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64. Ezequiel, de sacerdote a profeta

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10.08.2020 | 8 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Diversos
64. Ezequiel, de sacerdote a profeta


O argentino padre Toto atende fieis na entrada da igreja na favela Villa 21, em meio à pandemia. Ele faz parte dos 'padres de favelas', que não apenas realizam missas, mas também organizam, acompanham e dão soluções para os problemas práticos (Juan Mabromata/AFP)





"Filho do homem, come o que tens diante de ti.
Come este rolo e vai falar à casa de Israel" (Ez 3,1)




 

Exilados das celebrações litúrgicas presenciais,

muitos presbíteros caíram em crise de identidade





 

Ezequiel, filho de Buzi, era sacerdote e exercia seu ofício no templo de Jerusalém, em Judá, reino do Sul, por ocasião da invasão do rei Nabucodonosor, da Babilônia (597aC). Como todo sacerdote, Ezequiel vivia a serviço da liturgia: fazer holocausto, receber oferendas, realizar rituais prescritos pela Lei etc. A Lei ou Torá, recheada de prescrições litúrgicas que deviam ser cumpridas fielmente para a santificação do povo, ocupava praticamente todo o tempo do sacerdote. Cada minúcia do culto devia ser observada com zelo e rigor.


Tendo sido deportado para a Babilônia com a primeira leva de exilados, Ezequiel – sacerdote – ficou sem chão. Seu mundo litúrgico ruiu. Sem o templo, a liturgia estava vetada. Não era mais possível fazer oferendas, imolar animais, pôr e tirar os pães da proposição, acolher os peregrinos que subiam cantando ao Monte de Sião. Abandonado por Deus, que morava no templo, o povo seguia sua peleja sem poder realizar seu culto, pensavam os mais tradicionais.


Ezequiel irá inaugurar duas novidades importantes nesse tempo em que a liturgia conheceu seu interdito. A primeira refere-se à presença de Deus, que ultrapassa os muros do espaço sagrado e segue qual carruagem de fogo no meio dos retirantes rumo à terra dos caldeus (Ez 1,128). É bom lembrar que Salomão, o grande responsável pela edificação do templo, praticamente havia prendido Deus nas edificações glamorosas do Santuário. Na oração de consagração (1Rs 8,22-53), nota-se claramente que a construção fora convertida na habitação de Deus. Por isso, toda prece, toda oferenda, todo sacrifício deviam ser dirigidos ao Senhor naquele espaço geográfico e não em outro qualquer. Ezequiel, dará grande contribuição para libertar Deus das amarras impostas pela religião. O Deus de Abraão, Isaac e Jacó não se deixa prender, pois prefere a dureza do exílio junto ao seu povo que o conforto frio e estéril do templo vazio. 


A segunda contribuição se refere à função sacerdotal. Sem templo e sem liturgia, Ezequiel entendeu que há outro culto possível, aquele que extrapola os limites da prescrição legal. Animado pelo Espírito, não se pôs a chorar de saudades do templo, nem alimentou nostalgia funesta dos rituais sagrados. Ergueu a cabeça e assumiu o ministério de profeta, na certeza de que o culto agradável a Deus é a justiça e o direito para garantia da vida de todos. Desde então, Ezequiel passou a celebrar a liturgia da vida, alimentando a esperança de sua gente e fazendo-a resistir em tempos maus.


A flexibilidade de Ezequiel e sua capacidade de ler os sinais dos tempos impressionam os leitores. Enquanto outros sacerdotes "choravam o leite derramado" da destruição de Jerusalém e do exílio forçado, Ezequiel entendeu que "Inês é morta" e partiu para a ação salvífica que de fato condiz com a vocação sacerdotal.


Certamente, há uma distância de anos-luz entre a concepção de sacerdócio do Antigo Testamento e a que hoje envolve os ministros ordenados da Igreja, a começar pelo nome, pois aqueles que recebem o sacramento da ordem tornam-se presbíteros e não sacerdotes. Afinal, sacerdote a gente se torna pelo batismo (tríplice múnus: sacerdote, profeta e pastor). Mas a metáfora continua válida. Os sacerdotes do Antigo Testamento – os descendentes da tribo de Levi – atuavam na liturgia, assim como os presbíteros ainda hoje têm a exclusividade dessa função. Fora raras ocasiões previstas pelo Direito Canônico em que um diácono ou um leigo pode ministrar o culto, a liturgia é ofício do padre. Ele dedica a maior parte do seu tempo a celebrar sacramentos: batizar, rezar missa, ungir doentes, receber os votos dos nubentes na cerimônia do matrimônio cristão... Quase todo seu tempo é dispendido no ofício litúrgico, a ponto de ele ser identificado como "ministro dos sacramentos". Foi preciso que o papa Bento XVI relembrasse aos presbíteros que eles são, em primeiro lugar, ministros da palavra a exemplo do mestre de Nazaré, que passou pelo mundo ensinando a todos a boa nova de Deus, mas tal advertência não surtiu o efeito esperado.


