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226.. Reflexão para o 18º Domingo do Tempo Comum – Jo 6,24-35 (Ano B)

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31.07.2021 | 1 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
226.. Reflexão para o 18º Domingo do Tempo Comum – Jo 6,24-35 (Ano B)
Neste décimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. Embora a liturgia salte alguns versículos (cf. Jo 6,16-23), o texto proposto para hoje – Jo 6,24-35 – está em perfeita continuidade com aquele do domingo passado (cf. Jo 6,1-15). Após o sinal da partilha ou multiplicação dos pães, a multidão, saciada e impressionada com o sinal cumprido por Jesus, teve a tentação de querer proclamá-lo rei, o que fez com que ele se afastasse, pois, aquela ideia era uma distorção do sinal cumprido e da sua própria missão de enviado de Deus. Ora, uma interpretação equivocada dos sinais cumpridos por Jesus e da sua identidade de messias servidor colocava em risco a eficácia do seu projeto de libertação e vida plena para a humanidade inteira. Por isso, João mostra Jesus mesmo corrigindo as incompreensões da multidão e explicando o verdadeiro sentido do sinal realizado, como mostram o evangelho de hoje e dos próximos três domingos. Isso faz de Jesus o exegeta de si mesmo no Quarto Evangelho, pois é ele quem explica sua identidade e seu agir.

Enquanto Jesus se refugiou para não alimentar os anseios triunfalistas e interesseiros da multidão, essa o procurou até encontrá-lo, já na outra margem do mar ou lago, na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: “Quando a multidão viu que Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram às barcas e foram à procura de Jesus, em Cafarnaum” (v. 24). Embora Jesus mesmo tenha se afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar ao seu redor, uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como ovelha sem pastor, de quem Jesus sentiu compaixão (cf. Mc 6,34). Diante da multidão abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha como primeiro meio de superação da crise material pela qual passava. Porém, ele se preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria alimentar falsas e ilusórias expectativas.

Ao encontrar Jesus, a multidão interage com ele, pela primeira vez, em forma de diálogo: “Quando o encontraram no outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quando chegaste aqui?” (v. 25). Convém recordar que, no episódio da partilha dos pães propriamente, não houve uma interação direta; Jesus simplesmente percebeu a fome da multidão e providenciou a solução, por meio da partilha. Agora, há um verdadeiro diálogo. A pergunta em si é pouco significativa e carente de profundidade, mas muito importante porque abre caminho para uma interação cada vez maior entre o Mestre – Rabi, em hebraico – e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão consegue ver Jesus como alguém acessível, o que poderia ser o início de uma nova compreensão a seu respeito. Ao considerá-lo mestre, abre-se a possibilidade para o nascimento de um novo discipulado. De fato, fazia parte da pedagogia de Jesus gerar discípulos e discípulas a partir das multidões anônimas. Jesus não responde à pergunta.

À pergunta da multidão, “Jesus respondeu: ‘Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes os sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v. 26). Com bastante clareza e objetividade, Jesus expõe as intenções da multidão lhe procurarem. Não se tratava de reconhecê-lo e aceita-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e dar vida em abundância (cf. Jo 3,16; 10,10), mas de querer perto de si alguém que fornece pão gratuitamente. Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que tinha feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião, mas aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo evangelista João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã de todos os tempos.

Cercado por uma multidão saciada recentemente por poucos pães e peixes, mas já faminta de novo, Jesus a convida a buscar algo muito maior e mais eficaz: “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com seu selo” (v. 27). Esse convite-imperativo se assemelha muito ao que Jesus já tinha feito à mulher samaritana que buscava água no poço de Jacó; ali, Jesus falara que a água daquele poço saciava por alguns momentos e, embora necessária, beber dela não era suficiente para o ser humano viver saciado. Por isso, ele falou de uma água que saciava para sempre (cf. Jo 4,1-42). Aqui, com a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida a alimentar-se com um alimento que não se perde, mas que permanece até a vida eterna. Esse alimento só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do Homem, marcado pelo Pai com o seu selo, que é o Espírito Santo e o amor que os une.

