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163. Reflexão para a Solenidade da Santíssima Trindade - Jo 3, 16-18 (Ano A)

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07.06.2020 | 9 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
163. Reflexão para a Solenidade da Santíssima Trindade - Jo 3, 16-18 (Ano A)

No domingo seguinte a pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa já foi introduzida num período mais tardio – século quatorze. Como sempre, a nossa reflexão será pautada exclusivamente pelo evangelho, sem levar em consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade. Por isso, ao invés de buscar definições e explicações para o mistério do Deus Uno e Trino, no qual cremos, procuraremos contemplar e assimilar a sua principal característica – o amor – revelada por Jesus, de acordo com o texto evangélico que a liturgia propõe neste ano: Jo 3,16-18. Apesar de curto, composto de apenas três versículos, esse texto possui uma profundidade e riqueza extraordinárias, como veremos no decorrer da reflexão. Como sempre, para o texto ser melhor compreendido, é necessário conhecer o seu contexto, como faremos a seguir.


Localizado ainda no início do Quarto Evangelho, esse texto faz parte do expressivo diálogo entre Jesus e Nicodemos, em Jerusalém. Ora, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da “páscoa dos judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande cidade, Jesus realizou muitos sinais, despertando, além de oposição nas autoridades, adesão ao seu nome e curiosidade em alguns, como Nicodemos, com quem desenvolveu um prolongado e rico diálogo (Jo 3,1-21). Esse diálogo se desenvolve em três momentos: o reconhecimento da autoridade de Jesus por Nicodemos (3,1-3); a explicação de Jesus que para acolhê-lo como enviado do Pai é necessário nascer do alto (3,4-8), e a descrição do projeto divino de salvação (3,9-21). Embora se trate de um diálogo, Nicodemos pouco fala; a palavra é praticamente monopolizada por Jesus; Nicodemos quase só escuta. Inclusive, no texto de hoje só temos palavras de Jesus, segundo o evangelista.


O evangelista descreve Nicodemos como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus (Jo 3,1), profundo conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de Jesus. Sua curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela sinceridade e respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte de Deus” (Jo 3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer, conforme as informações fornecidas pelos quatro evangelhos. A leitura atenta do texto em seu conjunto (Jo 3,1-21) revela que Nicodemos não estava satisfeito com a religião oficial. Parece que a imagem do Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia plenamente. Certamente, ele desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse pronto para romper com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples curiosidade, no entanto, já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado à estrutura religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos aparecerá em mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições a favor de Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado como fonte de água viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em seu sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que ouvia a seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com ele.


Como último aspecto a nível de introdução e contexto, recordamos as circunstâncias em que Nicodemos procurou Jesus: foi na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse detalhe tem sido alvo de muitas tentativas de explicação pelos estudiosos. A explicação mais conhecida afirma que Nicodemos procurou Jesus à noite para não ser visto pelos seus colegas de doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes religiosos de Jerusalém, uma vez que Jesus não era bem visto por esse meio. De fato, para quem defendia a moral e os bons costumes na época, Jesus era uma péssima companhia. Porém, é provável que o evangelista tivesse intenções mais teológicas do que cronológicas para registrar esse detalhe, o que não convém aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho de hoje, mas apenas um elemento do seu contexto.


Passemos, finalmente, ao estudo do texto, o qual começa com a seguinte afirmação de Jesus: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente, e ao mesmo tempo se auto apresenta como a prova desse amor incondicional, já que é, ele mesmo, o Filho único doado ao mundo. Essa é a primeira vez em que aparece o verbo do amor por excelência, no Quarto Evangelho: o verbo grego “agapáo”, o qual aparecerá mais trinta e cinco vezes. De quatro verbos correspondentes a amar na língua grega, somente “agapáo” expressa um amor incondicional e gratuito, que compreende a doação da vida. E assim é o amor de Deus: Ele deu seu Filho ao mundo sem exigir reciprocidade; a resposta de amor a Ele da parte do mundo, ou seja, de cada ser humano, é simplesmente consequencia de sentir-se amado. Com essa afirmação, Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: na verdade, é Deus quem ama cada pessoa sobre todas as coisas. O mundo, para a teologia joanina, pode significar toda a humanidade, a criação inteira e, ainda, a oposição a Jesus e sua mensagem de salvação. Aqui, significa toda a humanidade; o gênero humano como destinatário do amor incondicional de Deus, o Pai.