Atualmente, quando a comunidade cristã se encontra exilada dos templos por causa da pandemia, não é raro ver presbíteros que insistem em celebrar com seus fiéis a eucaristia, colocando a vida de suas ovelhas em risco em nome da grandeza do mistério celebrado. Em toda diocese, o movimento para reabertura das igrejas é grande e, muitas vezes, é liderado pelo padre e não pelos leigos. Exilados das celebrações litúrgicas presenciais, os presbíteros caíram numa crise de identidade assustadora. Não sabem para que servem, se não podem celebrar a missa com o povo, batizar crianças e "fazer" casamentos. Seu ministério ancorado sobre os sacramentos ruiu junto com as falsas seguranças sociais que a covid-19 carcomeu. O inimigo invisível não tem matado somente milhões de irmãos e irmãs pelo mundo inteiro, especialmente no Brasil, mas tem colocado a nocaute nossas arcaicas concepções, entre elas a compreensão de templo, de ministro ordenado e de liturgia.


Ao longo de anos, temos visto que Deus foi aprisionado nas igrejas católicas, especialmente na celebração da eucaristia. Coisificamos Deus; prendemo-lo no pão eucaristizado, que só o ministro devidamente ordenado pode celebrar. Enclausurado no sacrário, Deus se tornou propriedade do povo piedoso e dependente do presbítero para se fazer presença no pão. Sem ele, "a mágica" da transubstanciação não acontece, pois só ele tem as mãos ungidas para tal. Só ele pode pronunciar as palavras que fazem o pão e o vinho se tornar corpo e sangue do Senhor. Repetimos o mesmo erro de Salomão enjaulando Deus em edifícios sagrados, em sacrários, em rituais que são exclusividade dos presbíteros. Não entendemos que o Deus da vida – qual carruagem de fogo – não aceita limites nem se deixa manipular, ou não seria Deus, mas apenas ídolo inútil. Ezequiel nos ensina que é hora de libertar Deus e também os seus ministros, pois estes se tornaram escravos dos sacramentos. Seria grande contribuição para a Igreja se essa pandemia nos levasse a uma séria reflexão sobre o papel dos presbíteros e sobre o modo como eles têm desempenhado seu ofício.


E mais. Não seria a hora de, como Ezequiel, os presbíteros – tantas vezes chamados de sacerdotes – entenderem que, para o caos social implantado pela pandemia e pela má gestão do país, seria bem mais útil a profecia que a administração dos sacramentos? Não seria hora de cada presbítero se redescobrir ministro da palavra e, por meio de sua profecia, aconselhar e orientar o povo de Deus? É triste ver o abismo no qual despencamos enquanto muitos ministros ordenados brigam para reabrir as igrejas. Se a espiritualidade eucarística os move ao desejo de devolver a missa aos fiéis, a espiritualidade da vida não obriga ao isolamento social? Quem dera todo presbítero se tornasse profeta e reconhecesse que Deus não se deixa prender nos ritos litúrgicos! Quem dera se colocassem a denunciar os abusos que o povo vem sofrendo e ajudasse nossa gente sofrida a esperançar nesses tempos difíceis! Quem dera entendessem que a liturgia da vida no altar do mundo é superior a toda liturgia sacramental, sem o menosprezo da última, é claro!


A impressão que se tem – diante da insistência de reabrir as igrejas sob o risco de fazer o vírus circular e contagiar mais gente ainda – é que os ministros ordenados estão pedindo socorro e não os fiéis. "Libertem-nos da escravidão na qual fomos submetidos! Ajudem-nos a reencontrar o caminho da nossa vocação para além dos muros das igrejas", dizem eles ao gritar aos quatro cantos que as missas devem ser reabertas aos fiéis. Em vez de compactuar com a reabertura dos templos mesmo com todo cuidado sanitário exigido pelas autoridades, os leigos deveriam ajudar seus presbíteros a redescobrirem sua vocação no calvário do mundo, onde o Cristo sofredor é imolado pela pandemia!