Com o sinal da partilha dos pães, Jesus tinha ensinado a multidão a superar, por si mesma, as suas dificuldades, principalmente o problema da fome. Com os pães e peixes apresentados pelo menininho, ficou a lição da partilha e solidariedade que brota dos pequenos. Aquele gesto poderia e pode ser feito sem a presença física de Jesus, por isso, ele via como desnecessária a busca da multidão por algo que ela mesma seria capaz de fazer, se tivesse aprendido a lição da partilha. Daí, o convite para buscar algo mais profundo e não menos necessário: o alimento para uma vida plena, com sentido e dignidade plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas, amando com um amor à sua maneira. É isso o que gera eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.

Parece que as palavras de Jesus geraram reflexão na multidão, e um desejo de aprofundamento, embora essa ainda estivesse presa à teologia retributiva da lei: “Então perguntaram: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28). A pergunta sobre “o que fazer” é típica da mentalidade judaica, de quem foi educado para fazer e não para ser. Fazer obras para merecer algo é negar a salvação como dom de Deus. Por isso, a resposta de Jesus é categórica: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou” (v. 29). Embora fosse uma característica das comunidades paulinas, parece que a dicotomia entre fé e obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo menos é isso o que esse trecho revela. A resposta de Jesus esclarece que não se trata de um fazer, mas de acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer é importante, mas isso deve ser consequência de uma adesão livre e consciente, e não de uma mera imposição legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há uma regra que determine, e sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é motivado a agir como ele, servindo e amando, sanando dores e feridas, estando sempre do lado das pessoas mais necessitadas.

Na continuidade da interação entre Jesus e a multidão, da qual surgirá a grande catequese eucarística, que será continuada nos próximos domingos, percebemos a curiosidade e o desejo da multidão em aderir à proposta de Jesus, e ao mesmo tempo os entraves ideológicos de uma religião conservadora, ritualista e legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a exigência de sinais e prodígios, e a comparação com o passado: “Eles perguntaram: “Que sinal realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra fazes?  Nossos pais comeram o maná no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer” (vv. 30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação com a comunidade que necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é impor condições, o que faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor gratuito e incondicional de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas narrativas portentosas do Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam exageradamente os atos de Moisés, as pessoas tinham dificuldades de assimilar e aceitar que Deus pudesse se revelar na simplicidade de Jesus. A menção à experiência do deserto e aos pais que lá comeram o pão – o maná – evidencia a denúncia que o evangelista mostra de como o apega às tradições podem bloquear a comunidade de sentir a graça e o amor vivificante e gratuito de Deus revelado em e por Jesus.

Jesus responde de modo categórico: “Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v. 32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em grego: ἀμὴν ἀμὴν – amén, amén) sempre introduz um ensinamento de fundamental importância. E a distinção entre Jesus e todos os personagens do Antigo Testamento é muito importante e indispensável para a sobrevivência da comunidade cristã. Jesus esclarece que, na verdade, até mesmo aquele pão comido no deserto pelos antepassados já era dom de Deus, e não obra de Moisés; e aproveita para apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão de Deus”, o que continua despertando curiosidade e interesse na multidão que pediu: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (v. 34), assim como a samaritana tinha pedido a água eterna.

Jesus percebe que o caminho estava preparado para iniciar a sua grande catequese eucarística: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (v. 35). Com a fórmula “Eu sou” (em grego: ἐγώ εἰμι – egô eimí) ele afirma sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus (cf. Ex 3,6.14). com isso, ele reafirma também a sua superioridade em relação a Moisés. De provedor de pão que alimenta por poucas horas, ele se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Para a mentalidade, o pão significava a própria vida, era símbolo e síntese de todo o necessário para viver. Logo, ao apresentar-se como pão Jesus se autorrevela fonte de vida em abundância. Aceitar essa revelação implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do grande discurso eucarístico de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será continuado na liturgia dos próximos domingos. A verdadeira explicação do sinal da partilha dos pães começa aqui. É interessante recordar que, apesar de ser o sinal (milagre) mais recordado, pois é narrado seis vezes, o sinal da partilha dos pães é o mais incompreendido. Por isso, João dá a palavra a Jesus para explicá-lo com um longo discurso, o qual será distribuído na liturgia dos próximos três domingos.

Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu a multidão ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira de viver de Jesus. Para concluir, é importante salientar que a catequese eucarística de Jesus no Evangelho de João não é uma relativização da fome de pão material; tanto é que ela vem depois do sinal da partilha (multiplicação). Como necessidade urgente e concreta, o problema da fome foi resolvido primeiro; depois veio a catequese. Isso só reforça que a práxis de Jesus era marcada pelo “fazer e ensinar”, como deve ser na vida da comunidade cristã.