὑποκριτής – hipocritês), termo grego que significa ator de teatro, Jesus denuncia que toda aquela religiosidade não passava de encenação, era um mero espetáculo, como é toda religião que, independente da época histórica, prioriza o rito e o preceito ao invés do amor, da justiça e da misericórdia. Jesus atualizou a denúncia profética de Isaías e o evangelista Marcos convida os seus leitores de todos os tempos a fazer o mesmo, inclusive a ler as Escrituras somente tendo Jesus como chave interpretativa.

Jesus troca de interlocutores, considerando o risco que era a mentalidade dos fariseus para a multidão. Por isso, à multidão, transmite um ensinamento solene e importante: “Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai, todos, e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (vv. 14-15). Com esse ensinamento, Jesus decreta a inutilidade e ineficiência dos ritos judaicos de purificação e proclama que a relação do ser humano com Deus não depende de fatores externos, mas simplesmente do interior, ou seja, do coração. O mal não entra de fora no ser humano por contato com pessoas, coisas, lugares e alimentos, mas pode nascer de dentro quando o amor não é cultivado no coração, como ele mesmo afirma, na sequência: “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo” (vv. 21-22). Esses treze elementos citados constituem o que pode realmente tornar o ser humano impuro, ou seja, longe de Deus, e são típicos de quem se fecha ao amor e à justiça; não são ocasionados por situações exteriores, mas depende somente do coração da própria pessoa. Por “falta de juízo”, o último dos males elencados, entende-se o egoísmo desenfreado que faz a pessoa pensar somente em si.

Assim, como “todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (v. 23), a boa religião para Jesus é aquela ajuda o ser humano a promover o bem e a ser, a cada dia, uma pessoa melhor. Na perspectiva de Jesus, conforme o relato de Marcos, a religião só tem sentido se ela for um fator de humanização. Reduzida a um conjunto de tradições, ela é apenas um elemento, talvez o mais perverso, a serviço do sistema dominante. O ser humano é impuro quando não permite que de seu coração saiam coisas boas. Nenhum rito ou norma é capaz de determinar a relação com Deus, nem de determinar a bondade do ser humano, mas somente a disposição interior de fazer o bem. E, é claro, o contato com o Evangelho de Jesus ajuda na criação das disposições interiores à prática do bem.