Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

256. REFLEXÃO PARA O 8º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 6,39-45 – Ano C

Ler do Início
26.02.2022 | 4 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
256. REFLEXÃO PARA O 8º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 6,39-45 – Ano C

Com a liturgia deste oitavo domingo do tempo comum, conclui-se a sequência de textos tirados do programático “discurso da planície”, do Evangelho de Lucas. O trecho lido hoje – Lc 6,39-45 – é continuação imediata daquele do domingo passado (cf. Lc 6,27-38). Conclui-neste domingo, também, a primeira fase do tempo comum, que será interrompido para a vivência do ciclo pascal, que começa na Quarta-Feira de Cinzas, abrindo o tempo da Quaresma. Com isso, interrompe-se temporariamente a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas. O texto proposto para hoje compreende um conjunto de sentenças proverbiais usadas como advertências e incentivo para a comunidade cristã manter-se coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus.

O discurso da planície, desde o seu início com a proclamação dos pobres como bem-aventurados e a série de denúncias aos ricos, apresenta a necessidade de uma verdadeira revolução no jeito de viver dos seguidores e seguidoras de Jesus, cuja expressão mais comprometedora é a exigência de amor até para com os inimigos (cf. Lc 6,27.35), e a regra de ouro que propõe “fazer aos outros o que deseja para si” (cf. Lc 6,31). Se trata de um programa de vida revolucionário, movido pelo amor, cujo êxito ou fracasso depende essencialmente da adesão e coerência dos discípulos, foco do evangelho de hoje. O modo enfático como o evangelista apresenta estes ensinamentos indica que na época da redação do evangelho, provavelmente nos anos 80 do primeiro século, as comunidades já apresentavam sinais de distanciamento do que é essencial na vida cristã; daí a necessidade de recordar as exigências básicas para o seguimento autêntico de Jesus.

Embora Jesus se encontrasse diante de um auditório numeroso e heterogêneo, pois além dos discípulos havia uma grande multidão composta por pessoas de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidônia (cf. Lc 6,17), os principais destinatários do discurso são os discípulos e as discípulas de todos os tempos. São eles, portanto, os que devem viver primeiro e de modo radical o programa de vida proposto por Jesus, que compreende o seu jeito mesmo de viver. Por isso, diz o evangelista que “Jesus contou uma parábola aos discípulos” (v. 39a). Como se vê, são os discípulos os que devem ouvir com atenção e pôr em prática o que Jesus está ensinando, como recorda o evangelista. É claro que o conteúdo do discurso da planície de Lucas, bem como o do equivalente discurso da montanha de Mateus (cf. 5–7), possui um alcance universal, é válido para todos povos e culturas, mas são os cristãos e cristãs de todos os tempos quem têm a responsabilidade de ser os primeiros a viver.

A primeira parte do discurso, como vimos há dois domingos, tem um estilo profético, com a proclamação das bem-aventuranças aos pobres e das denúncias e lamentos aos ricos, com a fórmula “ai de vós”. A segunda parte, cuja leitura fora iniciada no domingo passado e está sendo continuada hoje, possui um estilo sapiencial: comporta um conjunto de máximas proverbiais de grande impacto e importância nos ouvintes e leitores, levando-os à reflexão e à consequente conversão. Por isso, são chamadas também de parábola (em grego: παραβολή – parabolê). Embora no mundo greco-romano a parábola signifique mais uma narrativa ou história, como são a maioria das histórias contadas por Jesus nos evangelhos, no mundo semita – ambiente sócio-cultural de Jesus – a parábola equivale também a provérbio, e é esse o sentido do termo no evangelho de hoje. Assim, com um provérbio bastante claro, Jesus chama a atenção dos seus seguidores e seguidoras a viverem como pessoas iluminadas e lúcidas e, sobretudo, abertas aos seus ensinamentos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (v. 39b). A cegueira, em linguagem bíblica, significa ausência de Deus e dos seus mandamentos; na comunidade de Jesus, significa fechamento ao Evangelho. Se os cristãos são chamados a ser luz, logo devem esforçar-se para evitar a cegueira. Isso se faz vivendo e praticando o que ensina o Evangelho. Só pode ser luz para os outros quem já é portador de luz, ou seja, quem se deixa iluminar pelo Evangelho de Jesus.

O segundo provérbio é uma denúncia aos sinais de divisão e também de prepotência que podem surgir na comunidade e, consequentemente, um convite à humildade: “Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre” (v. 40). Provavelmente, esse versículo reflete mais a situação da comunidade de Lucas do que o grupo inicial dos discípulos. Havia uma tendência de hierarquização e institucionalização, e isso comprometia bastante a vida comunitária, pois feria o princípio de uma comunidade igualitária, como propôs Jesus. Para manter o princípio da igualdade é necessário que estejam todos numa mesma condição e ninguém se atreva a ocupar o lugar de mestre que pertence somente a Jesus. Ao invés de ocupar o seu lugar, os discípulos devem esforçar-se somente para ser como ele, vivendo como ele viveu, sobretudo, no jeito de amar, e sempre abertos a novos aprendizados conforme as necessidades de acompanharem os “sinais dos tempos”.

Do risco de alguém na comunidade ocupar o lugar do mestre, emanam diversos outros riscos, como a arrogância e a prepotência, inclusive falsos ideais de perfeição e moralismo. Por isso, a séria advertência de Jesus: “Por que vês o circo que está no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?” (v. 41). Mais do que um risco, esse parece ser um problema já enraizado na comunidade, e combatido pelo evangelista. Existiam e existem pessoas que se consideram irrepreensíveis, atribuindo para si a capacidade e o direito de julgar os outros. Esse tipo de comportamento é totalmente alheio ao ensinamento de Jesus e, por isso, inadequado à sua comunidade.

O próprio Jesus reforça o combate a essa tendência tão prejudicial ao seu projeto: “Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando não percebes a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (v. 42). Essa é a primeira vez que Lucas emprega a palavra hipócrita no seu evangelho; esse termo (em grego: υποκριτική – hipocritês) significa literalmente “aquele que põe a máscara”, o ator ou intérprete no teatro grego. Enquanto Mateus, por exemplo, reserva essa palavra aos fariseus e mestres da lei (cf. Mt 6,2.5.16; 15,7;22,18), os tradicionais adversários de Jesus, Lucas reconhece o perigo da hipocrisia também no seio da comunidade e, por isso, denuncia. Geralmente, quem mais vê defeitos no outro, quem se considera irrepreensível diante de Deus, quem tem facilidade em julgar o próximo, são as pessoas mais distantes dos verdadeiros valores do Evangelho. Essa tendência deve ser combatida e denunciada constantemente, pois fere o ideal de vida proposto por Jesus.

A imagem da árvore com os frutos tem a finalidade de animar os cristãos a traduzir na vida concreta a relação com Cristo: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas” (vv. 43-44). A pertença de alguém a Cristo e a coerência aos seus ensinamentos serão reveladas naturalmente pelos frutos, ou seja, pelo agir. De quem se alimenta do Evangelho, não podem brotar frutos que não sejam amor, justiça e solidariedade. Ao invés de julgar o próximo, conforme a advertência anterior (vv. 41-42), os seguidores e seguidoras de Jesus devem preocupar-se com a qualidade dos frutos gerados. A oposição entre frutos bons e ruins deve ajudar o ouvinte e leitor a perceber as consequências de suas ações e pensamentos, levando-os a uma reflexão mais profunda sobre a fonte de todo o agir humano, conforme a mentalidade bíblica: o coração.

Como síntese conclusiva, Jesus apresenta, de fato, uma pequena parábola, no sentido de história ou narrativa, propriamente: O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (v. 45). Assim, ele ensina que, além do agir, também as palavras tem grande importância para a vida cristã, pois revelam a qualidade da fonte que as origina: o coração humano. De fato, o coração como um tesouro é uma imagem clássica na linguagem bíblica (cf. Eclo 29,11), pois é o que o ser humano tem de mais precioso; é a sede do processamento de todos os sentimentos e pensamentos. Se o comportamento e o agir são importantes e decisivos para o bem da comunidade, cada um e cada uma devem estar atentos ao que origina tal agir. Por isso, o cuidado com as disposições interiores, das quais dependem se os frutos produzidos serão bons ou ruins.