A primeira finalidade da oferta de Jesus – 0 Filho – pelo Pai ao mundo é a vida eterna, o que não se trata de uma promessa para o além, mas de um dom para o presente. O adjetivo “eterna”, aqui, não significa a duração, mas a qualidade da vida de cada pessoa que acolhe o dom do Pai, Jesus. Não é um prêmio reservado para os bons após a morte, mas a vida ressignificada de quem faz uma experiência autêntica com Jesus. É a vida autêntica e plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, a sua vida se eterniza. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver autenticamente como imagem e semelhança do criador, à maneira de Jesus. E a humanidade tem a oportunidade de fazer essa experiência, pois o dom do Filho é acessível a ela toda, e não apenas a um povo. O amor de Deus é ilimitado e universal.


O segundo versículo reforça o que diz o primeiro com maior precisão: “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). A primeira frase, em forma de negação, enfatiza ainda mais o projeto de salvação de Deus, dizendo o que o Filho não veio fazer no mundo: condenar ou julgar. Considerando que o interlocutor de Jesus é um fariseu, observador impecável da Lei, essa frase adquire um sentido ainda mais forte: Deus não condena e nem julga ninguém; o versículo seguinte deixará isso ainda mais claro, ao afirmar que a condenação é opção pessoal de cada um(a). O pecado da humanidade não diminui o amor de Deus; tudo o que ele quer é que a humanidade seja salva; por isso, deu o seu Filho único. Salvar significa libertar, e é a missão que o Pai confiou a Jesus, ao enviá-lo ao mundo. A mensagem de Jesus é uma proposta de libertação plena para o ser humano. E a primeira prisão da qual Jesus quer libertar o ser humano é de uma concepção equivocada de Deus: a passagem da ideia de um Deus como juiz e patrão, para um Deus que é Pai e “louco” de amor pelos seus filhos. É importante recordar esse diálogo com Nicodemos é, na verdade, o primeiro discurso de Jesus no Quarto Evangelho; e sua primeira preocupação foi revelar que Deus é Pai e só tem amor para oferecer à humanidade.


Enquanto nos dois primeiros versículos Jesus falou da iniciativa de Deus, neste terceiro ele fala da resposta humana ao dom de Deus, com suas respectivas consequências: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). Assim como foi livre a oferta do Pai, também deve ser livre a resposta do ser humano. Não é mais o Deus do templo, que exigia ofertas e sacrifícios como contrapartida a favores e bênçãos; é o da Deus da liberdade e da vida. O verbo crer no Quarto Evangelho tem um significado muito profundo, relacionado ao amor, inclusive. Significa responder positivamente ao amor de Deus, assimilando o programa de vida de Jesus. Para quem faz essa opção, obviamente, não há condenação; se torna uma pessoa livre e realizada, com uma vida plena de sentido, ou seja, eternizada. Quem rejeita essa oferta, perde a oportunidade de dar sentido à vida, e é essa a condenação da qual fala Jesus aqui; não se trata de um castigo futuro, mas de uma opção pessoal de viver fora da comunhão com Deus ainda aqui na presente existência. Em outras palavras, o evangelista diz que a mensagem de Jesus exige uma tomada de posição pró ou contra.


A certeza que temos é de um Deus Pai, que ama a humanidade incondicionalmente. É isso que o evangelho de hoje deixa claro. Ao amor, a única resposta convincente é também o amor. Mesmo que o Pai não exija que lhe amemos, se nos deixarmos envolver pelo seu amor revelado em Jesus, não poderemos reagir de outra maneira que não seja amando a ele e ao próximo como imagem sua. Portanto, sem condições e nem capacidades para descrever um Deus que é Um, mas que são três pessoas, arrisquemos a viver por amor como seu Filho viveu.