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172. Reflexão para o 19º Domingo do Tempo Comum - Mt 14, 22-33 (Ano A)

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08.08.2020 | 13 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
172. Reflexão para o 19º Domingo do Tempo Comum - Mt 14, 22-33 (Ano A)

O evangelho deste décimo nono domingo do tempo comum – Mt 14,22-33 – é a continuação direta daquele que fora lido na liturgia do domingo passado. Por isso, o contexto é o mesmo. É sempre importante recordar que os evangelhos enquanto livros escritos não são relatos cronísticos da vida de Jesus, mas narrativas catequéticas para a formação do discipulado e a edificação das comunidades cristãs de todos os tempos, começando por aquelas onde atuavam os respectivos evangelistas (autores). No caso específico do Evangelho de Mateus, escrito há cerca de cinquenta anos após os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ele visa responder a uma comunidade profundamente marcada por crises, causadas tanto por aspectos externos quanto internos. E o evangelista responde às crises da sua comunidade recordando momentos de crise vividos pelo próprio Jesus junto com seus primeiros discípulos, e ilustrando conforme a sua própria criatividade e o uso de tradições recebidas de outros. O evangelho de hoje é uma boa demonstração desse processo.


O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, que fora decapitado a mando de Herodes (Mt 14,1-12). Apesar das divergências de mentalidade, Jesus e João eram muito próximos afetivamente, e eram conscientes da continuidade entre os dois. Jesus não correspondeu às expectativas de João, que esperava um messias guerreiro, justiceiro e violento (Mt 3,1-12). Apesar disso, os dois eram próximos. Por isso, inevitavelmente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que Ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial.


Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar; por isso, “foi a um lugar deserto para estar a sós” (Mt 14,13). Porém, não conseguiu logo esse desejado momento de solidão porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança. O drama é total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, sabendo que em breve também Ele seria condenado e morto, encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Seu sentimento não poderia ser outro: “teve compaixão” (Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento; era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude; essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma.


Disso, surgiu um pequeno desentendimento entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, os discípulos, por comodismo, sugeriram que Jesus as despedissem; Jesus, pelo contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16); os discípulos reclamam que o que eles têm é muito pouco, apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu. Certamente, o clima entre Ele e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão se tornou cada vez mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise nos discípulos.


Terminada a contextualização, olhamos para o nosso texto: “Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões” (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original “Jesus obrigou”. Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir “para o outro lado do mar”, ou seja, para a outra margem. Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se ao perigo, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, a qual só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos, mas levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Ser Igreja é estar sempre em saída!


Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, “subiu ao monte para orar a sós” (v. 23). A oração pessoal de Jesus é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, mas indispensável. Na verdade, em Mateus Jesus só se retira para rezar duas vezes: aqui e já no contexto da paixão, quando reza no Monte das Oliveiras (Mt 26,36). O monte é, na tradição bíblica, o lugar do encontro com Deus, da intimidade com o Criador. Nesses dois primeiros versículos do Evangelho de hoje, Jesus apresenta duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída. Subir ao monte sem descer depois para enfrentar os mares da vida é inútil, bem como é inevitável o naufrágio quando se arrisca no mar sem ter feito antes a experiência do monte.


Quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela “era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (v. 24). É essa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: άνεμος – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino: 1) a oposição das lideranças da sinagoga (judaísmo oficial), 2) as forças do império romano, 3) o medo/comodismo dos discípulos. Três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem, ou seja, chegar no mundo inteiro. Desses, o principal era o medo/comodismo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou até mesmo a desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas.


Quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro “andando sobre o mar” (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo de caótico, algo que o ser humano não tem forças para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele.


Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: “Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo” (v. 26). O medo (em grego: φόβος – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar ‘inimigos’ para si ao longo da história. É o vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, É! De fato, com a afirmação “Sou eu” (em grego: έγώ είμι – egô eimí), Jesus recorda e atualiza ação do Deus libertador do Êxodo (Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado.


Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). É exatamente nessa passagem que Pedro assume o protagonismo entre os discípulos, especialmente no Evangelho de Mateus. Porém, não se trata de um protagonismo sempre positivo; na verdade, é cheio de contradições, cuja demonstração maior serão as negações. De agora em diante, ele será sempre o primeiro a agir, a responder e a propor, e quase sempre será repreendido por Jesus. Mas é exatamente por isso que se torna modelo de discípulo válido para todos os tempos, pois as suas atitudes mostram que Jesus não busca pessoas perfeitas para o seu seguimento, mas homens e mulheres normais, com qualidades e defeitos. Inclusive aqui, nessa primeira intervenção como como porta-voz dos discípulos Pedro já começa de maneira bastante negativa, pondo Jesus à prova. A proposta de Pedro aqui é a mesma do diabo no episódio das tentações (Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (Mt 27,40): “se tu és...”. Pedir sinais a Jesus é sempre uma tentação, além de ser também uma demonstração de falta de convicção e de fé sólida. Por isso o próprio Pedro se sentirá afundando, como dirá a sequência do texto.


A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: “Vem!” (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua falta de fé e convicção. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: “Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!” (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Por isso, queria vencê-los milagrosamente.


Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, “Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?” (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, chamando-o de homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: όλιγόπιστος – oligópistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer. Jesus repreende a Igreja e seus membros quando buscam não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo, apoiando-se em falsos triunfalismos. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, desempenhando a função de tentadora de Jesus, ao invés de edificadora do Reino.


Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que “O vento se acalmou” (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. Assim, “Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (v. 33). É uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções. A prostração, especialmente no Evangelho de Mateus, é a atitude de adoração, de reconhecimento da divindade de Jesus. Inclusive, os primeiros a fazer isso foram os magos estrangeiros (Mt 2,11), os quais também têm a oferecer e a ensinar. No encontro com o Ressuscitado, no final do Evangelho, os discípulos repetirão o gesto e, também ali, dirá o evangelista que alguns ainda duvidaram (Mt 28,17). Logo, a dúvida sempre estará presente na vida da comunidade; porém, não podem levar os discípulos a trocarem o compromisso de superar as adversidades com responsabilidades por sinais extraordinários e fantasiosos.


As situações de perigo e provação devem levar à Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: “Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem?” (8,27). A resposta foi dada seis capítulos depois: é o Filho de Deus!


O Evangelho interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhece-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso!